‘Desenvolvimento urbano azul’ baseado no conhecimento

Por Emília Wanda Rutkowski

Em 2004, a National Geographic organizou uma expedição de cientistas e demógrafos, sob a coordenação de Dan Buettner, em busca de comunidades que desfrutam de vida digna inclusive na velhice. Tais lugares ficaram conhecidos como Zonas Azuis pela existência de um mapa onde Gianni Pes e Michel Poulain marcaram com círculos dessa cor as comunidades longevas que encontraram em seus estudos. O trabalho da expedição pode ser encontrado em um site[1], em um livro[2] e no documentário Como viver até os 100: os segredos das zonas azuis (2023), disponível na Netflix.

As populações longevas vivem em localidades distintas mundo afora — Okinawa, no Japão; Ikeria, na Grécia; Barbagia, Sardenha, na Itália; Nicoya, na Costa Rica e Loma Linda, nos Estados Unidos. Nestes lugares com geografia diversa florescem solidariedade, senso de família, comunidades conectadas, ritmo de vida sem estresses angustiantes, dieta saudável, estímulo à mobilidade rotineira: uma vida com propósito vivida por pessoas de sorriso fácil e alegria plena. Buettner conclui: “Não se trata de como evitar a morte, mas de aprender a viver.”

A cada nova comunidade visitada, as mesmas coisas foram percebidas pela equipe. O aprendizado com essas comunidades começa por reconhecer que o propósito estimula a vida cotidiana de cada pessoa. Passa pela certeza de que o trabalho de todo dia não deve ser solitário e competitivo, mas prazeroso. Prestar atenção no mundo a sua volta, no tempo de crescimento das plantas. A satisfação é encontrada em estar pleno e não saturado. Os hábitos tornados como tradição coletiva trazem a serenidade e estimulam boas risadas. O cuidado com a pessoa idosa fortalece os laços familiares e a apreensão de conhecimento-saberes. A fé espiritual alimenta a esperança.

Dan e sua equipe decidem experimentar: seria possível ampliar o tempo de vida das pessoas se essas premissas fossem adotadas? Buscaram uma cidade onde pudessem trabalhar com tod@s. A cidade selecionada foi Albert Loa, Minnesota, EUA. Possui 17 mil habitantes em um território de 32 km2. A população consultada aceitou com entusiasmo o convite. Uma bateria de exames foi executada, as premissas discutidas em detalhe e o plano de ação traçado. O Truth Vitality Test durou um ano. O resultado foi promissor. O grupo conseguiu ampliar em mais de três anos sua expectativa de vida.

Nem tudo, porém, mostrou ser positivo. Com a globalização, espalha-se pelo planeta o estilo estadunidense de viver com suas redes de fast food e alimentos super processados. Em localidades como Okinawa e Nicoya, a consequência em uma década, segundo Buetter informa no documentário, foi o número de pessoas que atingem mais de 80 anos estar diminuindo continuamente.

Esse estilo de vida globalizado faz do século 21 o século das cidades que, de acordo com o Banco Mundial[3], devem privilegiar conhecimento e inovação para gerar desenvolvimento e riqueza.

A primeira versão dos ecossistemas de inovação foi constituída como parques tecnológicos baseados em uma aliança entre indústria-governo-universidade,o chamado modelo de inovação em tríplice hélice, que floresceram mundo afora. No Brasil, foram de 28 iniciativas em operação em 2014[4] para 55 em 2021[5], cobrindo todas as regiões do país. Alguns exemplos de sucesso são Vale do Silício, EUA; Sophia Antipolis, França; e o Parque Tecnológico de São José dos Campos. São territórios construídos nas franjas urbanas, áreas rurais reservadas nos planos territoriais municipais para a expansão urbana, que tendem a se conectar, com suas empresas e startups competitivas, ao mercado globalizado. Entretanto, dificilmente buscam promover alterações marcantes nas áreas vizinhas ao empreendimento, nem incluir alguma atenção à vida cotidiana das pessoas que trabalham e/ou prestam serviços dentro dos parques tecnológicos ou em suas vizinhanças.

Em 2010, Carayannis & Campbell[6] já alertavam que inovação não deveria ser definida apenas pela criação e produção de conhecimento, mas também pela aplicação, difusão e uso do conhecimento. É nessa perspectiva que se propõe um empoderamento do sistema de inovação: a incorporação de uma quarta hélice, a sociedade organizada, com ênfase na mídia e na cultura (media-based, culture-based and value-based public). Assim, ressalta-se a busca por uma mudança paradigmática nos sistemas de conhecimento tornando primordial a existência e co-evolução de modelos plurais e diversos de conhecimento e inovação. “Cidadãos empoderados como produtores e usuários do conhecimento contribuem para o processo de democratização da inovação”, já preconizava Von Hippel[7] em 2005.

Há uma aposta que esses laboratórios vivos, ao engajar as comunidades no ambiente de co-criação, vão induzir a desfragmentação da cidade. Sem diminuir as conexões globalizadas de suas empresas e startups, os parques de hélice quádrupla priorizam a escala do lugar e suas conectividades para incentivar as cidades a se tornarem mais vibrantes e resilientes, capazes de se adaptarem aos desafios da crise socioambiental. Tanto o Sapiens Parque, em Florianópolis, como o Tech Square, em Atlanta, EUA, buscam o envolvimento da sociedade organizada nos seus processos de gestão e inovação.

O agravamento da crise socioambiental e a emergência climática, aprofundados pelas desigualdades socioeconômicas, principalmente nos países considerados de economias periféricas, reforçam o papel indutor das universidades e do desenvolvimento sustentável como força motriz dos ecossistemas de inovação. Nesse sentido, uma quinta hélice é proposta. Diferentemente dos modelos anteriores — universidade-indústria-governo-sociedade organizada —, ela não é propriamente um agente social, mas a natureza, com seus ecossistemas naturais consolidando, de acordo com Carayannis & Campbell7, a interface com a ecologia social. Um exemplo notável desse modelo é Paris Saclay, na França.

Esse modelo com cinco hélices almeja um desenvolvimento que busque relações mais simbióticas com a natureza e mais inclusivas com a sociedade. Desse modo, o desenvolvimento urbano baseado no conhecimento (Knowledge Based Urban Development  ou KBUD na sigla em inglês) torna-se uma estratégia impulsionadora da Nova Agenda Urbana[8].

O KBUD busca estabelecer cidades sustentáveis e inovadoras, que promovam o desenvolvimento e bem-estar humanos. As zonas azuis, por outro lado, são lugares que concentram pessoas centenárias esbanjando bem viver. Nesses lugares, as pessoas cuidam da produção de parte de seu alimento, que é entendido também como medicinal. A locomoção é facilitada por caminhos e distâncias agradáveis, a velocidade de execução das tarefas é desfrutada de modo a evitar o estresse e esbanjar prazer. Há um senso arraigado de comunidade, de cuidar da/o outra/o. Em 2022, urbanistas da Aachen University (Alemanha) e da Chalmers University of Technology (Suécia)[9], ao avaliarem instrumentos para cidades saudáveis, corroboraram o trabalho da expedição da National Geographic sobre a longevidade saudável nas zonas azuis.

Uma abordagem holística do planejamento das cidades incorporando ao KBUD o conhecimento-saberes advindos das zonas azuis apresenta desafios e oportunidades. Um dos principais desafios é equilibrar desenvolvimento econômico globalizado com a preservação dos ecossistemas naturais locais e a promoção de estilos de vida que estimule o bem viver, tornando os KBUD’s pontos de difusão de zonas azuis. Um passo primordial para enfrentar tamanho desafio está em garantir que as comunidades locais estejam ativa e continuamente envolvidas nos processos de planejamento e tomadas de decisão. Para consolidar a democracia do conhecimento almejada a partir do modelo de quíntupla hélice, Carayannis & Campbell5 recomendam que os governos desenvolvam políticas públicas par e passo com as comunidades locais, estimulando o fortalecimento das conexões sociais.

Em países como o Brasil, o desafio é maior e não menos estimulante: como uma sociedade majoritariamente analfabeta funcional se torna uma sociedade do letramento, do conhecimento? Para Paulo Freire[10], uma sociedade do conhecimento é uma sociedade da aprendizagem.

A existência de ecossistemas de inovação, com suas incubadoras e aceleradoras de startups a partir de KBUD’s azuis depende de parcerias de cunho transdisciplinar entre governos locais, instituições educacionais públicas e privadas e setores industrial e de serviços de modo a promover uma cultura de aprendizado — conhecimento, conhecimento-saberes — e de melhoria contínua [11]. A pandemia da Covid-19 recriou o tempo do olhar, refletir e conviver que, aliado à promoção de uma cultura de criatividade e inovação, podem viabilizar o desenvolvimento urbano azul baseado no conhecimento.

A equipe da National Geographic buscou por essa zona azul 2.0 e se deparou com Cingapura, um país ilha de 50 km de comprimento e 25 km de largura, ocupada pelo que Buettner denominou de “sociedade fabricada”, uma sociedade urbana complexa de 5,8 milhões de pessoas. Essa ilha, que na década de 1960 era habitada por pescadores com baixa expectativa de vida, tem hoje a maior expectativa de vida saudável do mundo (média de 82 anos). Chan Heng Chee, Ministra de Relações Internacionais, explica para Buettner que “os recursos naturais [de Singapura] são as pessoas, portanto as políticas públicas são para melhorar a vida das pessoas”. O serviço público do país tem um ditado: “Política pública é execução. Execução é política pública”. Assim, o governo de Cingapura ajuda as pessoas a ajudarem a si mesmas. Para que o comércio opte por alimentos saudáveis, há subsídio governamental – por exemplo, arroz integral é subsidiado em detrimento do arroz branco, tornando-se mais barato para o consumo. A quantidade de açúcar em refrigerantes como a Coca Cola é limitada a 12%. O território é projetado para que as pessoas estejam a 10 minutos de distância, seja caminhando seja de transporte público, do que necessitam. A ilha possui 350 parques públicos. É uma política pública que todo cidadão por volta dos 55 anos seja proprietário de sua própria residência, pois criam laços de vizinhança e cuidam melhor do que lhes pertence. As parcerias público-privadas para o desenvolvimento urbano objetivam a vida mais saudável.

O desenvolvimento urbano baseado no conhecimento que pretende também ser difusor de zonas azuis precisa ser projetado como o desenvolvimento do aprendizado, do conhecimento-saberes. Afinal a equipe do National Geographic conclui que se deve “mudar mentes para mudar o ambiente, pois o que nos leva a viver uma vida longa e saudável são as mesmas coisas que fazem a vida valer a pena”.

Emília Wanda Rutkowski é professora associada da FECFAU/Unicamp, coordenadora associada FLUXUS, Laboratório de Ensinagem em Sustentabilidade Socioambiental e Morfologia Urbana [membro do ORIS e da DASMind], membro da coordenação do projeto Fapesp CEUCI [Centro de Estudos sobre Urbanização para o Conhecimento e a Inovação]

[1] History of Blue Zones – Blue Zones

[2] BUETTNER, Dan. The blue zones: 9 lessons for living longer from the people who’ve lived the longest. National Geographic Books, 2012.

[3] World Bank Innovation policy: A guide for developing countries. Washington, D.C.: World Bank. 2010. http://hdl.handle.net/10986/2460

[4] Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Estudo de projetos de alta complexidade: Indicadores de Parques Tecnológicos (1st ed., Vol. 1, Ser. 1, Rep.). Brasilia, DF: MCTI. 2014.  http://www.anprotec.org.br/Relata/PNI_FINAL_web.pdf

[5] Faria, Adriana F de;Battisti, Andressa C de; Sediyama, Jaqueline A. S., Alves, Jeruza H, Silvério, José A. Parques Tecnológicos do Brasil. Viçosa, MG: NTG/UFV. 92 p. ISBN 978-85-66148-16-9. 2021. https://www.gov.br/mcti/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes-mcti/parques-tecnologicos-do-brasil/parquestecnologicosbrasil.pdf

[6] Carayannis, Elias G.; Campbell, David FJ. Triple Helix, Quadruple Helix and Quintuple Helix and how do knowledge, innovation and the environment relate to each other?: a proposed framework for a trans-disciplinary analysis of sustainable development and social ecology. International Journal of Social Ecology and Sustainable Development (IJSESD), v. 1, n. 1, p. 41-69, 2010.

https://www.researchgate.net/publication/273268696_Triple_Helix_Quadruple_Helix_and_Quintuple_Helix_and_How_Do_Knowledge_Innovation_and_the_Environment_Relate_To_Each_Other

[7] Von Hippel, E. (2005). Democratizing Innovation. Cambridge, MA: MIT Press Winiwarter, V., & Knoll, M. (2007). Umweltgeschichte. Köln, Germany: Böhlau. Apud Carayannis & Campbell 2010.

[8] instituída a partir da Agenda 2030 da ONU, com seus 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), divididos em 169 metas: da erradicação da miséria a promoção de vida digna, considerando os limites planetários

[9] Sudermann, Sofia et al. Healthy City Assessments: Reviewing assessment tools for healthy cities. The Evolving Scholar |ARCH22. [preprint]. 2022. https://dapp.orvium.io/deposits/622fb00f77927d258fa9d051/view

[10] Freire, Paulo & Papert, Seymour. O Futuro da Escola. TV PUC-SP, 1995. https://youtu.be/i-zphTShOQM?si=c2in1l9rbZYe_PeI [fonte do vídeo: https://www.acervo.paulofreire.org/items/279cbad8-3c9a-48e2-bb04-ba6842d1ef9b]

[11] Global Council for The Promotion of International Trade (GCPIT). Innovation and Technology: Towards Knowledge-Based Urban Futures. 2024. https://www.linkedin.com/pulse/innovation-technology-towards-knowledge-based-urban-futures-r7byc