Nas matérias sobre questões indígenas,
índios não são ouvidos
O jornalismo praticado pela chamada grande imprensa não contribui para o diálogo entre os povos indígenas e a sociedade nacional. Esta é a principal conclusão da dissertação de mestrado do jornalista Maurício Pimentel Homem de Bittencourt. Intitulada Diálogo Parcial - uma análise da cobertura da imprensa para a questão indígena brasileira, a dissertação foi defendida no mês de maio, na Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP).
A metodologia utilizada pelo jornalista consistiu num levantamento de reportagens sobre questões indígenas nos quatro maiores jornais do país: Folha de S. Paulo, Estado de S. Paulo, O Globo e Jornal do Brasil. O pesquisador selecionou os jornais de grande circulação nacional que influenciam a mídia como um todo, buscando identificar uma tendência do jornalismo brasileiro como um todo. Dos quatro jornais, foram pesquisadas 364 edições, entre os meses de abril e junho de 2003.
O pesquisador teve como principal foco as fontes utilizadas pelos jornalistas no processo de apuração de suas matérias: em 46,5% das reportagens, Bittencourt constatou que os jornalistas não entrevistaram nenhum indígena durante suas apurações. Apenas 16,3% das reportagens apresentaram somente fontes indígenas. "Como a imprensa não é indígena, não é feita por índios e é escrita para não-índios, poderia-se dizer que é natural que as fontes indígenas sejam pouco consultadas. Mas isso é inaceitável se o objetivo é fazer um jornalismo decente", afirma Bittencourt.
Durante a pesquisa, o jornalista também entrevistou seis profissionais que trabalham com a comunicação entre indígenas e não-indígenas, denominados "comunicadores interculturais". Dentre escritores e líderes indígenas, Bittencourt colheu os depoimentos de Nilda Rodrigues, assessora de imprensa da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), e de Benedito Prezia, membro do conselho de redação do jornal Porantin - em defesa da causa indígena, publicado desde 1979 pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI).
Os depoimentos dos comunicadores interculturais foram coerentes entre si e, segundo o pesquisador, confirmaram as hipóteses levantadas durante a pesquisa, dentre elas, a opção dos jornais em noticiar os povos indígenas apenas quando estes se encontram envolvidos em situações de conflito. Essa prevalência temática na imprensa pôde ser atestada nas reportagens recentes a respeito dos conflitos entre índios do grupo cinta-larga e garimpeiros, em Rondônia, e na discussão em torno da homologação contínua do território indígena Raposa-Serra do Sol, em Roraima.
Embora a questão da demarcação e da homologação das terras indígenas precise ser noticiada pela mídia por se tratar de um problema político relevante, para Bittencourt, a imprensa negligencia outras questões também relacionadas à cidadania dos índios no país, como o modo de vida, a organização social e política, os saberes e o cotidiano dos diferentes povos indígenas que habitam o Brasil.
Mal-entendido cultural
A disseminada prática de utilização do telefone nas apurações jornalísticas e a inviabilidade de visitas freqüentes de repórteres às aldeias indígenas, num contexto de crise financeira das empresas de comunicação, reforçam o descaso da grande imprensa em relação aos povos indígenas. Mas essa falta de investimento em reportagem por parte das redações de jornal seria apenas uma explicação parcial do problema. "O principal motivo", afirma Bittencourt, "é a falta de aceitação da alteridade indígena por parte dos jornalistas e da sociedade nacional como um todo. Isso resulta no desconhecimento das culturas indígenas, o que faz muitas vezes com que os jornalistas desconfiem da legitimidade de algumas fontes indígenas e optem, para não 'errar', pelas fontes oficiais".
Diante deste quadro, Bittencourt sugere que, além de maior investimento, por parte das empresas jornalísticas, na infra-estrutura para a realização de reportagens, é preciso que a própria formação do jornalista seja repensada. Essa reflexão é necessária na medida em que, caberia à própria imprensa, enquanto formadora de opinião, contribuir para que o "mal-entendido cultural", que prejudica as relações e impede a construção de um diálogo entre índios e não-índios, seja desfeito. "A dificuldade de entender e aceitar 'o outro' e as visões de mundo radicalmente diferentes encarregaram-se do conflito antes que europeus e índios pudessem se entender. A hora desse entendimento chegou e o jornalismo tem uma importante função nessa comunicação intercultural", acrescenta o jornalista.