Por Camila Pissolito
O surgimento e as características do regime podem oferecer respostas à atual crise
“Em 406 a.C, durante a Guerra do Peloponeso, nas ilhas Arginusas, os atenienses derrotaram os espartanos em uma batalha naval. Apesar de os soldados atenienses serem inexperientes, e, portanto, taticamente inferiores aos espartanos, seus comandantes, através de práticas novas e poucos ortodoxas conseguiram contornar esse problema […] A notícia da vitória foi recebida com júbilo em Atenas e os generais, consagrados. Após alguns dias, os soldados sobreviventes começaram a retornar e foi então sabido que o que garantiu a vitória foi, na verdade, a estratégia dos generais de não socorrerem os que estavam naufragados, deixando para trás as ‘perdas’. Tamanho descuido ao povo fez com que os generais imediatamente fossem julgados e condenados à morte, pelo único motivo de não terem cuidado dos seus”.*
Histórias como essa ilustram o verdadeiro sentido da palavra democracia: um regime político em que todos os cidadãos elegíveis participam igualmente na proposta, no desenvolvimento e na criação de leis, exercendo o poder de governar através do voto. Mas, para entender melhor os processos que resultaram em uma consolidação do regime como é conhecido hoje, é necessária uma viagem no tempo, cerca de seis séculos antes de Cristo.
Foi por meio de um golpe, um processo de tirania oligárquica, que a ideia de democracia se instalou na Grécia. “Não foi uma ideia que surgiu do nada, ela é, na verdade, um processo e uma resposta da cidade de Atenas à essas tiranias”, conta Ana Lívia Bomfim Vieira, professora e pesquisadora da Universidade Estadual do Maranhão (Uema). “Ao implementar um sistema de governo que coloca o poder das decisões na mão da população, isso significa uma resposta, uma tentativa de barrar qualquer tipo de centralização de poder na figura de um indivíduo ou de uma família”, complementa.
Há também outras hipóteses para o surgimento dessa ideia, explica Fábio Augusto Morales Soares, professor de história antiga da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). “Existe o “milagre grego”, ou seja, a ideia racista de que os gregos seriam superiores aos outros povos, e também as teorias baseadas na luta de classes, quando as elites estão em conflito entre si e os mais pobres, o ‘demos’, tomam o poder”.
No caso de Atenas, a democracia parece ter sido uma forma encontrada pelos atenienses para conter o poder dos ricos, que deveriam se submeter às decisões de uma assembleia composta por todos os cidadãos, independente da renda. A assembleia dava a palavra final sobre as principais decisões da cidade, sobrepondo-se ao conselho, que nas oligarquias era a instituições central, como o senado em Roma ou a gerúsia em Esparta, por exemplo.
“É interessante observar como um cidadão pobre tinha o mesmo poder de voto que um filósofo, e isso era escandaloso para as elites gregas. Os tribunais eram também compostos pelos cidadãos, independente da renda”, diz Soares. Isso criava a seguinte situação: se um ateniense rico fosse acusado de algo, ele seria julgado por um júri composto por cidadãos eventualmente muito pobres. “Os tribunais, portanto, eram a principal instituição de controle dos ricos, que em diversas oportunidades tentaram acabar com a democracia, e foram punidos por isso”, completa.
Um baluarte entre dois exércitos
Sólon, estadista, legislador e poeta da Grécia antiga, foi o primeiro a escrever uma constituição e algumas leis democráticas. Conforme expressa o professor de filosofia antiga da Universidade de Brasília (UnB), Gabriele Cornelli, há um fragmento muito interessante do poeta no qual é dito que ele, enquanto persona, personifica a lei. “É como se fosse um muro, um baluarte, entre dois exércitos. E quais são esses dois exércitos? São os pobres e os ricos, os que mantém a terra e os trabalhadores”. Segundo Cornelli, é quando fica mais clara a ideia de que a democracia permitiria, fundamentalmente, a paz social.
“Este sistema democrático organiza um conflito que é de base econômica. A democracia é uma tentativa de organizar, do ponto de vista da lei e da organização política, o conflito. A democracia nasce para que a cidade funcione de maneira correta, para que não acabe em guerra”, articula.
Uma das principais características desse regime era o caráter direto. Reuniam-se os cidadãos homens maiores de 18 anos em uma assembleia onde eram decididos os rumos da cidade. “Desde a decisão sobre o aumento do preço de determinado produtos do mercado, até o fato de Atenas entrar em guerra ou não com uma outra cidade”, relata Ana Livia. Ainda de acordo com a pesquisadora de história antiga, o teatro era outro elemento desse governo e as peças apresentadas traziam uma crítica política muito contundente. “Importante lembrar do papel das artes, do teatro, como um elemento constitutivo do sistema democrático e como ajudava, sem dúvida, a manter essa coesão social e a identidade entre os cidadãos”.
A democracia ateniense excluía, na tomada de decisões, fundamentalmente, três tipos de cidadãos: os imigrantes, os escravos e as mulheres. Isso acabava fazendo com que a maioria numérica das pessoas não fosse consultada. Mas, para os especialistas, devemos pensar que o direito das mulheres ao voto só foi concebido há pouco mais de um século, e que o conceito de cidadania hoje é mais amplo. “Hoje as mulheres são cidadãs e a escravidão é ilegal, apesar de ainda ser praticada inclusive no Brasil, como demonstravam os relatórios do Ministério do Trabalho – extinto pelo atual governo”, aponta Fábio Augusto.
Para Cornelli, na contemporaneidade, excluir qualquer pessoa do sistema democrático é inaceitável, mas não podemos cobrar que a democracia ateniense resolva um problema que levou mais de 2000 anos para ser resolvido. “Mas, sem dúvida, as discussões contemporâneas sobre a crise profunda da democracia atual apontam claramente esta questão: que, de certa maneira, o conflito da desigualdade global, regional, racial e de gênero chegou a um ponto que o sistema democrático não está mais contendo, não está mais pacificando e não está mais organizando”.
Ana Livia, da Uema, aponta que, em termos de representatividade, a democracia contemporânea também não beneficia todas as camadas da sociedade. “Há efetivamente grupos sociais e étnicos que, ou são excluídos, ou são menos ouvidos, têm menos voz”. Para ela, é necessário o exercício de pensar criticamente o sistema. “Estamos inseridos nele, mas há muitas falhas e exclusões que não são claramente definidas. Tecnicamente, todos estamos incluídos, mas por que não nos sentimos assim? Essa questão pesa mais sobre o sistema democrático nos dias de hoje do que sobre a democracia antiga”.
Segundo Cornelli, da UnB, mesmo que para poucos, era um regime que formalmente desenvolveu condições para que os exercícios democráticos funcionassem. “Há uma história muito interessante nesse sentido: a de que o homem livre participante da assembleia democrática fosse remunerado, para que o dia de trabalho dele fosse compensado. É uma medida econômica que permite que os pobres possam de fato exercer ativamente a democracia”, completa. “Mas como você sabe quando a democracia funciona de verdade? Quando ela consegue controlar os mais poderosos, os mais ricos, que tendencialmente, tanto ontem como hoje, tentam diminuir o poder popular, o poder da maioria, para poder manipular a história, a economia, a cultura ao próprio favor”, declara.
Citando o pensador Norberto Bobbio, Cornelli diz que a democracia é sempre uma meta. “Você nunca vai chegar lá. Então acho que essa ideia de que o regime seja uma meta é uma belíssima representação de como devemos pensá-la”. Para o pesquisador, assim como nos direitos humanos, que é uma parte da cultura democrática, vamos sempre criar novas metas. “E estamos em um momento que é muito importante que elas sejam criadas. Creio que, nos inspirando na história da democracia do passado, deveríamos inventar novos mecanismos democráticos, novas formas de inclusão, de populações, de gêneros, de categorias humanas que não estão incluídas hoje nesse processo de dar poder ao povo”, finaliza.
* Xenophon, Hellenica 1.6.1-34. https://en.wikisource.org/wiki/Hellenica_(Xenophon)/Book_1/Chapter_6#6:1
Camila Pissolito é jornalista, especialista em jornalismo científico e mestranda em divulgação científica e cultural (Labjor). Atualmente desenvolve um projeto de divulgação científica na Rede de Antropologia da Ciência e da Tecnologia (ReAct) financiado pela bolsa mídia ciência da Fapesp.