Um menino de cinco anos, portador de talassemia major (uma
forma grave de anemia hereditária) foi curado na Itália
graças às células-tronco do cordão
umbilical de seus dois irmãos gêmeos, nascidos em
abril. O transplante, efetuado em agosto no hospital Policlínico
San Matteo, em Pavia, foi anunciado há duas semanas e teve
sucesso graças a uma técnica de multiplicação
das células-tronco desenvolvida nas universidades de Milão
e Turim. Apesar de relevante, o feito científico não
foi tão marcante quanto a nova onda de debates polêmicos,
tanto sobre os impedimentos à pesquisa com células-tronco
embrionárias quanto contra a lei de fecundação
assistida recém aprovada pelo governo italiano. A lei proíbe
a seleção de embriões sãos antes de
um implante, o que justamente foi feito pelos pais da criança
doente, que recorreram à fecundação artificial,
não sendo estéreis, para ter certeza que os gêmeos
nasceriam sãos.
A talassemia major, também conhecida como anemia mediterrânea, é uma doença hereditária grave que afeta a produção, por parte da medula óssea, de quantidades apropriadas de glóbulos vermelhos do sangue, responsáveis por transportar oxigênio a todas as células do nosso corpo. Os pacientes talassêmicos (cerca de 200 mil pessoas no mundo) possuem glóbulos vermelhos pequenos e poucos numerosos por causa de uma mutação e acabam sendo obrigados a passar por transfusões periódicas de sangue (leia mais sobre o tratamento). Durante a vida, os portadores desta doença precisam tomar remédios que ajudam a retirar do corpo a quantidade de ferro em excesso, causada pelas numerosas transfusões a que são sujeitos. A cura pode ser obtida por meio de transplante de medula óssea, porém, a operação apresenta problemas sérios de incompatibilidade com o doador - somente poucos pacientes têm um irmão compatível para a doação.
As células-tronco são células capazes de se transformar em numerosos tipos diferentes de células, como as do sangue, coração e cérebro. Àquelas presentes no sangue dos irmãos gêmeos do paciente italiano (chamadas de "adultas", porque não extraídas de embriões), se transformaram em células sãs no paciente transplantado, sendo capazes de produzir glóbulos vermelhos normais. Graças à operação, declarou a equipe do Policlínico de Pavia, a criança está agora "absolutamente normal, perfeitamente sã". "Todos devemos comemorar" - comentou Carlo Alberto Redi, biotecnólogo e geneticista da Universidade de Pavia.
A novidade científica da intervenção não está no transplante de células do cordão umbilical, já praticado há anos, mas no uso de uma técnica de reprodução das células-tronco, para aumentar sua quantidade. As células do cordão de um dos gêmeos foram inoculadas diretamente no paciente, enquanto as do outro cordão, que eram escassas, passaram por um processo de multiplicação in vitro, que durou quinze dias. Essa multiplicação pôde ser feita por mais de cinqüenta vezes. "O problema é que as células-tronco contidas no sangue da placenta e do cordão são pouco numerosas, enquanto, para um transplante em pacientes com leucemia ou talassemia, precisamos de milhões de células para cada quilo de peso do paciente", explica Wanda Piacibello, líder de uma das equipes que desenvolveram a técnica na faculdade de Medicina da Universidade de Turim. "Até hoje, parecia que as células deste tipo, reproduzidas por meio de uma cultura, não funcionavam: perdiam a capacidade de reconstruir o tecido hemopoiético. Nós conseguimos acertar a mistura de fatores de crescimento necessários para o desenvolvimento destas células fora do corpo", continua.
A operação confirmou as grandes esperanças que o uso de células-tronco abre para a cura da talassemia, da leucemia e de outras doenças do sangue, mas também ascendeu novas polêmicas, ligadas tanto à nova lei italiana sobre fecundação assistida, quanto às declarações do Ministro da Saúde, que utilizou o acontecimento para justificar impedimentos postos pelo governo à pesquisa com células-tronco embrionárias.
De acordo com a nova lei n. 40, aprovada neste ano pelo governo de centro-direita de Silvio Berlusconi, está proibido o tipo de fecundação que levou ao nascimento dos gêmeos que permitiram curar a criança italiana. Hoje, uma mulher que decidir se submeter à fecundação assistida na Itália tem que aceitar o eventual implante de embriões portadores de doenças genéticas, não podendo efetuar uma seleção pré-implante de embriões sãos, o que foi feito pela mãe dos dois gêmeos, para evitar que mais filhos nascessem afetados pela talassemia. Além disso, geraram polêmica as palavras do Ministro da Saúde, Girolamo Sirchia, que, ao festejar o evento, declarou: "temos que olhar os fatos; não devemos ser tomados pelo entusiasmo e a emoção. Os fatos mostram que, até hoje, os únicos resultados concretos foram obtidos por meio de células-tronco adultas. As células embrionárias, sobre as quais tanto se discute, representam somente uma esperança". "São declarações que preocupam", comenta Carlo Alberto Redi. "De um ministro, eu iria esperar uma declaração que enfatizasse este sucesso para declarar que a pesquisa, toda a pesquisa, tem que seguir em frente. Mas as palavras dele deixam entender que a pesquisa sobre células embrionárias pode ser deixada do lado, enquanto todos os estudos internacionais mostram que existem potencialidades enormes", lamentou.
As células-tronco que provêm de embriões são chamadas de pluripotentes, podendo se transformar praticamente em qualquer tipo de outra célula do corpo: são extremamente promissoras do ponto de vista científico e médico, mas, por serem extraídas exclusivamente de embriões humanos (e multiplicadas por meio de clonagem), o uso delas está se mostrando problemático no mundo todo, tanto do ponto de vista ético quanto religioso (leia reportagem sobre a polêmica).
A Igreja Católica e muitos governos condenaram o uso dessas células para pesquisa, e a situação legal internacional está ainda sendo definida. Na Itália, o governo decidiu financiar exclusivamente pesquisas que envolvam células-tronco "adultas", que são já parcialmente diferenciadas e podem se transformar somente em alguns tipo de tecidos. "Um ministro da Saúde", continua Redi, "depois de tais resultados deveria prometer novos recursos para pesquisa, também àquela sobre células-tronco provenientes de embriões animais. Uma vez que conhecemos os resultados e as possíveis aplicações nos animais, a sociedade vai poder decidir se permitir ou não o uso terapêutico de células humanas. Mas, para ter essas respostas, a pesquisa deve poder continuar".
Leia mais sobre células-tronco na reportagem da ComCiência.