Por Ignacio Amigo
Para que as cidades se tornem “inclusivas, seguras, resilientes e sustentáveis” é necessário repensar o espaço público, começando por enfrentar o império do automóvel, o encarecimento desenfreado dos terrenos nas periferias e a lógica (de muro e segregação) dos condomínios.
Objetivo 11. Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis
Uma mãe com seus filhos tenta atravessar uma rua sem faixa de pedestre. Um numeroso grupo de pessoas se prepara para embarcar em um ônibus que já chega lotado. Quilômetros de carros ocupados por uma ou duas pessoas parados no trânsito. Enormes extensões de condomínios e ainda maiores extensões de favelas e assentamentos informais.
Se reconhece esses cenários e situações, é provável que você seja um dos 160 milhões de pessoas que habita em cidades no Brasil. O número equivale a 80% da população brasileira, que de acordo com um estudo recente da Embrapa Gestão Territorial, ocuparia apenas 0,63% do território nacional – as áreas urbanizadas.
O caso do Brasil é paradigmático, mas não excepcional. De acordo com um relatório de 2018 produzido pela Organização das Nações Unidas, mais da metade da população mundial vive atualmente em cidades. Se continuar a tendência atual, estima-se que até 2050 essa proporção aumentará até 68%.
Para combater os desafios da crescente urbanização mundial, a ONU incluiu entre seus Objetivos de Desenvolvimento Sustentável um ponto específico sobre as cidades. Trata-se do objetivo número 11: “Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis”. Para isso o plano estabelece sete metas, que vão desde garantir a qualidade da moradia a proporcionar transporte seguro e acessível, passando pelo fortalecimento do patrimônio cultural e natural e a redução dos impactos negativos relacionados à qualidade do ar, gestão de resíduos etc.
O direito de ir e vir
O desenvolvimento das cidades nos últimos cem anos é impossível de entender sem o surgimento e a popularização do automóvel. É difícil achar outro elemento que tenha afetado tanto a forma como vivemos e experimentamos e espaço urbano. O automóvel mudou a face das cidades radicalmente. Permitiu a urbanização de áreas distantes dos centros, alterou a conformação de ruas e prédios e se tornou o símbolo da modernidade e do sucesso pessoal.
Foram precisos mais de 50 anos para começar a desafiar a visão centrada no automóvel privado que guiou o desenvolvimento urbano no século 20. Porque a medida que as cidades foram habilitando espaços para os automóveis, todas as outras formas de transporte foram prejudicadas e o espaço para as pessoas foi diminuindo. De fato, as cidades desenhadas para os automóveis não são nem inclusivas, nem seguras, nem resilientes nem sustentáveis.
Hoje ninguém discute a importância dos automóveis, mas é consenso entre os especialistas que é necessário reduzir seu número nas cidades para diminuir a poluição, evitar atropelamentos, otimizar o uso do espaço público e priorizar o transporte público, entre outras coisas. O que se discute agora é como conseguir isso.
Victor Callil, pesquisador do Centro Brasileiro de Planejamento (Cebrap) que trabalha com mobilidade urbana, diz que muitas cidades brasileiras já contam com estudos para melhorar a mobilidade, priorizando formas de transporte como a bicicleta ou os deslocamentos a pé, mas que falta implementá-los.
“A gente está bem munido de questões estruturais. Podem não ser planos perfeitos mas eles existem, embora a gente tenha governantes ignorantes da sua existência”, afirma. “Precisamos de gente corajosa, no fundo é isso. Que esteja disposta a gastar o seu capital político para fazer coisas boas para o transporte nas cidades”.
Para Callil, a falta de um planejamento a longo prazo, que pense a cidade além dos quatro anos de cada governo, é um dos obstáculos para conseguir melhores cidades. O outro é não pensar de uma forma conjunta o transporte e o uso da terra. Como exemplo, ele aponta que a expansão do metrô revaloriza o preço do solo de áreas até então distantes, o que por sua vez empurra as populações de menor renda que moravam ali para localizações ainda mais distantes.
“A mobilidade urbana é elemento que alavanca negócios. Isso não é negativo, mas não pode ser só isso. A primeira função da mobilidade urbana é você criar uma cidade mais igualitária. Acho que muitas vezes, não sei se todas, o que está por trás do investimento em mobilidade urbana é você transformar um determinado local numa área mais valorizada do ponto de vista imobiliário.”
O preço do solo
Um dos principais desafios que as cidades enfrentam é conciliar os princípios democráticos que deveriam reger o desenvolvimento urbano com as exigências do mercado, especialmente do mercado imobiliário. E aqui joga um papel-chave o preço do solo, que viabiliza ou inviabiliza empreendimentos.
Para o professor Francisco Sabatini Downey, pesquisador da Universidade Católica do Chile e professor-associado do Lincoln Institute of Land Policy, um problema nas cidades da América Latina é que o preço do solo está crescendo de forma constante, independente da situação econômica. E essa taxa de crescimento está sendo maior em regiões relativamente distantes dos centros.
“Antes era tradicional na América Latina que as cidades tivessem um padrão de segregação relativamente claro”, explica Sabatini. “E havia de fato áreas das periferias das cidades que estavam, entre aspas, ‘reservadas’ para os pobres. (…) O solo tinha um preço associado à capacidade de pagamento baixa da gente que morava lá, e esse solo podia ser comprado pelos programas habitacionais para construir casas populares. Hoje isso não existe mais.”
Sem a ajuda do Estado para criar moradias a preços accessíveis gera-se um déficit habitacional. Isso tem como consequências a superlotação, o aumento das invasões e assentamentos informais, e a proliferação de habitações ilegais e insalubres.
Para Sabatini, as causas dessa alta têm a ver com “bolhas especulativas e formas de negócio que ainda não entendemos bem” e são um obstáculo para criar cidades mais inclusivas.
No outro extremo do espectro econômico, as famílias com mais recursos também têm um padrão de ocupação do espaço que não favorece a inclusão. O elemento mais caraterístico dessa ocupação é o condomínio.
Para Christian Dunker, psicólogo da Universidade de São Paulo e autor do livro “Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros”, o condomínio é um sintoma do descaso no planejamento urbano, que permitiu que aqueles que tinham maior poder de consumo se desincumbissem de muitos dos problemas das cidades.
“Inventa um novo tipo de relação com o espaço público, uma relação vigiada e protegida pela estrutura de muro em que o aumento da diversidade e espaço público causado pelas grandes migrações internas dos anos 70 ficaria assim resolvido por essa nova forma de habitação, de experiência de espaço”, explica.
Mas de acordo com Dunker, o condomínio tem deixado de ser nos últimos anos o ideal de consumo das classes médias e altas brasileiras. Ele acredita que para criar melhores cidades é preciso ter uma melhor coordenação entre as diferentes esferas públicas, e que a sociedade civil pode contribuir muito para isso.
“Eu vejo com um certo otimismo o desenvolvimento do pensamento comunitário sobre a cidade. Talvez ele consiga em algum momento inventar cidades um pouco mais suportáveis.”
Ignacio Amigo é doutor em biologia molecular pela Universidad Autónoma de Madrid e especialista em jornalismo científico formado no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Unicamp. Realizou estudos de pós-doutorado em bioquímica e biologia molecular na USP entre 2013 e 2016 sob a supervisão de Alicia Kowaltowski. Entre outras atividades, atua como especialista multimídia na ClimateTracker.org e publica colaborações em veículos como The Guardian, Mongabay e CityLab. E-mail ignacio.amigo@protonmail.com
crédito das fotos: Santiago Marrodán Ciordia