Por Marco Centurion
Diante de tantos impactos ambientais, a poluição luminosa é um efeito que recebe menos atenção, e muitas pessoas até estranham que exista algo do tipo, uma vez que as luzes noturnas já se naturalizaram tanto. Diante da questão, é preciso saber quais tecnologias, políticas públicas e ações podem mitigar este problema silencioso, mas que afeta desde o ciclo de sono até aspectos de reprodução da vida selvagem. Para clarear estas questões, o astrônomo do Observatório do Valongo na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador do projeto de Astroturismo dos Parques Brasileiros, Daniel Mello, diz como estão se desenvolvendo as discussões em âmbitos nacionais e internacionais.
O que é poluição luminosa e por que é um problema para a observação astronômica?
Pode-se definir a poluição luminosa como o excesso de luz artificial que é mal direcionada ou aproveitada, expandindo-se para locais além de sua utilidade. Além do desperdício de energia e dos efeitos ambientais, esse excesso de luz acaba sendo orientado para a atmosfera, fazendo com que o céu adquira uma tonalidade clara e acinzentada. A dificuldade em ver muitas estrelas nos céus das grandes cidades é o efeito mais notável da poluição luminosa, que compromete a qualidade do céu para as atividades astronômicas, tanto do ponto de vista amador (contemplativo, educacional) quanto profissional. A perda de contraste do céu pelo excesso de poluição luminosa diminui a capacidade visual de identificar as estrelas mais tênues, as constelações, nebulosas, cometas, meteoros e galáxias. Estima-se que 80% da população mundial, por exemplo, não consiga mais ver a Via Láctea, que necessita de um local de baixa poluição luminosa para ser contemplada. Se para a astronomia profissional a poluição luminosa representa um enorme empecilho para o registro de imagens de alta resolução de inúmeros astros tênues e distantes, ela também implica em perda cultural, especialmente ligada aos mitos celestes das antigas civilizações, que criaram a astronomia e estabeleceram essa ciência com uma das mais belas e impactantes da humanidade.
Como a conscientização pública pode auxiliar a combater esse problema?
A poluição luminosa tem sido estudada em diversos contextos nas últimas décadas, especialmente devido ao impacto nos ciclos ambientais, na saúde humana, na economia e por inviabilizar o astroturismo de céu escuro (dark sky astrotourism), um nicho emergente de turismo de experiência, que propõe o resgate do contato da humanidade com o céu estrelado. No Brasil o tema da poluição luminosa necessita de maior difusão, mas ações de conscientização já ocorrem, especialmente em atividades ligadas à divulgação da ciência e ao astroturismo. Este último destaca-se como ferramenta ideal de conscientização devido ao fato de que suas ações pretendem “retirar” as pessoas das cidades para proporcionar uma vivência com céu escuro, repleto de estrelas, especialmente em contato com a natureza.
No estado do Rio de Janeiro o projeto Astroturismo nos Parques Brasileiros tem realizado este importante trabalho em suas sessões astronômicas públicas desde 2021, especialmente em parques e reservas. O astroturismo permite com que se estabeleça um vínculo interessante entre astronomia a educação ambiental, já que sessões astronômicas e de astrofotografia colocam-se como pano de fundo para discutir a necessidade do uso correto da iluminação artificial, a necessidade de legislação para o tema e engajamento dos setores governamentais e privados para diminuição dos efeitos da poluição luminosa, para além da astronomia. Representa também uma oportunidade ímpar para propor mudanças de atitudes individuais e despertar nas pessoas a necessidade de valorização do céu como patrimônio sociocultural e de relevante valor econômico. Compreender o que é a poluição luminosa, seus efeitos e como agir para diminuir suas consequências representa o primeiro passo para a mudança do quadro atual.
Quais os benefícios para a sociedade ao reduzir a poluição luminosa, além de preservar o céu noturno?
O uso incorreto da iluminação representa, em primeira instância, grande desperdício de recursos públicos. Esse se deve ao fato de que, na maioria das matrizes de iluminação pública das cidades brasileiras, utilizamos luminárias inadequadas, que expandem o feixe de luz em todas as direções em vez de direcioná-lo efetivamente para o local de necessidade, restrito a uma área de circulação das cidades. Estas luminárias inadequadas representam quase 30% de desperdício de energia. Dessa forma, utilizar a iluminação de forma racional representaria uso mais sustentável da matriz energética, direcionando valiosos recursos para outras políticas públicas.
Em grandes cidades, o impacto da poluição luminosa nos ciclos ambientais e na saúde humana têm sido mais evidentes. São hoje conhecidos os casos da diminuição da população de tartarugas marinhas, em cidades litorâneas, com orlas excessivamente iluminadas, e dos vagalumes, impactados diretamente pelos efeitos da poluição luminosa. Como é tipificada como uma agressão ambiental de ordem não física, os impactos na saúde humana podem, a priori, passar despercebidos. Todavia, cresce o número de estudos que evidenciam impactos relevantes no ciclo do sono (ciclo circadiano), gerados pela irregularidade ou ausência na produção de melatonina, hormônio com efeitos importantes em várias funções fisiológicas. O uso crescente de lâmpadas LEDs de temperatura de cor inadequada (acima de 2700K), tem agravado este quadro. Estresse, insônia, ansiedade, fotofobia e predisposição a patologias mais graves têm sido apontadas como relacionadas a estes casos de aumento da poluição luminosa. Diminui-la se coloca, portanto, como uma necessidade urgente para o bem-estar de quem vive nas grandes cidades, evitando carga no sistema de saúde pública com demandas advindas dos malefícios elencados anteriormente.
Qual a importância de políticas e regulamentações para controlar a poluição luminosa em nível local e global?
Uma cidade excessivamente iluminada, situação que, infelizmente, testemunhamos mais e mais a cada dia no Brasil, surge como um contrassenso frente aos impactos negativos já citados e das perdas econômicas embutidas. Não se sustentam os argumentos de que precisamos de lâmpadas que simulam a luminosidade do período diurno, a falsa sensação de segurança que se tem ao circularmos em uma rua mais iluminada ou mesmo a alegação de que se aumenta a produtividade em alguns setores da economia. Pela dificuldade intrínseca de regulação do uso correto da iluminação pelo setor privado, inerente aos seus interesses puramente econômicos, tornam-se necessárias e urgentes a criação de políticas públicas para normatizar padrões aceitáveis do uso da iluminação artificial. Estas políticas visam a tornar as cidades mais agradáveis para a convivência social noturna, direcionar recursos públicos não utilizados de maneira incorreta com iluminação para outras demandas importantes, incluindo saúde, educação e meio ambiente, intrinsecamente ligado a políticas de diminuição da poluição luminosa. Cidades com potencial para uso do astroturismo necessitam de cuidados especiais, e políticas locais de normatização são essenciais para que possam movimentar sua cadeia turística. Estas políticas têm que se estender também para regiões rurais e especialmente nas zonas de amortecimento de parques e reservas, minimizando o impacto na flora e fauna, e onde o astroturismo tem seu maior potencial, correlacionado com as práticas de ecoturismo.
Existem tecnologias para reduzir os danos da poluição luminosa? Em que nível elas auxiliam a pesquisa científica e a fauna?
Embora os impactos da poluição luminosa sejam cada vez mais evidentes, há práticas possíveis para que seus efeitos sejam reduzidos a um patamar de menor agressão ambiental e à saúde humana ou mesmo atenuados. É possível, por exemplo, instalar filtros ou películas protetoras, que reduzem a potência de emissão das lâmpadas e outdoors e convertem a temperatura de cor para valores aceitáveis, entre 1800 e 2700K. Outra prática é o uso de luminárias cut-off, que barram completamente a visibilidade da fonte luminosa, direcionando o feixe de luz de maneira adequada para sua utilidade. Essas ferramentas diminuem o impacto no céu noturno e na fauna. Sensores de presença e dimerizadores são tecnologias muito eficientes para reduzir o impacto da iluminação nos ambientes privados e especialmente nas vias públicas. Na pesquisa científica, diversas ferramentas podem ser utilizadas para a medição da poluição luminosa. Análises incluem a utilização de imagens de satélites (a nível global) ou mesmo medições através de luxímetros e fotômetros específicos, tais como o Sky Quality Meter (SQM) e o TESS (Telescope Encoder & Sky Sensor), que são utilizados para medição da qualidade do céu noturno na astronomia. Neste último quesito, há até aplicativos para celular, como o Loss of the Night, que permite com que cientistas cidadãos colaborem com as pesquisas sobre o tema. Este aplicativo faz uma estimativa qualitativa por meio de um processo de contagem de estrelas.
Existem propostas de legislação, ou em tramitação, para redução da poluição luminosa?
Muitos países já adotam práticas estabelecidas por lei de combate à poluição luminosa, especialmente aqueles em que os impactos são considerados como questões importantes na saúde pública, os impactos negativos na economia e por aqueles que têm o astroturismo como algo consolidado ou como proposta turística e econômica relevante. Canadá, Austrália, República Tcheca, Espanha, Chile podem ser citados como exemplos, mesmo que suas legislações sejam aplicadas territorialmente. Do ponto de vista mais geral, há iniciativas também por entidades governamentais tais como a União Europeia e não-governamentais, tais como da União Astronômica Internacional, Organização Mundial do Turismo, Fundação Starlight e Dark Sky Association, que têm trabalhado junto aos países de suas abrangências para propor regulamentação e legislação específicas.
No Brasil, ainda estamos defasados em todas estas iniciativas. Dois projetos de lei estão parados na câmara dos deputados desde 2021 e ainda não há previsão para que possam ser apreciados e votados. Um propõe um programa para certificação e proteção de locais de céu escuro e o outro intenciona incluir a poluição luminosa na tipificação de crime ambiental. Há ainda uma discussão atual sobre a normatização do uso correto da iluminação pela ABNT. Todas essas ações dariam suporte para práticas de diminuição da poluição luminosa e certamente teriam impacto positivo na esfera federal. Entidades como a Rede Céus Estrelados do Brasil e a Dark Sky Brasil têm batalhado para a conscientização dos efeitos nocivos da poluição luminosa, apoiado ações de astroturismo e proposto normas e legislação.