Inteligência dos EUA alertou sobre Vietnã e Iraque
Crescem na mídia internacional as comparações entre o possível fracasso da ocupação estadunidense do Iraque e a derrota que os EUA sofreram no Vietnã, há quase 30 anos. Nos dois casos, o governo dos EUA enfrentou o dilema entre uma retirada de tropas, que pode parecer humilhante, ou o prolongamento de uma guerra impossível de ser vencida. Em ambos, a inteligência dos EUA enganou-se ao imaginar que ganharia o apoio popular dos "libertados". Tanto no sul da Ásia como no Oriente Médio, a estratégia de "choque e terror" - que na prática significa transformar em alvo todos aqueles que parecem ser uma ameaça aos EUA com um poder de fogo desproporcional - tem dado ainda mais força aos insurgentes ao atiçar o sentimento anti-americano.
Um relatório publicado recentemente pela Escola de Guerra do Exército, e assinado pelos professores de Estudos Estratégicos W. Andrew Terril e Jeffrey Record, acentuou ainda mais as comparações. Embora afirmem que, militarmente, as duas guerras são bastante diferentes, há uma igualdade. No Vietnã, os EUA tentaram sustentar um governo sem legitimidade e, no Iraque, tentam promover um governo para que depois ele ganhe legitimidade. "Em ambos os casos isso é muito difícil de se fazer", declarou Terril à agência Reuters. Para ele, o fracasso no Iraque poderia também ter conseqüências desastrosas para a política externa estadunidense.
Vozes vindas da Casa Branca alertaram para os erros nas duas oportunidades mas, ao que parece, avisos inteligentes não são suficientes para deter militares em guerra. Já se torna consenso entre os analistas de estratégia que houve algum problema grave no planejamento da ocupação estadunidense do Iraque, sendo a revolta da população o sinal mais claro.
O livro do ex-chefe da CIA, Richard Clarke, Agaist All Enemies (Contra todos os inimigos, em português) teve grande impacto na sociedade estadunidense ao afirmar que a tragédia do 11 de setembro poderia ter sido evitada se relatos feitos por membros das agências de inteligência dos EUA tivessem sido ouvidos com mais atenção.
Do mesmo modo, a Guerra do Vietnã também poderia ter tomado outro rumo se certos membros das agências de inteligência tivessem sido ouvidos. É o que mostra o artigo "O rato que rugiu: A inteligência do Departamento de Estado na Guerra do Vietnã", de autoria do historiador John Prados, do instituto de pesquisa National Security Archives, ligado à Universidade de Washington.
A partir de entrevistas com militares e ex-funcionários das agências de segurança e de documentos confidenciais liberados recentemente, Prados mostra que relatos pessimistas sobre a Guerra do Vietnã foram constantemente ignorados em benefício de outros que retratavam uma situação mais favorável, mas que eram inexatos. A conseqüência foi uma longa guerra que terminou com a retirada das tropas dos EUA e com uma saldo de 5 milhões de mortes entre os vietnamitas e pouco mais de 200 mil entre os estadunidenses.
Avisos inteligentes
Sempre que se fala em agência de inteligência dos EUA a primeira sigla que vem à mente é CIA (Agência Central de Inteligência). Mas há muitas outras agências governamentais que também fazem esse papel, administrados por civis ou militares. As mais importantes são a própria CIA, a Agência de Inteligência da Defesa (DIA), a Agência de Segurança Nacional (NSA) e o Escritório de Reconhecimento Nacional (NRO). Porém, um pequeno membro dessa comunidade foi o principal responsável por vários alertas que poderiam ter alterado o destino infeliz dos EUA no Vietnã. "O Birô de Inteligência e Pesquisa (INR), como era conhecida a agência-prima das quatro principais, reuniu uma versão em pequena escala da Diretoria de Inteligência da CIA", escreve Prados. Ela é um braço de inteligência do Departamento de Estado.
Essas agências costumam preparar relatórios periódicos sobre a situação político-militar de todas as regiões do mundo. Em um desses, intitulado "Projeções para o sul do Vietnã 1953-1963", a INR teve um papel decisivo para tornar o relatório mais adequado à realidade. A primeira versão do trabalho, que chegou a circular, apontava que China e União Soviética eram simpáticas à atuação de Hanoi em relação ao sul do Vietnã, mas não a comandavam. Entrevistas realizadas com oficiais estadunidenses no Vietnã, promovidas pelo INR mostraram o contrário.
Outro ponto questionado pelo INR foi a descrição da situação política do líder apoiado pelos EUA no Vietnã do Sul, Ngo Dinh Diem, que se colocou, para o governo dos EUA, como a única alternativa política para a região e fingia ter apoio popular em seu país. No entanto, o chefe da INR no início dos anos 1960, Roger A. Hilsman, tinha experiência na organização de grupos locais de contra-insurgência (de resistência a revoluções) e identificou facilmente que o político sul-vietnamita não era respaldado pelos populares.
A atuação da INR irritou setores militares, principalmente quando a agência desmentiu relatos otimistas de progressos que estariam sendo atingidos pelas tropas estadunidenses na região. Dados estavam sendo omitidos ou alterados sobre prisioneiros feitos, deserções e armamentos que caíam nas mãos da Frente de Liberação Nacional, inimiga dos EUA - nada muito diferente das declarações super-otimistas de George W. Bush que minimizam as baixas cada vez mais freqüentes das forças de ocupação.
O episódio levou a uma articulação política dos militares, que criticaram uma suposta inexperiência dos civis. O então secretário de Defesa, Robert MacNamara, ativou o secretário de Estado, Dean Rusk, que chamou os agentes da INR para uma reunião e ameaçou levar o caso ao conhecimento da presidência. O episódio terminou com uma nota de Rusk afirmando que "passou instruções para que, qualquer memorando de circulação interdepartamental que inclua assuntos militares será coordenado pelo Departamento de Defesa". Embora a mensagem tenha tido poucas conseqüências práticas, ela é sintomática das tentativas de calar a agência.
A Guerra do Vietnã durou de 1961 a 1975 e envolveu o Vietnã do Norte - ou República Democrática do Vietnã - e o Vietnã do Sul - ou República do Vietnã. O governo do Vietnã do Sul, notoriamente corrupto e autoritário, acabou derrubado pelos rebeldes da Frente de Liberação Nacional, de orientação marxista e aliados do Vietnã do Norte. Os EUA procuraram defender o governo do Sul, mas acabaram tendo que retirar suas tropas após numerosas baixas. União Soviética e China ofereceram apoio aos rebeldes, mas não enviaram tropas oficiais. Após o término do conflito foi criado um único país, a República Socialista do Vietnã.