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Livro discute trabalho escravo no Brasil contemporāneo

Na praça central de um município pobre do interior do Maranhão, um homem oferece trabalho, moradia e alimentação a quem esteja disposto a trabalhar no sul do Pará. O trabalho é pesado: limpar a mata nativa para plantação de capim para o gado. Em alguns casos, é feito um adiantamento para que a família desse empregado não fique desamparada. Não longe dali, em outra cidade igualmente pobre, com abundante mão de obra disponível, outro homem, conhecido como "gato", cuja função é recrutar empregados, está num "hotel peoneiro" onde se concentram vários homens à procura de trabalho. O "gato" paga a dívida da pensão e leva mais um grupo de empregados para trabalhar numa fazenda muito distante dali. Em ambos os casos, o trabalhador fica devendo antes de começar a trabalhar, e entra, então, num sistema de endividamento que resulta no trabalho em regime de escravidão.

A escravidão por dívida no Brasil contemporâneo é o tema do livro Pisando na própria sombra: trabalho escravo no Brasil contemporâneo, do antropólogo Ricardo Rezende, que será lançado no próximo dia 14 pela editora Civilização Brasileira. O livro é fruto da tese de doutorado do pesquisador, defendida na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e suas principais idéias foram discutidas no seminário "Nova Escravidão no Brasil", realizado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), no dia 26 de maio, em São Paulo.

Trabalho escravo é aquele onde o trabalhador é tratado como uma mercadoria, um objeto. Historicamente, muito já se escreveu sobre a escravidão legal, presente no Brasil nos séculos XVIII e XIX. Entretanto, segundo Rezende, o trabalho escravo contemporâneo demorou a ser assumido tanto por órgãos oficiais quanto pelo mundo acadêmico. Em março deste ano, o Brasil foi o primeiro país a assumir junto à OIT a existência de trabalho escravo em seu território. Segundo a Comissão Pastoral da Terra, existem no Brasil cerca de 25 mil pessoas submetidas ao trabalho escravo. O Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo reúne as medidas do governo federal para superação do problema, dentre elas a criação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho e Emprego, que após denúncias, entra nas fazendas para libertar trabalhadores submetidos a condições degradantes de trabalho e à privação da sua liberdade.

Fonte: Comissão Pastoral da Terra


A escravidão contemporânea tem semelhanças em relação à escravidão legal do passado. Uma delas é que não existe investimento na criação de escravos. Os escravos são estrangeiros, trazidos de fora. Se, no passado, eram fruto de seqüestro ou de guerra, hoje são vítimas de aliciamento dos chamados "gatos". No caso brasileiro, numa cidade como São Paulo ou Rio de Janeiro, as denúncias envolvendo escravidão por dívida envolvem estrangeiros como colombianos, bolivianos, africanos e asiáticos. Na área rural, é comum o escravo vir de outro município ou de outro estado. "Em geral há um deslocamento da pessoa, porque estando longe da rede de familiares e das relações de compadrio, a pessoa é mais facilmente vítima da utilização como mão de obra escrava", explica o antropólogo.

Fonte: Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão


Um exemplo de vítima do trabalho escravo é o homem em idade produtiva que vai trabalhar em áreas de desmatamento para plantio ou para pecuária na Amazônia. Podem ainda ser mulheres e crianças para atividades na fruticultura ou nas carvoarias. (veja gráfico abaixo). Rezende explica que a utilização de mão de obra escrava demanda duas condições: em primeiro lugar, é necessário que haja abundância de mão de obra disponível e, por outro lado, interesse em mão de obra pelo menor preço possível. Apesar de ilegal, hoje o custo do trabalhador escravo é muito pequeno, comparado ao escravo negro do século XIX. No passado, havia o custo da aquisição e da manutenção dos escravos ao longo de toda sua vida. Na escravidão contemporânea, os custos do fazendeiro se referem ao transporte e à alimentação. Além disso, o uso do trabalhador escravo é o chamado de curta duração, ou seja, quando não é mais necessário, ele é liberto.

Fonte: Comissão Pastoral da Terra e OIT


Em sua pesquisa, Rezende identificou vários mecanismos de coerção dos trabalhadores, dentre eles a retenção dos documentos, o não pagamento dos salários, a repressão armada e, fundamentalmente, a dívida, que prende o trabalhador à fazenda pela impossibilidade de saudar uma dívida com seu empregador. "Numa das fiscalizações do Grupo Móvel, um dos fiscais encontrou na cantina da fazenda, onde se vendem suprimentos para os empregados, uma placa onde estava escrito entre os preços do sal, do arroz, do feijão, o 'preço da liberdade do peão'. A liberdade estava sendo vendida e comprada", conta.

O seminário da OIT, onde Rezende apresentou seu trabalho, contou com depoimentos de duas coordenadoras de equipes do Grupo Móvel do Ministério do Trabalho, Marinalva Dantas e Claudia Britto. Dantas salientou no evento a importância do papel da imprensa na erradicação dessa prática. "A imprensa deu credibilidade ao que nós falamos, mostrando as fotos e os fatos. De certa forma, também nos deu segurança, porque onde tem a imprensa, as pessoas ficam mais receosas de fazer alguma coisa contra a Equipe Móvel", diz Dantas. Claudia Britto, após dez anos à frente de uma equipe, se mostra otimista com os resultados do grupo. "Através do trabalho conjunto do Ministério do Trabalho, da Polícia Federal e do Ministério Público, não está muito longe a erradicação total do trabalho escravo no Brasil", acredita.

Atualizado em 01/06/04
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