Por Graciele Almeida de Oliveira e Jhonatas Simião
O Brasil tem mais de 8 mil quilômetros de costa marítima e grande potencial de desenvolvimento para a aquicultura. Essas qualidades, no entanto, ainda contrastam com o baixo consumo de pescados. Dados de 2015 mostram que o brasileiro consome, em média, 9,6 kg desses itens ao ano, segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO).
Essa quantidade chega a ser inferior ao esperado para os países em desenvolvimento, de acordo com o documento “The state of world fisheries and aquaculture” da FAO. A organização aponta que a média anual de consumo desses países, dentre eles o Brasil, foi de 19,6 kg no período de 2013 até 2015 e que a perspectiva é de ascensão nos próximos anos nessas nações, com a média podendo chegar a até 21,5 kg em 2025.
Mas será que o Brasil acompanhará esse crescimento? Essa é apenas mais uma dúvida em um cenário marcado pela reticência em relação ao consumo desse tipo de produto pelo brasileiro. Para Meg Felippe, professora de tecnologia de pescado na Unicamp e na Esalq/USP e diretora do Compesca (Comitê da Cadeia Produtiva da Pesca e da Aquicultura), ligada ao Sindicato da Indústria da Pesca no Estado de São Paulo, o principal fator relacionado ao baixo consumo é cultural.
“Existe um hábito cultural que vem desde a nossa colonização. O Brasil, de um modo geral, tem muito acesso à carne bovina e consome bastante esse tipo de proteína. Em contrapartida, não se interessa e não conhece no mesmo nível as outras que existem. Por outro lado, populações do Norte e Nordeste chegam a consumir até 40 kg per capita ao ano, o dobro do que a média mundial consome”, explica Meg.
Pensando na reversão desse cenário, foi criada há 15 anos pela Secretaria Especial da Pesca e Aquicultura, com apoio de entidades privadas, a Semana do Peixe, que engloba um conjunto de ações e esforços da cadeia produtiva de peixes e frutos do mar para estimular o consumo de pescado no Brasil.
“O brasileiro tem o hábito de consumo de pescado apenas na quaresma, durante a Semana Santa e no final de ano com as festas de Natal. Percebíamos um decréscimo muito forte no meio do ano, que inclusive chegava a ficar abaixo da média anual no país. Foi aí que decidiu-se criar a Semana do Peixe”, afirma Meg.
A Secretaria de Aquicultura e Pesca, atual responsável pelo trabalho do extinto Ministério da Pesca e Aquicultura, em 2015, que a partir do último dia 27 de abril passou a ser vinculada à Presidência da República, informou que apoia não somente a Semana do Peixe, mas também diversas outras ações de incentivo ao consumo.
O último levantamento da FAO/ONU mostra que o brasileiro tem aumentado o consumo de pescado nos últimos anos, apesar de ainda estar longe dos padrões mundiais, e as perspectivas são otimistas. “Temos visto um amadurecimento nas reuniões da cadeia e isso certamente vai proporcionar um crescimento contínuo nos próximos anos”, prevê a especialista.
O aumento do consumo no Brasil parece estar ligado ao interesse pela gastronomia que, por sua vez, apresenta ao consumidor novas opções. “As pessoas ficam encantadas por esse universo e se interessam quando experimentam um peixe de qualidade, bem feito e com temperos adequados”, ressalta. Além disso, a especialista acrescenta ainda que o consumidor também tem confiado mais nas empresas, após a superação de atitudes controversas de parte da cadeia do peixe nos últimos anos.
Em linhas gerais, os diversos benefícios do consumo de pescado são consensuais, com relação direta com nutrição, economia, sustentabilidade e meio ambiente. “São vários os benefícios do consumo de pescados, tanto para a saúde, por ser uma proteína branca, quanto os associados ao aspecto ambiental com a piscicultura, em que é possível a criação dos peixes em espaços menores do que os utilizados na pecuária, por exemplo”, explica Meg.
Através da demanda por pescados, peixarias especializadas oferecem novos serviços à população. É o caso da Ocean Six, que não só vende mas também orienta no preparo. Os sócios da empresa estão no mercado de pescados há mais de 40 anos e, focados na qualidade dos produtos, resolveram fundar a peixaria gourmet.
“Nosso trabalho tem crescido nos últimos anos e muitos clientes que antes tinham o receio em comprar pescados na feira e falta de conhecimento em preparar o peixe, agora podem contar com esse auxílio”, diz o sócio-proprietário da empresa, Marcelo Yoshio Nonaka, que espera uma estabilização da economia no país para expansão da empresa.
A produção de pescado no Brasil
O pescado brasileiro é obtido de duas formas, a pesca e a aquicultura. A Embrapa define que “A pesca baseia-se na retirada de recursos pesqueiros do ambiente natural. Já a aquicultura é baseada no cultivo de organismos aquáticos geralmente em um espaço confinado e controlado.”
Ainda não há uma gestão da pesca eficaz no Brasil. Dentre os estados brasileiros, São Paulo é o único que gera dados ininterruptos desde 1944, por meio do monitoramento da atividade pesqueira marinha e estuarina, ligado ao Instituto de Pesca. Cintia Miyaji, da Aliança Brasileira para a Pesca Sustentável, lamenta a falta de dados abrangentes: “Não temos estatística pesqueira, medidas concretas de controle da pesca. As pessoas que fazem pesquisa e fazem gestão da conservação no país têm dificuldades em encontrar instrumentos oficiais para monitorar o que acontece”. Ela também aponta para outro problema relacionado à falta de dados sobre a pesca: “Atualmente no Brasil, a falta de dados estatísticos gerados de maneira contínua emperra a certificação da pesca extrativa, ao contrário da aquicultura, em que os produtores encontram formas de certificar sua produção internacionalmente”.
“Não é falta de competência, mas uma questão institucional”, diz Antônio Olinto Antônio Ávila da Silva, coordenador de pesquisa da Unidade Laboratorial de Referência em Controle Estatístico da Produção Pesqueira Marinha do Instituto de Pesca. “Eu atribuo essa dificuldade do Brasil nos últimos dez anos em manter um sistema de monitoramento à instabilidade do institucional. Até 2008 o responsável era o Ibama, a partir desse ano passou pela Secretaria Especial de Pesca e Agricultura passando pelo Ministério da Pesca, Ministério da Agricultura, Ministério da Indústria e Comércio, Presidência da República, voltando para a Casa Civil.”. No Instituto de Pesca, os responsáveis pelo monitoramento pertencem a um quadro de funcionários concursados, dando estabilidade à instituição.
Apesar dessa dificuldade, houve um trabalho de reconstrução de dados nacionais dos últimos anos da atividade pesqueira marítima (artesanal e industrial), realizado pela parceria do Instituto de Pesca e vários especialistas da costa brasileira. Os pesquisadores usaram dados de documentos, a maioria impresso, espalhados e de várias fontes, IBGE, Superintendência do Desenvolvimento da Pesca, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama) e do Ministério da Pesca e Agricultura e Centro de Pesquisa e Gestão de Recursos Pesqueiros do Litoral Sudeste e Sul do Brasil – CEPSUL/ICMBio/MMA. Esses dados estão disponibilizados pelo Instituto de Pesca e mostram que a quantidade de pescado cresceu até 1985, seguido de uma queda relativa que durou até o início dos anos 2000. [Figura 1].
Figura 1 - Dados da pesca marinha nacional de 1950 a 2010. Fonte dos dados: Instituto de Pesca. Disponível em: http://www.propesq.pesca.sp.gov.br/37/conteudo. Acesso em 4 mai 2018.
Segundo Vinicius Pagani de Melo, que mostrou dados similares na sua dissertação, a queda observada a partir de 1985 está relacionada à sobrepesca, fruto de políticas públicas inadequadas, sem qualquer consideração à sustentabilidade dos recursos pesqueiros. A retomada do crescimento, a partir dos anos 2000, é um reflexo de subsídios e cuidados com a sustentabilidade.
A produção de pescado não é uniforme em todo o país e vem sofrendo consideráveis mudanças ao longo dos anos. Sobre os dados de pesca em São Paulo, Ávila da Silva aponta que nos vinte últimos anos a produção tem caído em São Paulo. “Isso se deve à saída das embarcações de pesca, principalmente as industriais, de maior porte, de São Paulo para Santa Catarina e também Rio de Janeiro. Uma das causas foi que, na década de 1990, Santa Catarina deu várias vantagens econômicas, como isenção de impostos. Outra causa foi que, depois dos anos 2000, o litoral de São Paulo começou a ter áreas de proteção ambiental, dificultando a pesca industrial, como a de parelha”.
De acordo com o documento publicado pela FAO ONU, a China ocupa o primeiro lugar na produção mundial de pescado a partir da captura da pesca em águas dentro do território, que inclui rios e lagos, contabilizando uma média anual de 2.215.351 toneladas no período de 2003 a 2012. O Brasil ocupa a 11ª posição com a produção média anual de 243.170 toneladas. Em 2014, o país teve uma redução na produção de pescado para 235.527 toneladas anuais (média), que, de acordo com o mesmo documento da FAO ONU, pode estar associado à poluição, degradação ambiental e esgotamento das fontes de pesca.
As diferenças relativas ao pescado também se refletem na aquicultura, que corresponde a um maior número da produção de pescado no país. Dados do Banco Multidimensional de Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (BME-IBGE), mostram que as regiões que em 2016 mais produziram pescado foram as regiões Norte e Sul. O país vem aumentando a produção por meio da aquicultura: enquanto em 2013 a produção era de 476 mil toneladas em 2016 chegou a 580 mil toneladas de pescado.
Figura 2 - Produto da aquicultura, soma da quantidade produzida em quilos por todos os municípios da região geográfica. Fonte dos dados BME-IBGE. Consulta em 30 abr 2018.
O pequeno produtor participa com 86% da produção nacional de peixe, segundo um censo de 2008 do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. As metas da antiga Secretaria da Agricultura e Pesca contemplavam medidas relacionadas ao aumento da linha de crédito ao pequeno produtor e formas de aumentar a produtividade em consonância com a sustentabilidade. Em nota, a Secretaria da Agricultura e Pesca relatou que “após a extinção do Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA), em 2015, e as subsequentes transições institucionais da Secretaria de Aquicultura e Pesca para MAPA, MDIC e agora Presidência da República, não houve um trabalho diferenciado junto aos pescadores e empresários do setor pesqueiro em relação às linhas de crédito, porém, essas linhas de financiamento continuam disponíveis para acesso dos interessados”.
A participação nacional no mercado externo ainda é modesta. De acordo com a FAO ONU, no período de 2013 a 2015, a exportação de pescado no Brasil teve uma média de 40 mil toneladas ao ano, pequena se comparada com a importação que teve uma média anual de 757 mil toneladas.
Sobre o assunto, Vander Bruno dos Santos, pesquisador do Instituto de Pesca, comenta: “O Brasil ainda não consegue atender todo o mercado interno e há também a preferência do mercado por outras espécies”. “O consumo nacional é dependente da importação, que representa cerca de 60%, principalmente por conta do custo. O brasileiro é culturalmente apaixonado pelo bacalhau e salmão e no mercado brasileiro o preço ainda é alto”, complementa Meg.
Qualidade e sustentabilidade do pescado
Pesquisas como as realizadas pelo Instituto da Pesca junto aos produtores vêm mirando o aumento do crescimento e qualidade do pescado, bem como possíveis formas de se diminuir o preço final ao consumidor. Um exemplo é a pesquisa de Vander Bruno dos Santos sobre manejo e maior rendimento do crescimento de organismos aquáticos. “Nós avaliamos o crescimento dos organismos em vários aspectos, como a conversão alimentar, ganho de peso, taxa de crescimento e coisas intrínsecas ao organismo, como o crescimento muscular do pescado, ou seja a proteína que consumimos. O manejo do cultivo pode garantir o aumento de gordura e de carne do organismo. Um exemplo é a utilização de probióticos que pode aumentar o crescimento de 10% a 30% garantindo o desempenho dos organismos e diminuindo o uso de medicamentos”.
A importância da redução dos medicamentos está ligada à sustentabilidade do meio ambiente. Cíntia Miyaji, cofundadora da Aliança Brasileira pela Pesca Sustentável explica que “o impacto da aquicultura no meio ambiente é maior do que o relacionado ao extrativismo, na pesca. Ela pode gerar um impacto grande no local onde é realizada, pela falta de controle dos antibióticos usados e da qualidade e da quantidade de ração fornecida aos peixes, ocasionando a devastação da fauna local. Apesar da boa qualidade do pescado, ele pode deixar um legado nocivo ao meio ambiente”.
A Aliança Brasileira pela Pesca Sustentável vem reunindo, desde 2015, as iniciativas nacionais relacionadas à sustentabilidade da pesca e da aquicultura e conta com a participação de ONGs, pesquisadores, governos, estudantes, indústria e chefs. Esses esforços têm sido somados aos da Seafood Watch. Apesar de não contar com uma verba própria, a Aliança está organizando a quarta edição de um seminário de sustentabilidade, previsto para a última semana de julho em São Paulo. As informações estarão disponíveis nas redes sociais da Aliança.
Graciele Almeida de Oliveira é bacharel em química (USP), doutora em ciências – bioquímica, graduanda em educomunicação (USP) e pós-graduanda em jornalismo científico pelo Labjor/Unicamp.
Jhonatas Simião é jornalista formado pela PUC-Campinas e aluno do curso de especialização em jornalismo científico no Labjor/Unicamp.