Por Carlos Vogt
Sobre democracia tanto se falou e tanto se escreveu que ainda é pouco para a importância que ela tem na organização social e política dos povos e das nações.
A distinção das três formas de governo remonta ao historiador Heródoto, do século V a.C., na Grécia: governo de um só, governo de poucos, governo de todos, distinção retomada por Platão, em O político, alguns anos mais tarde, na antiguidade clássica, depois por Aristóteles e por vários outros pensadores ao longo dos séculos, entre eles, Hobbes, no século XVI, na Inglaterra, e Montesquieu, no século XVIII, na França.
Como se pode ler no verbete sobre “formas de governo”, do Dicionário de Filosofia, de Nicola Abbagnano (Martins Fontes, São Paulo, 1998, p. 487), “Montesquieu modificou a divisão tradicional afirmando que o governo pode ser republicano (um conjunto de democracia e aristocracia), monárquico e despótico”.
O princípio sobre que se baseia as diferentes formas também varia: a virtude cívica e o espírito público para o governo popular; a honra para a monarquia; o temor para o autoritarismo despótico.
Entretanto, o próprio Montesquieu, no livro O espírito das leis, de 1748, relativiza a importância da distinção das três formas de governo e enfatiza a ordenação do Estado e a sua capacidade de limitação dos poderes:
“A democracia e a aristocracia não são Estados livres por natureza. A liberdade política encontra-se nos governos moderados. Mas nem sempre existe nos Estados moderados: permanece só quando não há abuso de poder… Para que não seja possível abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder refreie o poder. Uma constituição pode ser de tal forma que ninguém seja obrigado a cumprir as ações às quais a lei não obrigue, nem a deixar de cumprir as que a lei permite.” (cit. por Abbagnano, N., ob. cit., p. 487).
Não é preciso esforço para constatar a atualidade dessa observação, mas é sempre necessário insistir na importância da permanência da democracia, cujas origens remontam ao século VI a.C., mais especificamente, a Solon e a Clístenes, na Grécia antiga.
A esse propósito, reproduzo, aqui, pela oportunidade do que enuncia e pela beleza do enunciado, a abertura do artigo do grande helenista Jean-Pierre Vernant, “Racionalidade e política: sobre Clístenes”, publicado no livro Entre mito & política (Edusp, São Paulo, 2ª ed., 2002, p. 219-225), que como explica o autor, “foi o texto do apelo que uns vinte cientistas – especialistas da antiguidade e matemáticos – assinaram para que fosse organizada uma comemoração pelas reformas de Clístenes”.
“Estamos acostumados a nos declarar e a nos pensar como democratas, seja qual for o lugar que ocupamos no jogo político, mas houve um tempo em que a democracia, como a felicidade, era uma nova ideia na Europa. Houve um tempo, muito mais distante, em que a própria palavra foi inventada. Há 2.500 anos, o aristocrata ateniense Clístenes reuniu o conjunto do povo (dêmos) à facção que chefiava e impôs uma transformação radical das instituições atenienses. A partir de então, deixou de ser importante de quem se era descendente, real ou ficticiamente: quando se era nascido ateniense, tinha-se o direito de participar do poder dentro da cidade, de ser membro da assembleia do povo. Estas foram as condições que criaram a democracia, embora a palavra seja um pouco posterior. Com a democracia ateniense, nossa história viveu uma transformação decisiva da qual somos, ainda hoje, herdeiros. Por certo, tratava-se ainda de uma democracia muito restrita: as mulheres, os estrangeiros residentes, os escravos não podiam fazer parte dela, mas, desde o século V a.C., é possível filosofar sobre a democracia no sentido pleno desse termo. Foi o que fez Protágoras de Abdera. Propomos que se comemore solenemente este nascimento, refletindo sobre o que foi a democracia ateniense e sobre o que a nossa lhe deve.”.
Este número da ComCiência dedicado ao tema “Democracias” é também uma comemoração, uma preocupação e um alerta, tal como o conciso poema “Hino”, expande-se em concitação:
Em desvantagem
como a alegria
a democracia
é uma ato de coragem