Por Nina da Hora
A ciência nunca esteve isenta das influências e construções históricas e sociais do colonialismo. Enquanto a Revolução Industrial é frequentemente retratada como o catalisador do avanço tecnológico, é crucial reconhecer que essa narrativa está profundamente enraizada em uma perspectiva ocidental que muitas vezes ignora ou minimiza as contribuições e inovações de culturas não ocidentais. A Revolução Industrial, que começou no final do século XVIII, coincidiu com o auge do colonialismo europeu. Esse período viu a rápida expansão das tecnologias de manufatura, transporte e comunicação, principalmente nas nações ocidentais. No entanto, esse progresso foi amplamente alimentado pela exploração de territórios e povos colonizados, criando um ciclo de avanço tecnológico e expansão colonial que reforçou a dominância ocidental nos campos científico e tecnológico.
O desenvolvimento de estatísticas e análise de dados durante esse período desempenhou um papel significativo na formação do que agora chamamos de ciência de dados. Métodos estatísticos iniciais eram frequentemente usados para quantificar e categorizar sujeitos coloniais, reforçando hierarquias raciais e culturais. Essas práticas lançaram as bases para as técnicas modernas de coleta e análise de dados, que continuam a influenciar como percebemos e interagimos com os dados hoje. Ao traçarmos a evolução dessas ideias até os dias atuais, podemos ver como os conceitos de algoritmos e inteligência artificial estão profundamente entrelaçados com noções de eficiência e produtividade que emergiram durante a Revolução Industrial. O algoritmo, em sua essência, é um conjunto de instruções projetadas para resolver um problema ou executar uma tarefa. No contexto do pensamento colonial e industrial, os algoritmos tornaram-se ferramentas para otimizar a produção e a extração de recursos, muitas vezes à custa do bem-estar humano e ambiental.
O conceito de dataficação, que ganhou destaque junto com o surgimento do Big Data no início do século XXI, representa uma continuação dessa mentalidade. A dataficação refere-se ao processo de quantificar vários aspectos de nossas vidas e do mundo ao nosso redor, transformando-os em pontos de dados que podem ser analisados e manipulados. Essa abordagem para entender o mundo através dos dados tornou-se uma característica definidora de nossa era, prometendo insights e eficiências sem precedentes. Diante disso, é essencial questionar se essa busca incessante por eficiência e produtividade, impulsionada por dados e algoritmos, realmente serve aos nossos melhores interesses como sociedade global. A proposta de refletir sobre a decolonialidade dos dados a partir da construção inversa da produtividade é uma proposta atraente. Em vez de usar dados e IA para otimizar ainda mais nossos sistemas e comportamentos existentes, e se aproveitássemos essas tecnologias para reestruturar fundamentalmente nossa relação a ciência e a pesquisa?
Esta questão, de fato, não é apenas filosófica, mas fundamentalmente sistêmica. Ela apresenta complexidades e problemas que não podem ser resolvidos apenas por meio de reflexões filosóficas ou pelo método científico tradicional. Isso coloca um desafio significativo para cientistas e especialistas em Inteligência Artificial (IA), exigindo abordagens complementares ou que transcendam os limites do método científico convencional. As limitações do método científico convencional tornam-se evidentes quando confrontadas com problemas sistêmicos complexos, como aqueles que envolvem a interseção de IA, colonialidade e estruturas sociais. Embora o método científico, com sua ênfase em hipóteses testáveis e resultados replicáveis, tenha sido fundamental para o avanço do conhecimento em muitas áreas, ele pode se mostrar insuficiente diante dos desafios apresentados pela decolonização da IA e da ciência de dados.
A relação entre a inteligência artificial e o método científico tradicional tem se mostrado cada vez mais tênue e inadequada para enfrentar os desafios complexos que emergem neste campo. O método científico, com sua abordagem linear de formulação de hipóteses, experimentação controlada e replicabilidade, frequentemente falha em capturar a natureza dinâmica, não-linear e altamente interconectada dos sistemas de IA. A rápida evolução da IA, sua capacidade de aprendizado autônomo e a emergência de comportamentos não previstos desafiam os pressupostos fundamentais do método científico. Além disso, a IA levanta questões éticas, sociais e filosóficas que transcendem o escopo tradicional da investigação científica. A sistematização do conceito de IA requer uma abordagem mais holística e transdisciplinar, que incorpore não apenas aspectos técnicos, mas também considerações sociológicas, antropológicas e éticas. Esta lacuna entre o método científico convencional e a realidade complexa da IA sublinha a necessidade urgente de viabilizar os novos paradigmas de pesquisa e desenvolvimento que possam abordar adequadamente a natureza multifacetada e em rápida evolução da inteligência artificial.
A complexidade dos desafios apresentados pela inteligência artificial e ciência de dados, particularmente quando vistos através de uma lente decolonial, demanda uma abordagem que transcenda as fronteiras disciplinares tradicionais. A interdisciplinaridade, que promove o diálogo e a colaboração entre diferentes campos do conhecimento, oferece insights valiosos que uma única disciplina não poderia fornecer. A multidisciplinaridade, por sua vez, permite uma visão mais abrangente dos problemas, incorporando perspectivas diversas. No entanto, é a transdisciplinaridade que emerge como especialmente promissora, pois busca não apenas combinar ou justapor disciplinas, mas criar um novo espaço de conhecimento que transcende e integra múltiplas perspectivas. A transdisciplinar é fundamental para abordar as questões sistêmicas e complexas que a IA e a ciência de dados apresentam, permitindo-nos considerar não apenas os aspectos técnicos, mas também as implicações éticas, sociais, culturais e políticas. Ainda estamos no processo de construir esse caminho transdisciplinar, o que implica desafios significativos, como a necessidade de desenvolver uma linguagem comum, superar barreiras institucionais e repensar metodologias de pesquisa e ensino. No entanto, esse esforço é essencial para desenvolver uma compreensão mais holística e equitativa da IA e da ciência de dados, capaz de abordar as complexidades do mundo real e promover soluções que sejam verdadeiramente inclusivas e benéficas para todas as comunidades.
A perspectiva decolonial, embora tenha uma forte presença na América Latina, é um movimento intelectual e político que se estende muito além dessas fronteiras geográficas. Nascida das experiências e reflexões de pensadores latino-americanos como Aníbal Quijano, Walter Mignolo e Catherine Walsh, a teoria decolonial encontrou ressonância e contribuições significativas em outras partes do mundo. África, Ásia e mesmo em comunidades marginalizadas dentro do chamado “Norte Global” têm produzido importantes contribuições para o pensamento decolonial. Por exemplo, os trabalhos de Achille Mbembe em Camarões e África do Sul expandiram e enriqueceram o discurso decolonial. Na Índia, pensadores como Gayatri Spivak e Vandana Shiva têm trazido perspectivas cruciais para o debate. No Brasil, autores como Lélia Gonzalez, com suas reflexões sobre raça e gênero, Sueli Carneiro, com suas contribuições para o raça e epistemologias marginalizadas, e Milton Santos, com suas análises críticas sobre globalização e espaço, têm sido fundamentais para o avanço do pensamento decolonial. Outros pensadores brasileiros como Muniz Sodré e Jessé Souza também têm oferecido insights valiosos sobre questões de raça, mídia e desigualdade social sob uma perspectiva decolonial. Davi Kopenawa, líder e xamã Yanomami, em sua obra “A Queda do Céu”, escrita em colaboração com o antropólogo Bruce Albert, oferece uma poderosa crítica ao modo de vida ocidental e sua relação destrutiva com a natureza, apresentando uma visão de mundo radicalmente diferente que desafia as premissas coloniais. Movimentos indígenas ao redor do mundo têm incorporado e adaptado ideias decoloniais às suas lutas particulares, citando como exemplo. Esta diversidade geográfica e cultural do pensamento decolonial é fundamental, pois permite uma compreensão mais rica e das múltiplas formas de colonialidade que persistem globalmente. Ao reconhecer e valorizar essas diversas contribuições, podemos construir um entendimento mais abrangente e inclusivo da decolonialidade, capaz de abordar as complexidades da IA e da ciência de dados em um contexto verdadeiramente global.
Nina da Hora é mestranda em Inteligencia Artificial pela Unicamp, diretora fundadora do Instituto da Hora e HackerAntirracista