Por Mariana Hafiz e Rafael Revadam
Uso incorreto de pesticida é uma das principais causas de mortalidades desses polinizadores
Desde 2012, os Estados Unidos e países da Europa começaram a notificar o desaparecimento de abelhas, com preocupação especial para a relação com uso de agrotóxicos. Tratava-se de quatro produtos registrados e comercializados para conter pragas em plantações, e que apresentavam indícios de danos para outros organismos: imidacloprido, tiametoxam, clotianidina e fipronil. No caso, estavam aparentemente ligados à mortalidade de abelhas.
No Brasil, onde esses produtos também estavam sendo utilizados, a preocupação com o desaparecimento de polinizadores necessários para produção de alimentos também trouxe a demanda por estudos aprofundados. Faltava, no entanto, dados claros sobre o número de colmeias ou abelhas morrendo no país, ao mesmo tempo em que era necessário realizar a avaliação correta sobre o que de fato estava causando as mortes, já que os riscos a essas populações variam desde mudanças climáticas, competição com espécies invasoras, doenças por deslocamento de espécies e uso indevido de pesticidas.
Em 2012, as primeiras impressões mostraram que “o motivo mais claro era intoxicação por agrotóxicos, porque as colmeias estavam inteiramente mortas”, como explica Cristiano Menezes, pesquisador da Embrapa Meio Ambiente. Ele lembra que a partir de 2014 a ONG Bee or Not to Be, motivada pela falta de dados, criou o aplicativo Bee Alert, em que o apicultor poderia avisar quantas de suas colmeias haviam morrido. Entre 2013 e 2017 o levantamento registrou a morte de 20 mil colmeias no Brasil. “Fizeram análises por amostragem e concluíram que, de fato, as abelhas foram mortas por pesticidas”, completa Cristiano.
Em paralelo, o projeto Colmeia Viva, no estado de São Paulo, fez análises semelhantes ao receber denúncia de apicultores sobre morte de abelhas. De acordo com Roberta Nocelli, docente do Departamento de Ciências da Natureza, Matemática e Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) este foi “um projeto pioneiro em que conseguimos pagar as análises para o apicultor que entrava em contato. Conseguimos também convencer a indústria de que existia um problema: tínhamos resultados positivos que os agrotóxicos estavam matando as abelhas e era preciso saber o que fazer com eles”.
De acordo com os dados que o Colmeia Viva apresentou no relatório “Mapeamento de Abelhas Participativo” (MAP), muitos casos estavam relacionados ao uso incorreto de pesticidas em culturas onde há colmeias por perto e na maioria dos casos as mortes ocorreram devido à aplicação do fipronil, produto para combater pragas de solo, como cupins e formigas, e altamente tóxico para abelhas. “Aplica-se fipronil na plantação ou diretamente no solo para combater as pragas e o efeito dele é justamente atacar insetos sociais. A abelha operária leva o produto e elimina a colônia toda”, descreve Cristiano.
No Brasil, antes que qualquer produto como esses seja produzido e comercializado é necessário que ele tenha, primeiro, um registro. Para isso, a legislação exige que sejam ouvidos o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), dando o parecer sobre a eficácia agronômica do produto, o Ministério da Saúde por meio da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), encarregado pela avaliação do ponto de vista ambiental. As três avaliações acontecem de forma independente dentro de cada órgão e seus custos são responsabilidade da própria empresa ou indústria interessada em registrar seu produto.
“Para se obter o registro, solicitamos um dossiê de estudos com organismos testes a partir do qual fazemos uma avaliação e classificamos o produto em quatro classes ambientais, que chamamos de perigo”, explica Danilo Lourenço, coordenador de Controle Ambiental de Substâncias e Produtos Perigosos do Ibama. Somente da parte ambiental são cerca de 80 estudos feitos em laboratórios credenciados pelo Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro), que analisam a estrutura química do produto, comportamento em diferentes ambientes e toxicidade para organismos não-alvo, como peixes, mamíferos, microorganismos do solo e abelhas.
A partir disso, o Ibama avalia, desde 1989, os produtos agrotóxicos enquanto seu perigo inerente classificando-os de classe 1 (mais perigosa) a classe 4 (menos perigosa). A partir de 2011, são feitas também avaliações de risco relacionadas à probabilidade de exposição. O resultado das avaliações, quando geram alguma restrição de uso, aparecem no rótulo e na bula do produto, indicando as recomendações para aplicação.
Hoje, o processo pelo qual imidacloprido, tiametoxam, clotianidina – no geral chamados de neonicotinoides – e fipronil passam são estudos de reavaliação, um pouco diferentes daqueles pedidos na etapa de registro, e focados na questão problemática. Em 2012, quando os indícios de risco para polinizadores foram identificados, o Instituto estabeleceu restrições de uso, proibiu aplicação aérea dos quatro produtos e deu início à reavaliação. “Começamos as avaliações com o imidacloprido em 2012, estamos finalizando agora e ainda faltam algumas etapas”, comenta Danilo. Em 2014 e 2015, começaram os testes com tiametoxam e clotianidina, em andamento, e fipronil é o próximo da fila.
A demora de anos para a reavaliação, de acordo com o analista ambiental, se dá porque análises como essas dependem de estudos de campo nas culturas para as quais o produto é indicado. Para isso, a empresa ou indústria precisa tanto encontrar um local para fazer os testes, ou seja, localizar um produtor que aceite fazer o estudo em sua plantação e, depois, esperar todo o ciclo da cultura.
“Pedimos estudos de campo nas culturas para os quais o produto é indicado, então há uma época certa do ano, quando se planta aquela cultura. Pode ser que eu peça o estudo hoje, em outubro, mas essa cultura só se plantará em março, por exemplo” explica Danilo. Além disso, essas etapas correspondem apenas à coleta de informações, que depois devem ser enviadas para tratamento laboratorial.
Ao mesmo tempo em que essas análises eram feitas, entre 2014 e 2017 o Ibama reuniu especialistas do próprio órgão com representantes do Mapa, da indústria de agrotóxicos e pesquisadores para que também discutissem uma solução viável para o risco às abelhas. Roberta, uma das pesquisadoras que participou da parceria, lembra que ficaram “três anos discutindo o que era viável para o Ibama, o que nós especialistas achávamos, o que a indústria e a agricultura queriam e o que era possível em termos de legislação”. Para ela, a iniciativa era importante porque “o mundo ideal é um mundo sem agrotóxico, mas hoje ele não é viável, então precisávamos encontrar um caminho em que fosse possível manter a produção agrícola, mas que também fosse menos impactante para as abelhas”.
Pesquisa
Coletando as informações deste grupo, o Ibama lançou em 2017 a Instrução Normativa nº2 e o Manual de Avaliação de Risco Ambiental dos Agrotóxicos para Abelhas, bem como uma nota técnica que listava todas as lacunas nos conhecimentos dos especialistas acerca da situação das abelhas no Brasil. “No período de 2012 a 2017, até se chegar àquela norma, vimos que era necessário aprofundar conhecimentos em determinadas linhas de pesquisa de polinizadores”, lembra Danilo.
A situação era que para as fases de campo da reavaliação usa-se a apis mellifera como organismo padrão, conhecida como a abelha africanizada. Faltava, por exemplo, se saber se o comportamento dessa abelha exótica era o mesmo das abelhas nativas do Brasil. Não existia um inventário das abelhas existentes no país e era preciso também ter entendimento maior sobre o serviço ecológico de polinização que as abelhas nativas realizam. Com isso, a nota técnica levou à criação de uma chamada pública pelo CNPq, solicitando a pesquisadores para aprofundar esses conhecimentos.
Ao todo, foram 5 linhas de pesquisa para trabalhos iniciados em 2017, que deveriam ser finalizados em 2020 e entregues em 2021. Em função da pandemia da covid-19, no entanto, foi necessário prolongar o prazo por um ano. O projeto de Roberta para desenvolver métodos de avaliação de risco de agrotóxico é um dos aprovados na chamada. Para ela, a chamada foi importante para dar segurança e robustez aos resultados. “Há muita transparência. Os resultados são fatos, goste você ou não, seja tanto aqueles dizendo que os agrotóxicos são terríveis, quanto dizendo que não são”, afirma.
Ações e contradições
Apesar da preocupação com os quatro tipos de agrotóxicos considerados graves em nível global, o número total desses químicos em circulação no Brasil segue em crescimento. De acordo com o projeto Robotox, bot criado para monitorar os registros de novos agrotóxicos no país, conforme o Diário Oficial da União, até o fechamento desta reportagem o governo Bolsonaro (2019-2020) publicou a aprovação de 819 novos produtos agrotóxicos. No total, existem 2.885 produtos agrotóxicos comercializados em todo o país.
Para Décio Gazzoni, engenheiro agrônomo da Embrapa Soja e membro do comitê científico da A.B.E.L.H.A., Associação Brasileira de Estudo das Abelhas, há ainda outro agravante: o Brasil possui políticas públicas na gestão de agrotóxicos, mas falta um olhar específico às espécies de abelhas. “Temos cerca de 3 mil espécies, e como se acompanha tudo isso num território de 8,5 milhões de km²? É extremamente difícil. Em termos globais, a apis mellifera, a abelha do mel, tem valor econômico por produzir produtos tangíveis, como o próprio mel ou própolis, então ela é protegida. Mas as abelhas nativas, não. Basta imaginar o que está acontecendo no Pantanal, com mais de dois meses de queimadas. Quantas espécimes se perderam?”. Gazzoni também aponta uma falta de acompanhamento da população sobre as ações realizadas pelo Ibama. Levantamento do jornal O Globo no início de outubro mostrou que o Ibama gastou em 2020 apenas 36,8% da verba destinada para fiscalização, controle e combate ao desmatamento e às queimadas. Em paralelo, os incêndios já atingiram 20% do Pantanal e o país registra os maiores índices de desflorestamento da Amazônia dos últimos dez anos. “As reações da população têm sido muito limitadas, e existe um limite para a gente degradar o meio ambiente”, conclui.
Mariana Hafiz é jornalista formada pela Unesp e cursa especialização em jornalismo científico no Labjor/Unicamp. Trabalhou com divulgação científica de astronomia em espaços não formais.
Rafael Revadam é jornalista formado pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul, pós-graduado em estudos brasileiros pela Fundação-Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Atualmente, cursa a especialização em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.