Devolução de bens culturais: a decolonialidade como bússola e freio

Por Rodrigo Christofoletti

 Meia década após a publicação do relatório escrito em parceria pelo senegalês Felwine Sarr e a francesa Bénédicte Savoy, intitulado A Restituição do Patrimônio Cultural Africano. Rumo a uma Nova Ética Relacional, encomenda expressa do presidente francês, Emmanuel Macron, o tópico da devolução e repatriação de objetos de arte adquiridos pelas grandes potências em tempos de colonização, via de regra, por meio de saques intencionais, nunca teve tanta visibilidade. A devolução/restituição de bens culturais tornou-se uma questão cada vez mais proeminente para a diplomacia cultural, refletindo uma mudança nas discussões políticas Norte-Sul no sentido de um diálogo renovado sobre a cultura.

O histórico dos apelos de restituição do espólio cultural africano, no entanto, remonta a décadas atrás. A Convenção de 1970 sobre os Meios de Proibir e Prevenir a Importação, Exportação e Transferência Ilícitas de Propriedade de Bens Culturais ajudou a consolidar um quadro comum não só para os países tomarem medidas para proibir e impedir a importação, exportação e transferência de bens culturais, mas também fornece as condições para a sua devolução e restituição. Nos últimos anos, tem havido um aumento nas exigências de restituição de artefatos da era colonial, refletindo uma mudança nas discussões políticas Norte-Sul no sentido de um diálogo renovado sobre a cultura. Desde 1978, Amadou-Mahtar M’Bow, então Diretor Geral da Unesco, já defendia um reequilíbrio do patrimônio cultural global entre os hemisférios norte e sul e fez um apelo “ao retorno de uma herança cultural insubstituível àqueles que a criaram”. Em finais da década de 1970, o continente africano ainda representava uma espécie de celeiro exótico para a Europa e era conhecido pelos estereótipos que ganharam vida após séculos de espoliação. Quarenta anos depois, o relatório Sarr/Savoy, como ficaria conhecido o documento, impactaria o universo do patrimônio de forma muito mais incisiva do que os apelos de M’Bow na Unesco de sua época.

O desejo de em cinco anos dotar o debate de esclarecimentos suficientes para se iniciarem os trabalhos de devolução sistemática, acabou sendo postergado e atrapalhado pela pandemia de covid 19, que atravessou não apenas os planos da restituição, como também modificou a forma como olhamos para os acervos e os museus ao redor do mundo. Mas, se restituir, significa literalmente devolver um item ao seu legítimo proprietário, esse termo serve para nos lembrar que a apropriação e a fruição de um item que se deve ser restituído, baseiam-se em um ato moralmente repreensível. O ato implícito do gesto de restituição é muito claramente o reconhecimento da ilegitimidade da propriedade da qual alguém já havia reivindicado propriedade, não importa a duração de tempo em que ocorreu a espoliação.

Neste debate sobre a devolução dos bens culturais da África, as pessoas afetadas dificilmente têm clareza sobre o que dizer. Mas o que de fato querem os africanos? As opiniões divergem. Ao contrário da maioria dos críticos que enxergam na repatriação dos objetos africanos um resgate histórico, o jornalista tanzaniano, Charles Kayuka, é bastante crítico com relação a essa matéria e afirma que a devolução de bens culturais, como recomenda Bénédicte Savoy, poderia, na verdade, fazer mais mal do que bem. Isso poderia desencadear disputas domésticas.  Entre posições favoráveis e desfavoráveis o debate segue o fluxo sinuoso dos rios africanos. É preciso devolver o patrimônio espoliado, mas antes há que admitir o erro da colonização. Esta afirmação tem sido recorrentemente o pano de fundo de uma discussão que começa a ganhar volume em países tradicionalmente refratários a essa discussão, sobretudo na Europa central. Espanha e, sobretudo Portugal, são bons exemplos disso. Em Portugal, ainda não se discute na esfera pública a restituição de objetos e documentos às ex colônias, embora seu atual presidente tenha aberto a porta do diálogo com uma fala para muitos demagógica, sobre a necessidade de ressarcir as nações colonizadas. Enquanto isso, países como França e Alemanha já o fazem a alguns anos. O governo tem buscado realizar um inventário de bens culturais para devolver aos países originários, mas pesquisadores se questionam por que motivo o país está atrasado nesse debate, sendo que museus e arquivos recebem pedidos de devolução de alguns dos países colonizados pelos lusitanos? A discussão vem de longa data mas, ao avaliar pela sua presença mediática nos últimos dois anos, acentuada no com a publicação de um relatório oficial defendendo a restituição do patrimônio de origem africana incorporado nas colecções públicas francesas, nunca esteve tão presente como agora.

Restituição como reparação histórica: o que vale para um, vale para todos?

Os gregos se perguntam, com mais ressentimento a cada ano, quando os mármores do Partenon serão devolvidos? De mesma forma, são ignorados os apelos de devolução dos moais chilenos da Ilha de Páscoa; e os egípcios ouvem um silêncio petrificante, quando o assunto é a devolução da famosa pedra de Rosetta, três dos milhares de exemplos de objetos retidos pelos museus britânicos. Felizmente, outros casos de objetos sagrados começam a ter ocaso diferente, como é o episódio do pingente que se consagrou como a epítome da arte africana, conhecido por cinco entre cinco especialistas ao redor do mundo, e popularizado pela super exposição de sua figura, o mesmo usado no peitoral pelo rei do Benin em ocasiões cerimoniais, representando a Idia, a iyoba (rainha mãe); ou a máscara do povo edo devolvida à Nigeria pela Escola de Design de Rhode Island, EUA (2022): dois exemplos do quanto a temperatura do debate sobre a devolução dos objetos africanos espoliados no período da colonização subiu nos últimos anos.

Se levarmos em consideração que mais de 90% dos objetos de museu – desde obras de arte conhecidas a artefatos do quotidiano – provenientes da África Subsariana estão alojados fora do seu continente de origem, apesar dos persistentes pedidos para a sua devolução, faz -se necessário de fato rever as bases nas quais essas aquisições se deram, e diante disso, reorganizar a forma de como ficarão em um futuro próximo. O relatório inovador da França reverteu o fluxo cultural ao fazer a simples escolha de considerar os materiais africanos de um ponto de vista africano. A noção de uma nova ética relacional abre a possibilidade de novas vozes serem ouvidas, dentro e fora da África. Até 2023, de acordo com o Projeto de Restituição Aberta, dos mais de um milhão de artefatos africanos conhecidos mantidos involuntariamente fora do continente, menos de mil foram devolvidos. Este projeto procura abrir o acesso à informação sobre a restituição da cultura material africana e dos antepassados ​​humanos, para capacitar todas as partes interessadas envolvidas na tomada de decisões baseadas no conhecimento.

Mas, quais são as implicações da repatriação desses objetos considerados patrimônio? Grandes pressões de justiça histórica colocam este tema no centro das discussões. Afinal de contas, tudo deve ser restituído, devolvido, repatriado? Eis um grande dilema. Como fazer uma regra que dê conta de todas as especificidades? Em quais casos devem ser devolvidos? Como fazer uma regra que dê conta de todas as especificidades?  Essas questões instituem um contra dilema: como os países/espaços/comunidades originários cuidarão do que foi devolvido…? É, claro que nem tudo deve ser restituído, mas também é evidente que nem todos os objetos devem ser retidos e não devolvidos. A repatriação e a restituição não são o fim, mas o início de um novo tipo de ação preservacionista que mobiliza novas concepções e papéis.

Ao pensarmos os efeitos da decolonialidade como bússola e freio, a estrutura intelectual da decolonialidade fornece um contrapeso ao local onde o poder reside inquestionavelmente. Reflete ideias políticas e identidades locais e pode contribuir tanto para a igualdade como para a desigualdade. Os recentes debates amplamente divulgados sobre a devolução do patrimônio (colonialmente) saqueado aprofundaram as discussões sobre a descolonização e mudaram os discursos em torno do “patrimônio”. O mapeamento de outros atores na produção e gestão do patrimônio, com presença crescente de temas que abordam “latinidades” e “decolonialidades”, tem ganhado maior visibilidade à medida que novos desafios surgem. A repatriação/devolução de bens espoliados pode ser visto como uma reparação histórica, mas antes de tudo, como uma bandeira de soberania, pois ao respeitarem e reverem seu papel na história dos povos colonizados, os países colonizadores reaprenderão com sua própria história. Todos nós somos atores convidados a buscar repostas para essas perguntas. Os países detentores desses acervos, mais ainda. Caso contrário, condenaremos as gerações futuras a financiarem outras reparações, indistintamente.

Rodrigo Christofoletti é professor do programa de pós-graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

 Referências

“Discurso de Emmanuel Macron na Universidade de Ouagadougou”. 28 de novembro de 2017.

Christofoletti R. O tráfico internacional de bens culturais e a repatriação como

Fabry-Tehranchi, Irene (27 de novembro de 2023). “França e a restituição de bens culturais”. Idiomas além das fronteiras/Biblioteca da Universidade de Cambridge. Recuperado em 7 de dezembro de 2023.

https://openrestitution.africa/

https://pages.vassar.edu/realarchaeology/author/mrozon/.

https://www.restitutionmuseum.com/index.php/blog/call-for-restitution

Mbembe, Achille e Sarr, Felwine (eds). Para escrever o mundo africano e a política do tempo: imaginando os devires africanos – Polity, 2023.

Sarr, Felwine ; Savoy, Bénédicte “Rapport sur la restitution du patrimoine culturel africain. Vers une nouvelle éthique Relationshipnelle” Paris. (21 de novembro de 2018).