Graciele Almeida de Oliveira e Letícia Guimarães
Estima-se que cerca de 100 trilhões de bactérias vivam em nós. O número exato ainda não é conhecido, mas acredita-se que seja em torno de 500 a 1000 espécies
Há uma multidão quase invisível habitando o corpo de cada ser humano. Estigmatizados por tenebrosas histórias sobre doenças e associados à sujeira e aos maus hábitos de higiene, os microrganismos (bactérias, vírus, fungos) também estão ligados à proteção da saúde.
Mesmo não visíveis a olho nu, os microrganismos têm grande importância. Não apenas aqueles manipulados para a produção de remédios e vacinas, e que atuam na prevenção e tratamento de doenças, mas também os que naturalmente habitam o corpo. O desequilíbrio desse conjunto de micro habitantes, a microbiota, “vem sendo associado a inúmeros problemas, como doença inflamatória intestinal, câncer de intestino, obesidade, diabetes, asma, dermatite, autismo, ansiedade, entre muitos outros”, destaca o doutor em microbiologia e pesquisador da área de saúde pública da Fundação Oswaldo Cruz, Luis Caetano Martha Antunes.
Giorgio Trinchieri, diretor do Cancer and Inflammation Program do Center for Cancer Research do NIH (Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos) afirma que “a microbiota é diferente em cada indivíduo. No entanto, tende a ser mais semelhante entre quem vive junto (por exemplo, membros da família). Sua composição é determinada pela exposição à microbiota da mãe durante o parto e depois afetada pelo ambiente. Permanece constante ao longo da vida, até que muda novamente em indivíduos muito idosos”. Assim, até o tipo de parto faz diferença. “Em um parto normal, a microbiota do recém-nascido se assemelha à microbiota vaginal da mãe. Já em um parto por cesariana, é semelhante à microbiota da pele da mãe ou dos profissionais de saúde envolvidos”, explica Luis Antunes.
Para demonstrar a importância da colonização da microbiota no nascimento, um estudo publicado na revista Nature, de autoria da pesquisadora María Gloria Domínguez-Bello e do professor de medicina José Clemente, descreve bebês nascidos por cesariana expostos aos fluidos vaginais maternos assim que retirados do útero. Uma gaze foi inserida na genitália das mães momentos antes do parto, e depois retirada e passada pelo corpo do bebê em regiões como boca, rosto, tórax, braços, pernas, genitais, ânus e costas. Segundo o relato, ainda que as consequências a longo prazo para a saúde das crianças não sejam determinadas, a conclusão é de que é possível restaurar parcialmente esses microrganismos, fornecendo aos bebês mecanismos de defesa semelhantes aos daqueles nascidos em parto normal.
Ao longo da vida, a microbiota é afetada por estímulos ambientais, como o tipo de dieta, doenças, uso de drogas, como antibióticos, e também probióticos, e é importante que permaneça saudável, atuando como “aliada” do corpo. “Ela afeta o metabolismo, funções cognitivas, inflamação e imunidade. Uma microbiota alterada pode estar relacionada a doenças como colite, infecções oportunistas e até câncer. No caso de infecções, doenças inflamatórias e câncer, muitos de seus efeitos estão associados à capacidade da microbiota em modular a inflamação e a imunidade”, explica Trinchieri.
Matar 99,99% dos microrganismos não é uma boa ideia
A nova compreensão sobre o papel da microbiota na saúde aumenta a preocupação com o uso indiscriminado de antibióticos, afirma João Carlos Setúbal, professor do Instituto de Química da Universidade de São Paulo. Setúbal explica que a maioria dos antibióticos mata tanto as bactérias “ruins” quanto as “boas”, portanto, podendo trazer efeitos colaterais negativos. Isto para não mencionar o aumento da resistência aos antibióticos por seu uso indiscriminado, uma preocupação crescente da saúde pública mundial.
“Quando usamos um antibiótico matamos não apenas as bactérias que estão nos causando mal, mas também as benéficas, que fazem parte da nossa microbiota. Assim, ao usar um antibiótico de forma desnecessária, estamos potencialmente abrindo uma porta para que novos problemas de saúde nos acometam. Além disso, nosso grupo já demonstrou que o uso de antibióticos pode causar uma série de efeitos metabólicos e hormonais que ainda não foram investigados em detalhes. É provável que mais pesquisas nesta área revelem outros efeitos ainda desconhecidos dos antibióticos”, diz Luis Antunes.
O corpo em que habito
Trinchieri explica que a microbiota está presente em todas as superfícies que servem de barreira, isto é, que separam o organismo do mundo exterior, como a pele, trato gastrointestinal, sistema respiratório, trato urogenital. No entanto, a grande maioria dos microrganismos se aloca no trato gastrointestinal inferior, no íleo e, particularmente, no cólon. “Existem milhares de diferentes espécies vivendo em nosso organismo. No caso das bactérias, algumas requerem oxigênio, outras vivem bem em um ambiente anaeróbico como o cólon”, diz.
Os micro habitantes do corpo humano são diversos, mas os mais comuns fazem parte de três filos: Bacteroidetes, Firmicutes e Proteobacteria. “Estima-se que cerca de 100 trilhões de bactérias vivam em nós. O número exato ainda não é conhecido, mas acredita-se que seja em torno de 500 a 1000 espécies”, explica Antunes.
Os gêneros mais comuns são Propionibacterium e Staphilococcus (na pele), Prevotella (no trato gastrointestinal), Bacteroides (no estômago), Campylobacterium (na cavidade oral) e Lactobacillus (vagina).
Novas possibilidades terapêuticas
O microbioma, se saudável, previne infecções intestinais e cutâneas. A disbiose, ou seja, sua desregulação, pode facilitar infecções não apenas de patógenos típicos, mas também de bactérias oportunistas. Elas normalmente não induzem doenças, mas entram em ação quando a defesa natural é alterada, explica Trinchieri. “Grande parte da pesquisa no campo, hoje, é identificar o que constitui uma microbiota saudável e encontrar maneiras de administrar uma única bactéria benéfica ou um conjunto delas para combater doenças”, completa. Um recente estudo realizado pela equipe multidisciplinar da qual o grupo de pesquisa de Setúbal faz parte mostrou, por exemplo, que a microbiota de tecido de cólon de pacientes com câncer colorretal difere da de pessoas saudáveis.
A maneira como a microbiota protege o corpo humano ainda é incerta. Antunes explica que uma das ideias é que essa ação protetora se dá pela produção de moléculas antibióticas, que matam as bactérias causadoras de infecção, já que há uma competição por nutrientes e locais para se fixarem no corpo. “Mais recentemente, meu grupo de pesquisa demonstrou que membros da microbiota intestinal produzem uma molécula que “desliga” os genes da Salmonella, uma bactéria causadora de infecção. Isso a torna menos capaz de causar a doença. Assim como este, diversos outros mecanismos efetivados pela microbiota atuam em conjunto para nos proteger”.
O grupo de pesquisa de Trinchieri direciona seus estudos na interação da microbiota com o câncer, doença que pode começar por infecções de diferentes microrganismos, como vírus e bactérias. “Estamos estudando também o papel da microbiota nas comorbidades do câncer, como a caquexia, ou seja, a fraqueza e perda da massa corpórea, e o efeito colateral tóxico da quimioterapia. E analisamos também a microbiota em pacientes com câncer tratados com novas imunoterapias, identificando a composição da microbiota com resposta positiva à terapia, e como alterar a microbiota para melhorar a eficácia dos remédios”.
Graciele Almeida de Oliveira é bacharel em química (USP), doutora em ciências – bioquímica, graduanda em educomunicação (USP) e aluna da especialização em jornalismo científico pelo Labjor/Unicamp.
Letícia Guimarães é jornalista (Unip) e aluna da especialização em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.