Por Beatriz Ortiz
Grande volume de lixo, aliado à falta de jurisdição específica sobre o tema provocam riscos à diplomacia
Em 2021, a Rússia conduziu um teste de míssil antissatélite de ascensão direta (Asat) com o objetivo de destruir um de seus próprios satélites, o Cosmos-1408, que estava inativo e em órbita desde 1982. Com o impacto, o objeto se fragmentou em pelo menos 1,5 mil pedaços com mais de dez centímetros e outros milhares de estilhaços não-rastreáveis. Os restos do Cosmos-1408 passaram a rodear a órbita baixa da Terra em grande velocidade, com ameaça de colisão contra naves espaciais em operação, estações espaciais internacionais e outros satélites. O teste foi registrado como o maior gerador de detritos espaciais desde 2007, quando a China executou ação semelhante.
“Os detritos espaciais, também denominados de lixos, resíduos e dejetos espaciais, se dividem em duas categorias: os artificiais e os naturais”, explica a mestranda em ciências aeroespaciais da Universidade das Forças Armadas (Unifa), Fernanda Vieira. “Os naturais, chamados de meteoroides, são pequenos fragmentos de matérias rochosas, metálicas ou a combinação das duas, oriundas de cometas e asteroides. Já os artificiais são todos os objetos feitos pelo homem, incluindo seus fragmentos e seus elementos que, após o fim de suas vidas úteis, permanecem vagando pela órbita terrestre ou reentrando na atmosfera. Eles podem ser derivados de foguetes, satélites, naves espaciais, equipamentos, ferramentas, entre outros”.
A Administração Nacional de Aeronáutica e Espaço (Nasa) e a Agência Espacial Europeia (ESA) estimam que existem pelo menos 175 milhões de objetos espaciais orbitando a Terra, com massa maior de 11,5 mil toneladas. A maior parte deles ronda a órbita baixa da Terra (LEO), região do espaço a até dois mil quilômetros da superfície terrestre, mas uma porcentagem considerável de detritos também está presente na órbita geoestacionária da Terra (GEO), com cerca de 36 mil quilômetros a partir da superfície terrestre. Esses objetos viajam pelo espaço a uma velocidade de até 36 mil quilômetros por hora – cerca de dez vezes mais que uma bala de revólver – e aproximadamente 200 deles caem na Terra todo ano.
Estimativa de número de detritos espaciais presentes na órbita terrestre
Maior de 10 centímetros | Entre 1 e 10 centímetros | Entre 1 milímetro e 1 centímetro | |
Nasa | 25 mil | 500 mil | Mais de 100 milhões |
ESA | 36,5 mil | 1 milhão | 130 milhões |
O alto número de detritos espaciais na órbita gera aumento do risco de queda de dejetos na superfície terrestre; colisão de resíduos espaciais uns contra os outros, gerando fragmentação cumulativa e crescente de dejetos e formando nuvens de detritos; contaminação de recursos espaciais; e interferência no funcionamento de sistemas de telecomunicações, internet e equipamentos de localização pelo sistema de posicionamento global (GPS). De acordo com o Relatório ambiental espacial da ESA, de 2023, “o número e a escala de satélites comerciais em órbitas baixas da Terra continuam a aumentar, sendo que uma quantidade insuficiente deles deixa as órbitas ao final da vida útil”. “O nosso comportamento no espaço parece ser insustentável a longo prazo”, registra.
Lacuna jurídica
A Era espacial começou a partir do fim da Segunda Guerra Mundial e início da Guerra Fria, em 1957. Em um cenário marcado pelo desenvolvimento financeiro e tecnológico, pela delimitação do espaço geográfico e do poder geopolítico e pela escassez de recursos naturais, os Estados Unidos e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas deram início a uma corrida espacial, com o objetivo de afirmar a soberania nacional. Seguidas por outras nações, as superpotências passaram a desenvolver e implementar seus próprios programas espaciais e a lançar uma enorme quantidade de satélites ao espaço, gerando os primeiros detritos espaciais artificiais.
“Diante desse crescimento expressivo, a comunidade jurídica internacional percebeu que não havia regramento sobre o lixo espacial. Não há previsão normativa específica sobre como proceder com a questão da poluição espacial, dos possíveis danos e tampouco sobre a imputação de responsabilidade. O termo ‘lixo espacial’ nem ao menos é mencionado na Convenção sobre responsabilidade internacional por danos causados por objetos espaciais. E, quanto à responsabilização perante a questão do lixo espacial, especificamente, não há previsão”, escreveu a pesquisadora Luana Miranda, no estudo Direito espacial internacional: responsabilidade dos Estados por danos causados por objetos espaciais”, publicado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS).
“Sobre detritos espaciais, o que se tem hoje são apenas diretrizes, códigos de conduta e recomendações, como o Código Europeu de conduta para diminuição de detritos espaciais, as Diretrizes de mitigação de detritos espaciais do Comitê interagência para coordenação de detritos espaciais (IADC) e do Comitê das Nações Unidas para o uso pacífico do espaço exterior (Copuos) e a recente Carta zero detritos, mas nada obrigatório ou vinculante – e essa é a grande questão”, afirma a analista em ciência e tecnologia sênior, chefe da Divisão de Extensão e Capacitação do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e autora do livro Um satélite para chamar de seu: ensaio sobre direito ambiental espacial, Márcia Alvarenga dos Santos.
Apesar de as regras não serem obrigatórias, Santos acredita que elas exercem papel importante no âmbito internacional. “O problema dos detritos espaciais sempre é debatido nas reuniões do subcomitê jurídico do Copuos, mas não chega a conceber um tratado, então os países acabam se apoiando em iniciativas paralelas e respeitando-as para continuar desenvolvendo atividades no espaço”, defende. “Ao mesmo tempo, como o espaço sideral é um bem comum, essas iniciativas não são o melhor caminho, porque o ideal seria discutir isso comumente, entre todos, e chegar em um consenso”. Atualmente, as atividades no espaço são regidas pelo Tratado do Espaço Sideral, de 1967, que não tem artigos específicos sobre detritos espaciais.
O lixo espacial na geopolítica aeroespacial
Para além dos impactos ambientais, a ausência de leis obrigatórias e vinculantes no espaço sideral, aliada à alta geração de dejetos, pode ocasionar uma série de consequências sociais, políticas e econômicas para a geopolítica aeroespacial. Em artigo publicado pela Revista de geopolítica, os pesquisadores Carlos Eduardo Rosa e Fernanda Vieira defendem que o aumento da geração de dejetos espaciais por conta de operações como o ASAT russo aumentam a probabilidade de colisões de detritos contra naves espaciais ou estações espaciais tripuladas e colocam em risco a vida e a integridade física de astronautas e turistas espaciais, o que pode acarretar conflitos diplomáticos.
No âmbito econômico, a concentração de detritos espaciais nas LEO e GEO aumenta a probabilidade de colisões dos resíduos contra satélites, o que pode levar à interrupção de serviços essenciais, como internet e GPS. E, politicamente, a fragmentação crescente de detritos pode inviabilizar o uso funcional e social das órbitas baixas, além de a situação poder ser considerada um novo tipo de arma de destruição em massa do meio ambiente espacial, trazendo impactos na geopolítica aeroespacial. O doutor em geografia com ênfase em geopolítica aeroespacial e professor da Unifa, Carlos Eduardo Valle Rosa, comenta que ainda não há solução tecnológica para conter os detritos e que não se sabe como lidar com esse problema.
“O tema está fervilhando e os órgãos internacionais já têm algumas tentativas de regular o assunto, tentando evitar os ASAT’s e buscando soluções tecnológicas para reduzir o lixo espacial. Pode ser que haja, no futuro próximo, uma solução para esse problema. Mas, por enquanto, não há – daí a grande preocupação com esses detritos”, afirma. “E um ponto importante para se pensar é que esse problema, que não tem uma única solução, ultrapassa as fronteiras tecnológicas, abarcando o campo da geopolítica aeroespacial e entrando nas questões jurídicas e de cooperação internacional”, complementa Vieira.
Beatriz Ortiz é graduada em jornalismo (UFU) e cursa especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp).