publicado originalmente na revista Jacobin(a) em julho de 2021
Em 30 de maio de 2020, com mais de dois anos de atraso, a SpaceX finalmente colocou astronautas no espaço. O ex-presidente Donald Trump esteve presente no lançamento. Depois de pressionar pela militarização do espaço, com a formação da Força Espacial dos EUA, Trump fundiu sua visão com a do fundador da SpaceX, Elon Musk, declarando que “em breve estaremos pousando em Marte e logo teremos as maiores armas já imaginadas em toda a história”.
No início do mandato de Trump, Musk enfrentou críticas por fazer parte do conselho consultivo do governo e por se recusar a renunciar, mesmo quando o ex-presidente proibiu a entrada de muçulmanos no país. Acreditava-se que Musk pretendia se beneficiar de subsídios públicos maiores, além dos bilhões que a Nasa deu à SpaceX, e ele caminha para isso com o antigo plano de Trump para levar astronautas de volta à Lua em 2024. Mais recentemente, os dois demonstraram as mesmas opiniões sobre a pandemia, quando compartilharam informações enganosas sobre saúde, e quando Musk ecoou os apelos de Trump pela “abertura da economia” para “devolver às pessoas sua liberdade”.
O lançamento em 30 de maio simbolizou tanto o desejo de Trump de projetar uma imagem de uma reavivada grandeza estadunidense como a necessidade de Musk de reforçar o mito que possibilita sua riqueza e estabelecer as bases para uma indústria espacial privatizada.
Os bilionários espaciais – com Musk e o CEO da Amazon, Jeff Bezos, à frente – têm pouco interesse no bem-estar da maioria da população. Acreditam que o espaço deve ser projetado para pessoas ricas como eles, com pouca menção sobre onde a classe trabalhadora se encaixaria nessa história. Ambos construíram suas riquezas por meio da exploração e suas visões do futuro não passam de uma extensão de suas ações presentes.
Uma história de violência
As práticas de negócios de Musk e Bezos são cada vez mais conhecidas e têm estado às claras durante a pandemia. Musk tentou reivindicar que a fábrica da Tesla em Fremont, na Califórnia, seria um “serviço essencial”, até que autoridades o forçaram a fechá-la; depois ele a reabriu, desafiando as ordens sanitárias. Como CEO da Tesla, Musk tem um longo histórico de oposição à sindicalização dos trabalhadores, dirigindo a companhia em meio a um alto índice de acidentes de trabalho (que a empresa tentou encobrir), e até mesmo ordenando que um ex-funcionário fosse hackeado e assediado depois que denunciou as práticas da empresa.
Enquanto isso, Bezos possui um histórico semelhante de abuso dos trabalhadores. Os armazéns da Amazon são conhecidos por terem taxas de acidentes maiores que a média do setor; a empresa tem lutado contra a sindicalização e as histórias sobre as terríveis condições vividas pelos funcionários são lendárias. Durante a pandemia, isso prosseguiu, com a empresa deixando de impor distanciamento social ou de fornecer equipamentos de proteção adequados até que os trabalhadores começaram a entrar em greve; além disso, a Amazon recusou-se a ser transparente com as informações sobre infecções e demitiu os que ousaram criticar a empresa – tudo isso enquanto a riqueza de Bezos crescia mais de 30 bilhões de dólares.
Mas as coisas vão além disso, porque as visões de mundo desses bilionários começaram a se formar muito antes deles iniciarem os impérios sobre os quais reinam atualmente.
Musk não teve uma infância comum, e sim uma criação endinheirada durante o apartheid da África do Sul. Seu pai era engenheiro e dono de parte de uma mina de esmeraldas na Zâmbia. Como contou à revista Business Insider: “Éramos muito ricos. Tínhamos tanto dinheiro que às vezes nem conseguíamos fechar nosso cofre”. No livro Elon Musk: Tesla, SpaceX, and the Quest for a Fantastic Future [Elon Musk: Tesla, SpaceX e a busca por um futuro fantástico], Ashlee Vance descreve como Musk recebeu dinheiro de seu pai quando estava iniciando um de seus empreendimentos originais. Ele também tinha uma admiração especial por seu avô, que se mudou do Canadá para a África do Sul do apartheid depois de se manifestar “contra a interferência do governo nas vidas dos indivíduos”.
A história de Bezos não é muito diferente. Seu pai era um rico engenheiro de petróleo em Cuba enquanto Fulgencio Batista estava no poder. No livro Bit Tyrants: The Political Economy of Silicon Valley [Tiranos dos bits: a economia política do Vale do Silício], Rob Larson explica que o pai de Bezos deixou a ilha após a Revolução Cubana e passou sua perspectiva “libertária” para o filho. Os pais de Bezos investiram quase 250 mil dólares na Amazon em 1995, quando ela estava começando.
Esses barões do espaço ganharam seus bilhões por meio da exploração de seus funcionários e vieram de origens abastadas, possibilitadas pela extração de recursos. Quando escavamos suas ideias para um futuro no espaço, fica explícito que eles buscam estender essas condições para o cosmos, em vez de desafiá-las em favor de uma exploração espacial pelo benefício de todos.
O futuro que eles querem
Musk e Bezos são as principais figuras à frente do impulso moderno pela privatização e colonização do espaço por meio de suas respectivas empresas, a SpaceX e a Blue Origin. Suas visões diferem ligeiramente, com Musk preferindo colonizar Marte, enquanto Bezos tem mais interesse em construir colônias espaciais na órbita da Terra.
Em 2016, Musk afirmou que começaria a enviar foguetes a Marte em 2018. Isso nunca aconteceu, mas sua obsessão não parou por aí. Musk está determinado a fazer dos humanos uma espécie multiplanetária, enquadrando nossas escolhas como colonização do espaço ou o risco de extinção. Bezos diz que a Terra é o melhor planeta do nosso sistema solar, mas que se não colonizarmos o espaço, estaremos nos condenando à uma “condição estacionária e ao racionamento”.
Esses enquadramentos atendem aos interesses desses bilionários e fazem parecer que colonizar o espaço seria uma escolha óbvia e necessária, quando não é. Ao mesmo tempo, ignoram sua culpabilidade pessoal e o papel do sistema capitalista que eles buscam reproduzir na raiz dos problemas dos quais eles dizem que precisamos fugir, em primeiro lugar.
Os bilionários têm uma pegada de carbono muito maior do que as pessoas comuns, com Musk voando em seu jato particular por todo o mundo, embora alegue ser um campeão da causa ambiental. A Amazon, enquanto isso, corteja as empresas de petróleo e gás com serviços em nuvem para tornar seus negócios mais eficientes, e a Tesla vende uma falsa visão de sustentabilidade que serve de propósito a pessoas como Musk, enquanto o capitalismo continua levando o sistema climático à beira do precipício. Colonizar o espaço não nos salvará da distopia climática movida a bilionários.
Esses bilionários, no entanto, não escondem a quem atenderiam os seus futuros. Musk já forneceu vários números diferentes para o preço de uma passagem a Marte, mas eles nunca são baratos. Ele disse a Vance que as passagens custariam entre 500 mil e 1 milhão de dólares, por isso ele acredita que “é altamente provável que haja uma colônia marciana autossustentável”. Entretanto, os trabalhadores de tal colônia sem dúvida não seriam capazes de comprar sua própria ida. Em vez disso, Musk tuitou um plano para a servidão por contrato em Marte, segundo o qual os trabalhadores tomariam empréstimos para comprar suas passagens e as pagariam mais tarde porque “haverá muitos empregos em Marte!”.
Bezos é ainda mais aberto sobre como a força de trabalho teria de se expandir para atender a sua expectativa, mas não tem muito a dizer sobre o que eles farão da vida. Seu plano para manter o “crescimento e dinamismo” econômico exige que a população humana cresça até atingir um trilhão de pessoas. Ele afirma que isso criaria “mil Mozarts e mil Einsteins” que viveriam em colônias espaciais que deverão abrigar um milhão de pessoas cada, com a superfície da Terra sendo destinada principalmente ao turismo. Enquanto isso, o trabalho industrial e de mineração seria deslocado para a órbita, a fim de deixar de poluir o planeta e, embora ele não reconheça isso explicitamente, é provável que você encontre muitos desses trilhões de trabalhadores na labuta pelo seu senhor espacial e seus descendentes.
O espaço não deveria beneficiar os capitalistas
Em 1978, Murray Bookchin investiu contra um certo tipo de futurismo que buscava “estender o presente rumo ao futuro” e que desejava que “corporações multinacionais se tornassem corporações multicósmicas”. A maior parte desse pensamento sobre o futuro tem obsessão por possíveis transformações tecnológicas, mas busca preservar as relações sociais e econômicas existentes – “o presente como existe hoje, projetado para daqui a cem anos”, como colocou Bookchin. Esse é o cerne da visão dos bilionários espaciais para o futuro.
O espaço foi usado por presidentes anteriores nos EUA para reforçar o poder e a influência estadunidenses, mas era amplamente aceito que o capitalismo acabava nos limites da atmosfera. Esse não é mais o caso – e assim como as expansões capitalistas do passado se deram à custa dos pobres e trabalhadores para enriquecer uma pequena elite, o mesmo acontecerá com esta. Bezos e Trump podem ter uma rixa pública, mas isso não significa que seu interesse mútuo não seja atendido por um renovado impulso dos EUA rumo ao espaço, que canaliza maciços fundos públicos para bolsos privados e que busca abrir os corpos celestes para a extração capitalista de recursos.
Isso não quer dizer que precisamos interromper a exploração espacial. O interesse coletivo da humanidade é beneficiado quando aprendemos mais sobre o sistema solar e o universo para além dele, mas tais missões devem ser impulsionadas pelo ganho de conhecimento científico e pelo aumento da cooperação global, e não pelo nacionalismo e pela obtenção de lucros.
E, ainda assim, é exatamente nisso que os bilionários espaciais e os autoritários estadunidenses encontraram uma causa comum, com Trump declarando em uma coletiva de imprensa da Nasa que “uma nova era de ambição americana começou agora”, poucas horas antes de cidades por todo o país terem sido colocadas sob toque de recolher, em junho. Antes que o espaço possa ser explorado de uma forma que beneficie toda a humanidade, as relações sociais existentes precisam ser transformadas, e não estendidas rumo às estrelas como parte de um novo projeto colonial.
Paris Marx é um escritor de tecnologia canadense. Ele é o apresentador do podcast Tech Won’t Save Us e autor do livro Road to Nowhere: What Silicon Valley Gets Wrong about the Future of Transportation (Verso, 2022).