Por Luciana Rathsam
Marcas e memórias da imigração da maior metrópole do país, que teve sua história moldada pela presença imigrante, à qual deve grande parte de sua riqueza cultural e material.
Imagem: Parede de sobrenomes, Museu da Imigração
São Paulo teve sua história engendrada por imigrantes. Quando ainda era apenas uma vila, colonizadores portugueses forçavam a aculturação de populações indígenas e de africanos escravizados. No final do século XIX, a cidade era parada obrigatória dos imigrantes que desembarcavam no porto de Santos rumo às lavouras cafeeiras do interior paulista.
Com crescimento impulsionado pelo café, a ferrovia e os imigrantes, São Paulo passou a dispor de capitais, mercado de trabalho e mercado consumidor, reunindo assim as condições para a industrialização, a partir de 1920. E a presença imigrante foi fundamental também para o desenvolvimento da urbanização. Entre 1820 e 1949, o estado de São Paulo recebeu 2,5 milhões de pessoas de mais de 70 nacionalidades, concentrando mais da metade dos imigrantes que chegaram ao Brasil no período.
A partir da década de 1970 teve início um processo de desindustrialização da capital paulista e de reconfiguração do tecido urbano da cidade. Essa reorganização da metrópole se acentuou com o estabelecimento de empresas transnacionais e as mudanças na divisão social do trabalho em nível global. A cidade passou então a destacar-se pela centralidade no setor das finanças e nos serviços especializados do século XXI.
No contexto da globalização, o perfil dos imigrantes é bastante diverso daquele visto no início do século XX. A imigração não é mais majoritariamente branca e europeia, mas é multirracial, incluindo sul-americanos, africanos, cubanos, haitianos, sírios, palestinos, chineses e coreanos. Os espaços reservados a essa imigração heterogênea também são distintos.
Segundo dados da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS), em março de 2020 a rede socioassistencial do município de São Paulo atendeu 945 imigrantes de nacionalidades diversas, com predomínio de venezuelanos (346) e de angolanos (130). Muitos desses novos imigrantes são excluídos das oportunidades do mercado de trabalho, ainda que apresentem boas qualificações. “Há um “desperdício de cérebro” em relação aos refugiados. Muitos deles possuem escolaridade técnica ou curso superior, mas sua inserção na nova sociedade se reserva ao “lugar” que esta sociedade os coloca: em nichos de comidas étnicas, costura etc.”, ressalta Rosana Aparecida Baeninger, professora do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp e coordenadora do Observatório das Migrações em São Paulo.
Cartografia imigrante: fronteiras e pontes
A metrópole de São Paulo guarda em seu território uma memória imigrante. Esse fato pode ser constatado em bairros como o “Bixiga”, tradicionalmente relacionado à presença italiana, ou no bairro oriental da Liberdade, ou na região da rua 25 de março predominantemente árabe. Mais recentemente, novos fluxos de população de coreanos, bolivianos, paraguaios e chineses têm ocupado bairros como o Bom Retiro, Brás e Pari, enquanto restaurantes peruanos se estabeleceram em grande número em zonas do Parque Dom Pedro e da Santa Efigênia, como aponta Maura Pardini Bicudo Véras, professora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP e membro do grupo Diálogos Interculturais do Instituto de Estudos Avançados (IEA-USP).
O centro de São Paulo é por excelência o local de chegada dos fluxos de imigrantes, uma espécie de território estrangeiro onde concentram-se as redes de apoio e acolhimento. E é também endereço de muitos imigrantes e pessoas em situação de refúgio, especialmente dos estrangeiros recém-chegados à capital. “Conforme a população de maior renda se deslocou em direção aos bairros do quadrante sudoeste da cidade, região que conta com maior infraestrutura de lazer, transporte e serviços, novas levas de refugiados passaram a ocupar os vazios deixados na área central”, explica Véras.
A concentração de refugiados também se estende a outros pontos da cidade, como regiões da zona leste e da zona norte, que apresentam valores mais acessíveis de moradia.
A localização em determinados bairros pode oferecer aos imigrantes um território de pertencimento, onde se estabelecem conexões com suporte de língua e de costumes entre conterrâneos. Mas a forma de ocupação da cidade também revela segregação e desigualdades sociais. Esse fenômeno atinge a população em situação de refúgio, acentuando sua condição de vulnerabilidade, como aponta Vèras: “Há uma nítida relação entre territorialidade e segregação socioespacial, relacionada à pobreza e também aos efeitos de discriminação étnica e preconceitos em relação à cultura e a traços fenotípicos”.
A questão do preconceito e da discriminação também é destacada por Paulo Daniel Elias Farah, professor na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP), coordenador do Núcleo de Apoio à Pesquisa (NAP) Brasil África/USP e coordenador do Grupo Diálogos Interculturais do IEA/USP. “A repulsa ao estrangeiro, a xenofobia, revelam o traço comum a discriminações que incluem, de acordo com o grupo, racismo (sobretudo no caso de africanos e haitianos) e intolerância religiosa (especialmente contra muçulmanos e adeptos de religiões de matriz africana)”.
Paradoxalmente, a diversidade religiosa é um aspecto que atrai imigrantes para São Paulo, uma cidade que abriga, por exemplo, templos muçulmanos, mesquitas e salas de oração de movimentos islâmicos bastante diversificados, explica Farah, que é também diretor do BibliASPA, um centro de pesquisa, cultura e ações sociais relacionadas a imigrantes e refugiados.
Para o cantor Leonardo Matumona, de 24 anos, nascido no Congo e morador do bairro da Bela Vista, em São Paulo, a cidade ofereceu oportunidades e dificuldades. Leo conta que veio para São Paulo há 7 anos, e no primeiro ano ficou limitado ao espaço do apartamento, sem documentos e sem trabalhar ou estudar. Mas ele acredita que o começo é sempre difícil, para qualquer imigrante, em qualquer lugar. Naturalizado brasileiro, Leonardo diz que não pretende mudar de São Paulo, porque ama a cidade, que o ajudou a ser o que ele é. “As pessoas me veem como estrangeiro. Eu sim me considero brasileiro, também porque fui eu mesmo que solicitei a naturalização. Porque esse país, carrego no coração. Mas já sabe, um preto com sotaque e cabelo crespo, não vão achar que sou brasileiro”. Leonardo é músico da Orquestra Mundana Refugi, formada por integrantes brasileiros, imigrantes e refugiados de diversas partes do mundo. Para ele, a arte quebrou muitas barreiras e o ajudou muito na sua integração e na aceitação dos brasileiros.
No combate à xenofobia e ao racismo, os eventos e ações na cidade de São Paulo que promovem a cultura, a afirmação identitária e a conscientização têm um papel importante. Nesse sentido, a gastronomia também tem destaque na integração social com a cidade de São Paulo, reconhecida por sua cultura gastronômica internacional e cosmopolita. “Trata-se de uma forma de melhorar a aceitação de refugiados e fortalecer o relacionamento com os brasileiros na convivência diária, além de aumentar a autoestima e a valorização pessoal”, diz Farah.
Luciana Rathsam é bióloga formada pela Unicamp, com especialização em gestão ambiental pela USP. Aluna da especialização em jornalismo científico pelo Labjor.