Por Maíra Torres
O Google Trends aponta um pico de popularidade em 100% nas buscas por “golpismo” entre os dias 8 e 14 de janeiro deste ano em relação aos 12 meses anteriores, incluindo o período das eleições de 2022.
Segundo Marcos Napolitano, professor de História do Brasil Independente da USP, “golpismo” é um conceito da filosofia da ciência política, mas que também é usado pelo senso comum e diferentes grupos da sociedade, adquirindo diferentes sentidos, não sendo sempre aplicado ou compreendido da mesma forma.
“O ideal é que a gente consiga dialogar, mas nenhum conceito político é puro, ele é vivo e disputado pela sociedade, pela própria ciência e conhecimento histórico. Ele não está apartado dos debates sociais, não é puro ou puramente aplicado. Chega-se a um consenso, após uma discussão, sobre ser, ou não, golpe”, pondera Napolitano.
A ideia de golpismo, não necessariamente atrelada a “golpe de Estado”, acontece, segundo professor, quando grupos abrigados no Estado ou no sistema político que dominam uma sociedade, controlam-na ou governam-na, resolvem passar por cima das regras e da legitimidade política para derrubar um governo ancorado nessa legitimidade, que varia conforme a época. “No século 17 era legítimo governar um monarquista, segundo as leis de Deus. No século 20, um republicano, conforme a constituição”, exemplifica.
Na obra de Norberto Bobbio, Dicionário de Política, de 1986, não há a definição de golpismo, mas de golpe de Estado. Sua explicação está atrelada ao conceito de revolução, que “é a tentativa, acompanhada do uso da violência, de derrubar as autoridades políticas existentes e de as substituir, a fim de efetuar profundas mudanças nas relações políticas, no ordenamento jurídico-constitucional e na esfera socioeconômica”.
Golpe de Estado, por sua vez, se configura como uma espécie de etapa para a revolução, mas focando, em vez do modelo político, na “tentativa de substituição das autoridades políticas existentes dentro do quadro institucional, sem nada ou quase nada mudar dos mecanismos políticos e socioeconômicos”. Os agentes que promovem esses movimentos também estão em debate, e, ao contrário da revolução, que é naturalmente popular, o golpe é instaurado “por escasso número de homens já pertencentes à elite, sendo, por conseguinte, de caráter essencialmente cimeiro”.
Para Caroline Bauer, doutora em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre os Usos Políticos do Passado (Luppa), uma das características observadas em relação ao golpismo é, em princípio, a justificativa das ações em referência a leis, constituições, ou determinados direitos.
Um exemplo, para Bauer, são os atos de 8 de janeiro. “Existem pessoas que dizem que não se trata de nenhuma ação, em princípio, inconstitucional ou ilegal, porque estaria dentro do direito de manifestação. Porém esse direito não pode ser usado para subverter a ordem ou violar outros direitos”, explica.
Dessa maneira, os golpes não necessariamente precisam ter uma pretensão de legitimidade, e esse é um dos fatores que dificultam a compreensão das pessoas envolvidas nesses movimentos em se declararem golpistas. Existem, também, outros dois: a não aceitação da realidade e a carga pejorativa da expressão golpista.
A não aceitação pode ser motivada, neste caso, por decepções políticas. “Um tento golpista é, inclusive, uma não aceitação da ordem constituída pelas instituições, o que representa um descompromisso com a democracia, a não aceitação da derrota dentro das regras do jogo democrático”, explica.
Já a questão pejorativa da palavra “golpismo” é colocada tanto por Bauer quanto Napolitano. “Os golpistas atuais se reivindicam como aqueles que estão resistindo a uma suposta manipulação dos resultados eleitorais, embora não tenha nenhuma base real esse tipo de coisa, mas, na cabeça deles, eles são resistência, uma palavra mais charmosa e, aliás, muito utilizada pela esquerda”, justifica o professor.
Para a pesquisadora, ela ainda remete às ações da ditadura militar. “Por isso, por exemplo, os golpistas se chamavam de revolucionários em 1964. Eles tinham uma evidente autoconsciência de que modificariam a ordem, mas não se assumiram golpistas, ainda mais por contarem com o apoio de setores da sociedade, incluindo o militar”.
Essa característica, de contar com o apoio militar, inclusive, foi observada no Brasil com a Proclamação da República, em 1889. Na época, militares colaboraram para intervir no sistema monarquista e instalar o republicano, o que perpetuou, até os dias de hoje, a crença de que é possível contar com a ajuda desse tipo de ação.
“Na história do golpismo no Brasil, é muito próxima a participação política e a politização das forças armadas, porque essas tentativas de subversão à ordem, sejam as consolidadas, ou as ameaças, historicamente têm a presença das forças armadas, que se tornaram um sujeito dentro da história republicana, desde que o país ganhou essa organização política”, contextualiza Bauer.
Para Marcos Napolitano, o fato de o golpe estar protagonizado por atores ligados ao Estado, seja o parlamento, exército, ou as polícias, não quer dizer que ele não busque apoio também de setores sociais na forma de protestos, justamente porque o objetivo é desgastar um governo legitimamente eleito.
Esse caminho ao golpe acaba por confundir as pessoas, já que, para se concretizar, é necessário o apoio de diversas instituições sociais. “Se quando a ação parte da população é uma revolução, e quando o golpe passa por essas insurreições sociais? Um exemplo são as ações de 8 de janeiro, que não tiveram articulação suficiente para se transformar em um golpe de Estado. Parou em uma primeira fase de insurreição, porque estavam sem apoio dos setores mandatários”, aponta o professor.
Na visão do historiador, mesmo que ele e profissionais da área entendam o ocorrido em Brasília como golpe, e o mesmo seja feito pela imprensa e alguns setores sociais, leva um tempo até que seja estabelecido um consenso. “O tempo decanta a aplicação dos conceitos, eles vão se solidificando, sendo melhor compreendidos e aceitos pela população em geral. Vamos aderindo à ideia conforme entendemos melhor o que aconteceu”, defende.
Maíra Torres é jornalista e aluna do curso de especialização em divulgação científica Labjor/Unicamp. Bolsista Fapesp Mídia Ciência.