Por Lívia Mendes Pereira
O direito ao esquecimento relacionado à privacidade digital tem gerado controvérsias no meio social e jurídico. No Brasil, mesmo já existindo uma lei para o estabelecimento de princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet, essa questão não é regida de forma específica.
O desenvolvimento das novas tecnologias digitais fez com que a interpretação constitucional evoluísse e o conceito de direito ao esquecimento ganhasse novas interpretações diante do patrimônio digital, constituído por todos os dados depositados na internet, com informações privadas de cada pessoa. O mundo virtual é um repositório de dados pessoais – e com valor comercial para as chamadas big techs, as grandes empresas que dominam o mercado da tecnologia e da inovação.
O direito ao esquecimento pode ser definido como aquele de não permitir que dados ou fatos de sua vida sejam expostos para sempre, principalmente quando esses dados ou fatos possam causar algum dano. Isso já vinha sendo discutido em relação às informações divulgadas nos veículos de comunicação social tradicionais, como o jornal e a televisão, e exige novos parâmetros com as particularidades de armazenamento de dados da internet.
Ao compararmos esses diferentes meios de comunicação percebe-se que a internet possui um maior potencial para atingir o máximo de pessoas e de lugares em um curto espaço de tempo. Isso faz com que a problemática da privacidade seja cada vez mais complexa, gerando uma tarefa difícil para a sociedade e para o meio jurídico em prever as ocorrências e consequências do uso de dados pessoais nas redes.
Contexto brasileiro
No Brasil, os casos que abrangem o direito ao esquecimento não estão previstos em lei e são julgados caso a caso. Isso faz com que haja diferentes correntes de pensamento sobre o assunto. Porém, de modo geral, esse direito é atribuído a fatos que foram de interesse público no passado, mas que com o tempo perderam a importância social. Para que seja concedido, o fato não pode ser um atentado à liberdade de imprensa ou de expressão e não deve fazer referência a um acontecimento histórico relevante.
Sobre a liberdade de expressão e o acesso à informação, Daniel Sargento, professor de Direito Constitucional na UERJ, afirma que “o direito ao esquecimento somente seria admitido, em relação ao direito à proteção de dados pessoais, caso os dados em questão não tivessem interesse público”. Por isso, para o professor, é urgente que se construa instrumentos jurídicos que permitam às pessoas exercer alguma espécie de controle sobre dados digitais que não ostentam esse tipo de interesse. Assim, o exercício do direito ao esquecimento abrangeria circunstâncias específicas do meio digital, como a possibilidade de não processamento ou de apagamento permanente das informações.
Uma definição dos contornos do direito ao esquecimento com o estabelecimento de regras e exceções é o que defende Isabella Frajhof, em sua dissertação de mestrado O ‘Direito ao Esquecimento’ na internet: conceito, aplicação e controvérsias. Para Isabella, mesmo que a jurisprudência sobre o assunto esteja consolidada, os projetos de lei que ainda estão em tramitação contêm brechas que podem ameaçar os direitos fundamentais. Nesse sentido, o direito ao esquecimento aplicado à internet ainda tem sido apenas veiculado à garantia da proteção ao direito à privacidade e não a um direito com total autonomia. Então, com o passar do tempo, terá que estabelecer mecanismos específicos diante dos novos aspectos da sociedade da informação, recepcionando a ideia de desindexação de dados e não somente o aspecto da dignidade humana.
Victor Hugo Menezes, pesquisador da Universidade de Brasília, explica que o direito à desindexação “consiste na retirada de resultados da lista de um provedor de buscas quando pesquisado por uma palavra-chave em particular”. Esse direito, diferentemente do direito ao esquecimento, já encontra respaldos normativos específicos e proteção constitucional no Brasil, apoiado por uma emenda constitucional.
Direito ao esquecimento póstumo
Segundo o Código Civil de 2002 a tutela dos direitos de personalidade se estende à proteção de indivíduos falecidos, podendo o cônjuge ou qualquer parente em linha direta requerê-lo. Nelson Rosenvald, professor do Instituto Brasiliense de Direito Público, afirma no artigo “A sucessão no Facebook” que o conceito de herança foi atualizado com a questão do patrimônio digital. Além de valores monetários como investimentos bancários, atualmente as pessoas também deixam de herança bibliotecas de tocadores de música, códigos de acesso das mais variadas redes sociais, nomes de domínio, milhas aéreas, pontos de recompensa e criptomoedas, além da memória sentimental registrada nas redes e nos dispositivos. Diante dessa nova realidade, tanto os familiares quanto os provedores de serviços disputam os legados.
Rosenvald ressalta o movimento de algumas big techs no sentido de preservação de patrimônios digitais. A pioneira foi a Google, que em 2013 instituiu o Google Will, incluindo em suas redes a permissão aos usuários para escolher seus herdeiros digitais. Na sequência, em 2015, o Facebook também ofereceu o legacy contact. Os usuários podem designar uma pessoa para gerenciar suas contas postumamente, que escolherá entre remover ou “memorializar” a página.
Ao contrário dos EUA, que aprovou em 2015 a lei de Acesso Fiduciário Uniforme para Ativos Digitais (Uniform Fiduciary Acess to Digital Assets Act – UFADAA), o Brasil ainda não possui lei que dê ao indivíduo a possibilidade de planejar o gerenciamento de bens digitais pós-morte. Por enquanto há duas possibilidades: repassar as senhas, indicando ao provedor digital sua vontade de transmissão dos dados ou deixar uma declaração de última vontade com informações sobre o seu patrimônio digital.
A possibilidade de transmissão de um legado digital também diz respeito ao direito à privacidade e à valorização da dignidade humana. Nesse sentido, muitos autores defendem que deve haver um direito ao esquecimento enquanto conceito normativo relacionado ao mundo virtual, que não se sobreponha ao direito à informação, ao direito à privacidade e à intimidade das pessoas falecidas.
Lívia Mendes Pereira é doutora em linguística (Unicamp) e cursa especialização em jornalismo científico pelo Labjor/Unicamp