Número de solicitações bate recorde no Brasil, que abriga principalmente venezuelanos, haitianos e cubanos
Por Mariana Hafiz e Mateus Bravin
Imagem: Refugiados e migrantes venezuelanos atravessam a ponte Simón Bolívar rumo à Colômbia. Acnur/ Santiago Escobar-Jaramillo
O mundo enfrenta a maior crise de refugiados desde a Segunda Guerra Mundial, época em que começou a se pensar a fundo questões de migração. Segundo dados do Alto Comissário das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), são 25,9 milhões de refugiados e 3,5 milhões de solicitantes de refúgio, sendo que 37 mil pessoas por dia são forçadas a fugir de suas casas em função de conflitos e perseguição.
O Ministério da Justiça e Segurança Pública define que refugiado é qualquer pessoa fora de seu país de origem que se deslocou em função de perseguição por raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um grupo social específico ou opinião política. Com a Lei 9.474, de 22 de julho de 1997, ficou determinado que são também refugiadas as pessoas obrigadas a deixar seu país de nacionalidade devido a grave e generalizada violação de direitos humanos.
No Brasil, o número de 11.231 refugiados é tímido em comparação aos índices mundiais, mas em 2018 o número de solicitações de refúgio foi recorde no país, acompanhando o fluxo migratório venezuelano que vem aumentando desde 2015. No total, são 80 mil solicitações, dos quais 61.681 são de venezuelanos, seguidos por haitianos (7 mil), cubanos (2.749), chineses (1.450) e bengaleses (947). Os estados brasileiros que recebem maior parte dessas solicitações são Roraima (50.770), Amazonas (10.500) e São Paulo (9.977).
Essas solicitações são intermediadas pelo sistema do Comitê Nacional para o Refugiados (Conare), órgão vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública e responsável por reconhecer condição de refúgio. O primeiro passo é realizar o cadastro no Sisconare com um e-mail e depois apresentar-se à Polícia Federal para dar andamento ao processo, que envolve entrevista obrigatória para elaboração do reconhecimento de condição de refúgio. Depois da entrevista o caso é analisado e, caso o parecer for positivo, o solicitante deve se dirigir a qualquer unidade da Polícia Federal para solicitar o Registro Nacional Migratório (RNM).
Em virtude da pandemia do novo coronavírus Sars-Cov-2 causador da covid-19, no entanto, o Conare suspendeu desde 20 de março os serviços presenciais e determinou que os prazos dos processos ficarão suspensos até que a situação se estabilize no país. A decisão, que pode vir a ser prorrogada dependendo da evolução do vírus no Brasil, determina também que as entrevistas presenciais de elegibilidade previamente agendadas serão conduzidas de forma virtual.
O RNM é comprovado por uma carteira específica, a carteira de registro nacional migratório (CRNM), que permite qualquer estrangeiro com residência permanente ou temporária, asilados ou refugiados devidamente cadastrados a exercerem atos comuns à vida civil. Para Luiz Renato Vedovato, professor na Unicamp e pesquisador de direito das migrações em tribunais, registros como esse são um passo importante para garantir direitos fundamentais a uma população vulnerável. “Os registros são os documentos que permitem a luta por direitos. Dessa forma, o registro é um passo relevante na proteção e luta por direitos humanos”, afirma.
Ele explica que os solicitantes de refúgio ao registrarem o pedido de reconhecimento de situação de refúgio recebem um protocolo que lhes dá o direito à carteira de trabalho provisória, cadastro de pessoa física (CPF) e abertura de conta bancária em instituição financeira supervisionada pelo Banco Central do Brasil. “O refugiado com a CRNM poderá exercer todos os direitos menos os que estejam reservados para brasileiros natos, como ocupar alguns cargos, por exemplo o de presidente da República”, afirma. Podem, inclusive, se matricular em instituições de ensino superior, circular entre os países do Mercosul sem visto e ter acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS).
Karina Quintanilha, advogada e doutoranda em sociologia pela Unicamp, analisou em sua pesquisa de mestrado sobre migração forçada. Apesar de, historicamente, não haver um esforço do governo brasileiro para garantir direitos migratórios, foram conquistados certos avanços ao aprovar a nova Lei de Migração em 2017. De acordo com a pesquisadora, “a nova Lei foi uma conquista principalmente por reconhecer a igualdade de direitos entre imigrantes, independente da condição jurídica, e os brasileiros, como a igualdade no acesso às políticas de assistência social, educação e saúde pública, por exemplo”.
Karina ressalta, no entanto, que as taxas de indeferimento do refúgio no Brasil são muito altas, chegando a 60% dos casos entre 2016 e 2019. Para ela, esse contexto intensifica a vulnerabilidade dessa população porque pessoas passam a viver em situação de indeterminação jurídica, como solicitantes de refúgio esperando reconsideração por anos. “A maioria dessas pessoas, independente do status migratório, quando chegam ao Brasil, se deparam com trabalhos precarizados, quando existe o emprego, em condições sociais e econômicas bem diferentes do que imaginavam”, diz a pesquisadora.
Um estudo realizado entre 2018 e 2019 pelo Acnur e a Cátedra Sérgio Vieira de Mello (CSVM) mostrou que 57,5% dos entrevistados estão trabalhando enquanto 19,% deles procuram emprego. A pesquisa, intitulada “Perfil socioeconômico dos refugiados no Brasil”, foi feita a partir de entrevistas com 487 refugiados em 14 cidades de oito unidades da Federação – São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Rio Grande do Sul, Distrito Federal, Santa Catarina, Minas Gerais e Amazonas.
Na amostra, foram considerados os indivíduos com mais de dezoito anos, dos quais a maioria (419 ou 88,2%) tem entre 18 e 49 anos e é economicamente ativo. Dente os outros 79 refugiados, 11,7% tem mais de 50 anos e 4,3% têm mais de 60, estão próximos da aposentadoria ou já se aposentaram – alguns no sistema de previdência brasileiro. Os dados apontam também que 48,6% dos refugiados entrevistados são homens (237) e 23% são mulheres (112). Dois refugiados se declararam homens transgênero e os demais 134 entrevistados optaram por não informar seu gênero.
Os mais novos são minoria, de acordo com dados da coordenação geral do Conare. Dentre as 777 pessoas refugiadas reconhecidas em 2018, 70 têm entre 12 e 17 anos, 91 de 5 a 11 e 11 são as crianças refugiadas de 0 a 4 anos. Como previsto nas Convenções de Refugiados (1951) e dos Direitos da Criança (1989), educação é um direito da criança refugiada por ser um dos direitos humanos e por lhes garantir as ferramentas necessárias para reconstruírem suas vidas no futuro.
A escola municipal paulistana Infante Dom Henrique, dirigida por Cláudio Neto, doutor em educação pela USP, possui uma das maiores concentrações de alunos estrangeiros no estado de São Paulo – 12% de um total de 600 alunos, sendo 2,5% em situação de refúgio. Os primeiros alunos refugiados a ingressarem na escola foram quatro sírios em 2014. Em 2019 já havia 14, sendo a maioria formada por bangladeses. Apesar da imensa dificuldade em concluir o ensino devido às instabilidades do refúgio, recentemente, seis alunos concluíram o ensino fundamental e dois se formaram na educação de jovens e adultos (EJA).
Uma das medidas adotadas pela escola para receber os alunos estrangeiros e refugiados, respeitando e valorizando as diversidades socioculturais e combatendo a xenofobia é o projeto “Escola apropriada: educação, cidadania e direitos humanos”. Este projeto faz parte de uma série de iniciativas da escola que foram reconhecidas pela Unesco e levaram à vitória na categoria Sociedade/Educação do prêmio Faz a Diferença, em sua 15ª edição em 2018.
Para refletir o tema de refúgio, Cláudio cita a escritora francesa Simone de Beauvoir: “é do ponto de vista das oportunidades concretas dadas aos indivíduos que julgamos as instituições”. Podemos perceber um avanço na movimentação institucional pelo mundo para lidar com a crise de refugiados. Em 2015, a Alemanha abriu as fronteiras do país e registrou cerca de 1,3 milhões de refugiados somente no ano de 2018, tornando-se o país europeu com maior recepção de refugiados do Oriente Médio.
Karina Quintanilha ressalta que o impedimento para que ações receptivas como essas avancem no Brasil são as escaladas políticas, como projetos que buscam alterar a Lei da Migração e intensificar a burocracia da regularização migratória, a retirada dos compromissos da ONU sobre refúgio e migração e tentativas de fechamento de fronteiras, proibição de acesso a hospitais e deportações de venezuelanos no estado de Roraima. “Há um grande jogo político para fazer das fronteiras um instrumento de guerra e para barganhar interesses geopolíticos com os direitos das populações em situação de refúgio”, afirma a advogada. Ela ainda lembra que, em meio à atual pandemia do novo coronavírus “a primeira fronteira fechada foi com a Venezuela, mesmo sabendo que o foco dos infectados estavam vindo da Europa e Estados Unidos”.
Mariana Hafiz é jornalista formada pela Unesp e cursa especialização em jornalismo científico no Labjor/Unicamp. Trabalhou com divulgação científica de astronomia em espaços não formais.
Mateus Bravin é formado em audiovisual e cursa a especialização em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.