Por Patrícia Villen
Imagem: Exposição de Ai Weiwei com sapatos deixados para trás em campos de refugiados
“A melhor escola de dialética é a emigração. Os dialéticos mais argutos são os refugiados. Refugiaram-se por causa das transformações, e não estudam nada além das transformações. Dos menores indícios inferem os maiores acontecimentos […]. Quando seus adversários triufam, calculam os custos da vitória, e têm um olhar apurado para as contradições”. Bertolt Brecht, Conversas de refugiados
Vivemos em um contexto marcado pelo aumento sem precedentes do número de solicitantes de refúgio, nas mais diferentes modalidades. Essa tendência verificada em escala global espelha, na verdade, sintomas da proliferação de situações de ameaça à pessoa humana – base de referência da proteção jurídica internacional do direito de refúgio[1] – e também a reação das pessoas, forçadas a deixarem seu países de origem por motivo de guerras, conflitos, desequilíbrios ecológicos, violência, perseguições políticas, étnicas, religiosas e outras formas de desrespeito aos direitos humanos, além das razões econômicas.
Não faltam relatos e imagens, fornecidas pela mídia, de barcos lotados de homens, mulheres, crianças e até bebês no cemitério geral do Mediterrâneo; de cenas de desespero, que se repetem nos diferentes cantos do mundo, de pessoas caminhando milhares de quilômetros pelos chamados corredores migratórios, enfrentando a violência das fronteiras nacionais e de seus empresários, e se expondo a diferentes tipos de abuso, arbitrariedade, exploração e até tortura (Perocco, 2019).
Os refugiados são as testemunhas da violência e do desespero do nosso tempo. O drama a que estão submetidos tem sido denunciado também por obras de grande valor artístico, como as instalações do chinês Ai Wei Wei – que coletou, ao longo de meses, roupas e sapatos dos refugiados que partiam a pé do Oriente Médio rumo à Europa – e também informativo, como o livro Naufragados sem rosto, um relato do trabalho da médica legista Cristina Cattaneo com os corpos dos que “morrem de esperança” no Mediterrâneo, a quem se nega até mesmo a própria identidade no momento de um sepultamento anônimo.
As fotos dos corpos do menino sírio Alan Kurdi, de apenas três anos, achado sozinho numa praia da Turquia, e a do pai com sua filha de dois anos (Oscar Alberto e Valéria), encontrados abraçados, vestindo uma mesma camiseta na beira no Rio Grande, fronteira do México com os Estados Unidos, pareciam poder exercer o papel de sensibilizar os governantes de Estados e suas populações para colocar um freio nas políticas restritivas de refúgio, que produzem essas tragédias. No entanto, a crueldade estampada nessas fotos não foi suficiente para brecar mais mortes, abusos, exploração e sofrimentos dos refugiados.
Nesse contexto, é incontestável a importância – ou mesmo a necessidade – do direito de refúgio, que remonta à antiguidade clássica e carrega séculos de construção, pelas sociedades, de um sistema jurídico internacional de proteção à pessoa humana. Esse direito ganhou sua conformação atual no período das duas grandes guerras mundiais, particularmente com o tratado de Genebra, de 1951, e com outros estatutos jurídicos regionais, que buscam atualizar e ampliar o entendimento da categoria de refugiado face à crescente instabilidade do sistema global. Fato é que o direito de refúgio, apesar de estar sempre sendo colocado em discussão para contemplar as transformações históricas e responder melhor à realidade do fenômeno migratório, tornou-se um direito internacional ratificado pela maioria dos Estados no mundo, que passaram, portanto, a ter o dever de dar proteção às pessoas solicitantes de refúgio que se encontram em um país diferente dos seus de origem, quando comprovados o fundado temor ou a perseguição.
O fim do direito de refúgio
A despeito de sua importância e necessidade, o direito de refúgio se tornou extremamente polêmico na atualidade. Os refugiados estão enfrentando um contexto de muitas barreiras, agravadas pela crise econômica, a começar pelo que Basso (2010) chama de racismo de Estado, mas também a xenofobia, a criminalização do refúgio, as diferentes técnicas perversas de controle – veja o sistema arbitrário de encarceramento e de externalização dos centros de detenção temporária de imigrantes e refugiados (Garcia, 2016) – enfim, variadas formas de desrespeito e restrição do direito de refúgio.
Por isso, é necessário chamar atenção para o atual debate sobre o fim do direito do refúgio, que aponta as diferentes manobras jurídicas e práticas políticas utilizadas para negar o sistema jurídico internacional do refúgio. Como se verá abaixo, essa tendência se manifesta em todas as regiões do mundo.
A Itália, uma das principais portas de entrada de solicitantes de refúgio na Europa, é hoje exemplo de um país, conforme explica Fabio Perocco, onde os refugiados compõem o grupo mais comprometido e vulnerável dos movimentos migratórios. Para Perocco, esse processo já estava ativo nas décadas anteriores e encontrou seu ápice com a Lei de Segurança (132), aprovada em 2018, quando Salvini ocupava o cargo de ministro do Interior. Essa lei é a prova formal de negação do direito de refúgio por ter introduzido diversos tipos de obstáculos para a concessão dessa proteção internacional e ter aumentado os motivos para a criminalização dos refugiados. O autor elenca as inúmeras aberrações jurídicas dessa lei, como a permissão que o solicitante de refúgio fique preso por até 210 dias nos chamados centros de detenção temporária ou nos abrigos de “acolhimento” e outras previsões para agilizar as expulsões, que desrespeitam o princípio do contraditório e do devido processo legal, além da própria Constituição. Ademais, leis locais foram aprovadas em algumas cidades para autorizar o trabalho gratuito de refugiados, na forma de sistema de “integração” e comprovação de inserção nessa sociedade.
A ideia de impedir que os refugiados coloquem o pé na Europa foi levada ainda mais a sério pelo chanceler austríaco Kurz. Representante da extrema direita, ele fez uma proposta à União Europeia de estabelecer uma lista de países terceiros “seguros” para onde enviar os solicitantes de refúgio, obrigando-os a fazer o pedido de refúgio e aguardar a resposta lá – solicitação que, como se sabe, leva meses ou até mesmo anos para ser julgada. Formalmente, não há, portanto, nenhuma violação ao Tratado de Genebra, mas apenas um deslocamento da sua efetividade prática a partir de acordos bilaterais.
Todavia, é na América do Norte, tradicional território de imigração, onde essa política está sendo ferozmente aplicada pelo governo Trump, que está, como sempre, à dianteira dessa tendência de ataque ao direito de refúgio. Sua obsessão de blindar este país com o muro na fronteira do México atinge diretamente os refugiados. Sua prática de obrigar os solicitantes, notadamente da América Central, a aguardar o julgamento do pedido de refúgio no México – mais especificamente em locais altamente marcados pela violência – tem sido amplamente denunciada por entidades representantes dos refugiados e por advogados. Outra prática que escandalizou o mundo foi sua inciativa de separar os filhos menores de seus pais indocumentados, que aguardam o mandado de expulsão nos centros de detenção.
Foram celebrados por esse país acordos com o México, Honduras e El Salvador, que obrigam os solicitantes a fazerem o pedido de refúgio nesses locais, sem pisar na “América”, ficando meses nesses países, em uma situação de total limbo jurídico, já que não têm sequer o direito de trabalhar. Na jurisprudência norte-americana sobre os pedidos de refúgio, fica claro o objetivo dos julgamentos nesse campo do direito, que longe de responderem à necessidade de proteção das pessoas em relação à violência que sofrem em seus países de origem, servem sobretudo para garantir que essas pessoas não tenham seus pedidos de refúgio aprovados nos EUA.
Na França, a robotização dos procedimentos para o pedido de refúgio obriga os potenciais solicitantes (portanto, pessoas que sofreram perseguições físicas e psicológicas) a insistirem inúmeras vezes em telefonemas (com horas de espera na linha) e a preencherem cadastros em sistemas online (muitas vezes com a rede saturada) para conseguirem exercer seu direito. Gaetane Lamarche-Vadel chamou esse sistema de “política do cansaço e da desmoralização”, que além de humilhar e fazer os refugiados se sentirem impotentes para exercerem seu direito de refúgio, é bastante eficaz no seu objetivo de os fazerem desistir do pedido ou de perderem o prazo legal para fazê-lo.
Nos países da periferia do capitalismo, onde, na verdade, se encontra a maior parcela de refugiados (cerca de 85%), a situação não é diferente. A inserção dos refugiados é muito precária e eles se deparam com os problemas estruturais típicos dessas sociedades com histórico colonial, quando não passam a viver nos campos de refugiados, que muitas vezes se transformam em cidades de refúgio permanentes, sem terem permissão para sair de lá.
Na África, um dos principais continentes de produção e concentração de refugiados, as tendências são parecidas com o que ocorre nas fortalezas dos países ricos, ou seja, prevalecem, segundo Bonaventure Rutinwa (1999), políticas para evitar que os refugiados cruzem as fronteiras, visando que permaneçam em seus países; são mais numerosos os casos de rejeição do que de aceitação dos pedidos de refúgio; e é prática corrente a expulsão dos refugiados (para seus países de origem ou países terceiros, onde correm risco de sofrer todo tipo de violência).
Na América Latina, essas tendências também se repetem. Segundo Pablo Ceriani, a “janela do refúgio” é um direito cada vez mais restrito, fora do alcance da maioria dos demandantes (e também de outras categorias de migração forçada). No Brasil, que costumava ser reconhecido por um histórico generoso com os refugiados, o número de solicitações de refúgio hoje ultrapassa consideravelmente os pedidos aceitos (Villen, 2018). As portarias 666 e 770 de 2019 do Ministério da Justiça, que reintroduzem a deportação sumária de “estrangeiros”, são um claro sinal de retorno à construção da visão do estrangeiro – imigrantes e refugiados – como um potencial inimigo que ameaça a segurança nacional (Quintanilha, 2019).
Em suma, as leis e práticas restritivas do refúgio desrespeitam o sistema internacional de proteção dos refugiados, expondo ainda mais as pessoas que sofrem violência em seus países. No atual contexto da coronacrise, essas fronteiras nacionais se fortalecem e se tornam mais arbitrárias, de forma que a tendência é de uma piora adicional na já complicada situação dos refugiados.
Por fim, uma importante reflexão se faz oportuna: quais serão os principais efeitos dessa nova realidade, que sinaliza o fim do direito ao refúgio? Além das mortes, expulsões e sofrimentos, é preciso lembrar que aqueles que não conseguem o estatuto de refugiado são muitas vezes levados a viver sem documentos, ou seja, na clandestinidade, estando ainda mais expostos a abusos e exploração na vida cotidiana e no trabalho.
Patrícia Villen é doutora em sociologia pela Unicamp e autora do livro (In)visíveis globais: imigração e trabalho no Brasil, Editora Alameda: São Paulo, 2018.
Referências
Basso, P. “L’ascesa del razzismo nella crisi globale”. In: Basso, P. (org.). Razzismo di stato: Stati uniti, Europa, Italia. Milano: FrancoAngeli, 2010.
Garcia, F. D. F. “Estado de emergência permanente: racialização, exclusão e detenção de estrangeiros na Itália”. Tese de doutorado – Universidade Estadual de Campinas, 2016.
Pereira, L. D. O direito internacional dos refugiados. Belo Horizonte: Del Rey, 2010.
Perocco, F. (org.) Tortura e migrazioni. Venezia: Ca’ Foscari, 2019.
Quintanilha, K. “Notas históricas sobre “pessoa perigosa” e a deportação sumária da Portaria 666”, Conjur, 7 ag. 2019.
Rutinwa, B. “The end of asylum? The changing nature of refugee policies in Africa”. Working paper 5. Oxford: New Issues in refugee research, 1999.
Villen, P. (In)visíveis globais: imigração e trabalho no Brasil. São Paulo: Alameda, 2018.
NOTA
[1] São elementos essenciais do instituto jurídico do refúgio a perseguição, o fundado temor e a extraterritoriedade (fazer a solicitação em país que não seja o seu de origem), ver Pereira (2010).