Covid-19 e meio-ambiente: qual boiada está passando?

Por Ana Augusta Odorissi Xavier e Mariana Hafiz

Com decretos, cortes orçamentários e exonerações, governo fragiliza estrutura brasileira de proteção ao meio ambiente.

O Ministério Público Federal (MPF) apresentou no dia 6 de julho uma ação civil pública pedindo o afastamento do ministro do Meio Ambiente (MMA), Ricardo Salles, por crimes de improbidade administrativa, isto é, atos ilegais ou contrários aos princípios da administração pública do Brasil. No documento, 12 procuradores da República apontam Salles como responsável direto pela desestruturação de políticas de proteção ambiental do Estado ao cometer atos que as fragilizam ao invés de protegê-las ou incrementá-las.

O texto do MPF demonstra que, desde que assumiu o MMA, em 2 de janeiro de 2019, o atual ministro alterou normas governamentais de proteção ao meio ambiente, além de promover cortes orçamentários e desmobilização de órgãos de transparência e de instrumentos de fiscalização. Com isso, ele fragiliza a estrutura da pasta, que envolve também órgãos técnicos como o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

Em reunião ministerial no dia 22 de abril de 2020, Salles fez menção às ações de flexibilização da legislação ambiental, ao afirmar que a pandemia da covid-19 era um momento oportuno para “passar a boiada” e fazer uma “baciada” de alterações. Segundo ele na ocasião, eles [o governo] “tem um espaço enorme pra fazer” reformas de desregulamentação, aproveitando que o foco da imprensa está voltado para a cobertura do novo coronavírus”.

“Em qualquer país do mundo o presidente demitiria o ministro imediatamente porque o que ele falou é absolutamente ilegal, mas eu já esperava”, afirma Ricardo Galvão, ex-diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). “Desde o começo do governo, mesmo quando Salles ainda estava na Secretaria de Meio Ambiente em São Paulo, teve sempre um posicionamento de que o desenvolvimento econômico na região se opunha à questão ambiental”. Sabe-se, por exemplo, que Bolsonaro foi eleito com grande apoio de mineradores e desmatadores da Amazônia Legal.

De acordo com Márcio Astrini, secretário executivo do Observatório do Clima, o governo atual desmobilizou diversos instrumentos que foram criados ao longo da história do país, tanto por governos anteriores quanto pela sociedade civil, para prevenir o desmatamento e diminuir a situação de fogo na Amazônia. “É um governo que, além de não resolver, ainda agrava o problema”, salienta.

As alterações na legislação ocorrem desde o início de 2019, quando Jair Bolsonaro, recém empossado presidente, extinguiu a Secretaria de Mudanças do Clima e Florestas pelo Decreto nº 9.672/2019. Embora o assunto seja estratégico para o cumprimento de compromissos internacionais referentes ao clima, como o Acordo de Paris, não houve uma realocação do tema dentro da pasta.

Também no primeiro semestre de 2019, Salles reduziu drasticamente a participação de profissionais técnicos e da sociedade civil em órgãos de gestão de recursos e políticas públicas relacionados ao meio ambiente. A Portaria Conjunta nº 298 acabou com a presença de técnicos do Ibama e ICMBio no Comitê de Compensação Ambiental Federal, que é responsável pela alocação dos recursos às unidades de conservação ambiental. Na mesma toada, o Decreto nº 9.806 diminuiu a representação da sociedade civil nos assentos do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) em mais 80%, aumentando  a participação do governo.

Em abril de 2020, no início da pandemia, o MMA publicou o Despacho nº 4.410/2020, impondo que, a partir de 6 de abril, áreas de preservação permanentes (APPs) da Mata Atlântica desmatadas ilegalmente até julho de 2006 fossem regularizadas para ocupação. O ato violava a Lei da Mata Atlântica (Lei nº 11.428/2006), que não admite a consolidação do uso de áreas desmatadas ilegalmente, e dava anistia aos proprietários rurais que destruíram áreas do bioma. No dia 3 de maio, Salles revogou o despacho após solicitação do MPF.

Três semanas após a reunião ministerial – quando o Brasil atingia 13.149 mortes e 188.974 casos confirmados de covid-19 (Ministério da Saúde) – foi publicado o Decreto nº 10.347/2020, que transferiu o poder de concessão de florestas públicas do MMA para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). O artigo 2º do decreto viola o que está previsto na Lei da Mata Atlântica: segundo ela, cabe ao MMA formular estratégias, políticas, planos e programas para gestão de florestas públicas. Ao contrariar a lei, que está em vigor desde março de 2006, a transferência configura crise de legalidade de decreto.

Transparência de dados e comunicação

Em 2019, o governo fez várias críticas ao trabalho do Inpe, que desde 1988 faz detecção das taxas de desmatamento da Amazônia por seus sistemas de mapeamento de área desmatada (Prodes) e alertas de desmatamento (Deter-B). “Estou convencido de que os dados de desmatamento são mentira”, disse Bolsonaro a jornalistas em julho de 2019. As críticas foram endossadas por Ricardo Salles, que disse à imprensa que a divulgação dos dados era manipulada, alegando que dados do Deter não permitiriam medir desmatamento.

O sistema Prodes calcula taxas de desmatamento ao analisar com imagens de satélites de áreas maiores que 6,5 hectares onde ocorreu corte raso (remoção completa da cobertura florestal primária)

“O alerta é um dado subestimado em relação à área desmatada. Ele mostra uma tendência: se o Deter aumenta, provavelmente o desmatamento vai ser mais alto; se o Deter abaixa, vai ser mais baixo”, explica Ane Alencar, diretora de ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). Segunda ela, “ele tem uma proporcionalidade ao dado oficial anual, sendo possível obtermos tendências, e para isso ele é muito bom”. A diferença é que, imaginando que a área final desmatada calculada (dado Prodes) seria um quadrado, o Deter consegue detectar um triângulo dentro desse quadrado.

 

Quando áreas de uma imagem não podem ser observadas por causa de cobertura de nuvens, o sistema estima cálculo de incremento através de fotointerpretaçãoNesse sistema, os dados ficam disponíveis na plataforma para o acesso aberto. No entanto, como ele foi pensado também para ajudar a fiscalização do Ibama, funcionários do órgão têm acesso aos resultados dos monitoramentos 7 dias antes de eles serem publicados, para que seja possível atuar antes dos grileiros (quem falsifica documentos para tomar posse de uma terra).

 

O sistema Deter produz diariamente alertas de alteração na cobertura florestal em áreas de no mínimo 3 hectares

A comunicação de órgãos ligados ao MMA também sofreu restrições. Para falar com a imprensa, Ibama e ICMBio passam agora a pedir permissão para o ministério. Já na comunicação entre Ibama e Inpe era necessário que o acordo de cooperação técnica firmado entre os dois no governo Temer – que regulamentava transferência e acesso a dados – fosse renovado. “O prazo para renovação terminou em novembro de 2018, então eu comuniquei o Ministério de Ciência e Tecnologia que teria que ser renovado, mas durante minha gestão isso nunca aconteceu”, lembra Galvão.

Cortes no orçamento e na fiscalização

Apesar do recorde histórico de destruição do bioma amazônico registrado entre agosto de 2018 e julho de 2019 – cerca de 10.300 km2 da Amazônia Legal foram postos abaixo, o maior índice dos últimos dez anos – Salles efetuou uma redução de 25% no orçamento de 2020 do MMA destinado às ações de fiscalização, em comparação ao ano anterior.

Além disso, o Fundo Amazônia, criado para fomentar projetos de prevenção e combate ao desmatamento, foi paralisado depois de Salles acusar doadores de terem obtido fundos de forma irregular. Ele também assinou dois decretos, em novembro de 2019 e fevereiro de 2020, extinguindo os órgãos operacionais do fundo: comitê orientador (Cofa) e comitê técnico (CTFA). Com isso, países financiadores suspenderam suas colaborações e cerca de R$ 1,6 bilhões estão paralisados. Nenhum novo projeto foi aprovado em 2019.

Ainda em 2019, o governo autorizou a atuação do exército em ações preventivas e repressivas sobre o desmatamento ilegal e combate a focos de incêndio na Amazônia, no período de 24 de agosto a 24 de outubro, através do Decreto nº 9.985/2019. A ação, intitulada “Operação Verde Brasil”, foi classificada como complementar às ações fiscalizatórias do Ibama, mas custou aos cofres públicos R$ 14 milhões a mais do que todo o orçamento anual previsto para ações desse órgão em 2019. Mesmo após ser apontada por especialistas como instrumento insuficiente na contenção de crimes ao meio ambiente, a operação foi retomada em maio de 2020 e teve sua vigência prorrogada até 6 de novembro (Decretos 10.341/2020 e 10.421/20).

O Conselho Nacional da Amazônia, que coordena a implementação de políticas públicas relacionadas à Amazônia Legal, também tem presença da farda. Comandado pelo vice-presidente Hamilton Mourão, o conselho conta com outros 19 militares como membros. Essa “militarização” de órgãos ligados ao meio ambiente tem sido duramente criticada por pesquisadores da área. “Os militares estão atrapalhando as ações do ICMBio e do Ibama em coibir o desmatamento, inclusive com declarações dos funcionários do Ibama, sobre como os militares têm intencionalmente atrapalhado essas ações”, relata Lucas Ferrante, cientista do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).

A ação do MPF também menciona exoneração de fiscais do Ibama que atuaram com êxito no combate ao desmatamento em terras indígenas. “Alguma coisa muito errada está acontecendo”, afirma Ane Alencar. “O Ibama, que sempre fez a fiscalização com a polícia federal por vários anos, é um órgão que estrategicamente sabe como pensar essas operações.  O exército tem nome, mas nessas horas, numa área tão vasta e grande como a Amazônia, e preciso ter uma estratégia de inteligência”.

Impacto financeiro

Na última semana de junho, um grupo de gestores internacionais, que juntos administram mais de R$ 4 trilhões em ativos, enviaram uma carta à embaixadas do Brasil, demonstrando preocupação com o que chamam de “descompromisso do país com a questão ambiental”. Eles afirmam que os títulos soberanos brasileiros podem se tornar de alto risco se não houver reversão na escalada de desproteção do ambiente. “A situação do país afeta o debate ambiental no mundo porque a destruição da Amazônia pode significar a inviabilidade de planos e metas de conter o aquecimento global como, por exemplo, o Acordo de Paris”, explica Márcio Astrini.

Além do capital privado, acordos comerciais como o Mercosul-União Europeia, também estão em risco. No dia 10 de julho de 2020, a defensora do povo europeu, Emily O’Reilly, abriu investigação relacionada ao fato de a União Europeia não ter realizado uma avaliação atualizada dos impactos ambientais do acordo com o Mercosul antes de firmá-lo em junho de 2019.

Para Astrini, a falta de uma política clara e efetiva de preservação ambiental mostra que o Brasil não é um país confiável e pode trazer prejuízos financeiros. “Veja que situação: se os investidores internacionais não colocarem mais dinheiro no Brasil por conta da questão ambiental, porque que os governos de outros países vão colocar?”.