Costuras invisíveis: moda e (des)construção do gênero

Por Maíra Arcoverde

Os últimos anos têm sido palco de um debate cada vez mais polarizado: dos setores mais progressistas aos mais conservadores, o gênero ganhou notável centralidade em seus atravessamentos políticos, educacionais, religiosos e estéticos. Discute-se, exaustivamente, a igualdade de gênero, a violência de gênero, o ensino de questões de gênero nas escolas, a existência de uma “ideologia” de gênero.

Na esteira dessa proliferação discursiva destaca-se a moda. Sempre em sintonia com o espírito de uma época, a moda é uma das manifestações culturais mais poderosas já desenvolvidas, viabilizando uma forma de comunicação não-verbal que espelha e muitas vezes antecipa os debates que ainda se delineiam no horizonte.

Que roupa veste a igualdade?

Em seu mais recente entrelaçamento com o gênero, surge nas tendências de moda o que se tornou conhecido como moda sem gênero. O nome, autoexplicativo, sugere que há um novo estilo de roupas que não se restringe a um único gênero – masculino ou feminino –, incentivando a igualdade vestimentar e a liberdade de usar aquilo que mais agrada a cada pessoa.

Figura 1 – Campanha Selfridges Agender Fonte: Selfridges

Não é a primeira vez que ocorre movimento similar na trama da moda: o unissex dos anos 1960 e a androginia dos anos 1980, precursores da moda sem gênero, também tiveram um importante papel na articulação visual e material de discussões que efervesciam em cada período. A década de 1960 assistiu ao florescer do movimento feminista, cuja luta por igualdade em direitos prontamente repercutiu na igualdade do vestir. Alguns anos mais tarde, e com as mulheres mais presentes do que nunca no mercado de trabalho, a confusão na aparência feminina-masculina nos anos 1980 traduziu uma ideia de que mulheres eram tão competentes quanto homens em suas profissões – não havia qualquer diferença entre os dois, fosse na execução do trabalho, fosse na construção da aparência.

Figura 2 – Grace Jones, Nightclubbing (1981) Fonte: Jean-Paul Goude, 1981

A moda da nossa década, os anos 2010, mais uma vez revisita a ambiguidade de gênero ao evocar a possibilidade de roupas que não precisem mais se limitar ao binário; roupas que possam ser usadas livremente por pessoas, da maneira que mais lhes aprouver. Como em outros momentos, a moda aqui também responde a importantes processos sociais que vêm se desdobrando nos últimos anos: o fortalecimento dos já estabelecidos movimento feminista e movimento LGBT e a consolidação de um mais recente movimento transsexual/transgênero.

Dentre todas as reivindicações e posicionamentos políticos dos movimentos citados, os que mais afetam a questão indumentária sejam talvez aqueles que abordam a questão biológica como algo que não deve determinar as maneiras como as pessoas vivem suas vidas. Nas palavras de Simone de Beauvoir: “biologia não é destino”. Mais além, as articulações aqui pensadas chamam a atenção para o fato de que esse comportamento humano, tido como resultado de uma suposta verdade biológica dos corpos, nada mais é do que parte de uma norma culturalmente estabelecida, não de uma natureza essencial.

Costurando o gênero

Em meio às infinitas normas de comportamento esperadas de mulheres e homens, a roupa ocupa um papel central na legitimação dos corpos que a vestem. Desde bebês, somos literalmente cobertos com expectativas: para evitar os constrangimentos da indefinição, vestimos bebês meninas de rosa e bebês meninos de azul. À medida que crescemos, as expectativas continuam lá, cada vez mais presentes, traduzidas em imaginários e universos absolutamente incompatíveis – para as meninas, além da onipresença da cor rosa, predominam temáticas de beleza e delicadeza; para os meninos, ação, aventura, heroísmo e uma variedade muito maior de cores, exceto rosa.

Figura 3 – Bebês gêmeos Fonte: Pinterest

A esse respeito, me alinho ao pensamento de Marinês dos Santos (2018), quando diz que não há “artefatos neutros”. Como todos os artefatos, as roupas também não são neutras – pelo contrário, ajudam a criar sentido, reforçar hierarquias e construir verdades. Em especial no que diz respeito ao gênero, a moda passa a funcionar como uma espécie de substituta da anatomia, ocultando mas ao mesmo tempo anunciando as diferenças. A incompatibilidade dos gêneros, embora rompida em vários momentos ao longo da história da moda, é notoriamente reforçada pelas roupas.

Ao corroborar para a manutenção desse sistema binário, a moda não só naturaliza sua existência, como por ele é naturalizada. Em outras palavras, as diferenças entre mulheres e homens, produzidas culturalmente, são tomadas como naturais (portanto verdadeiras), ao mesmo tempo em que as roupas femininas e masculinas também o são – são dispostas, assim como o gênero, fora da cultura e da história. As pessoas tendem a ler as roupas como algo que não pode ser mudado, porque nunca mudou: homens, por exemplo, não usam saias porque “sempre foi assim”, e isso se torna particularmente evidente nos recentes anos, em que entra em cena a já mencionada moda sem gênero, juntamente com o debate da liberdade de vestir.

A nova moda chega causando furor entre setores conservadores e religiosos por ousar subverter os usos da roupa e, consequentemente, as noções de feminilidade e masculinidade.  Em 2016, uma cadeia de lojas de departamento lança uma campanha para o Dia dos Namorados cujo slogan é “Misture, ouse e divirta-se”. A peça publicitária mostrava, entre outros, uma mulher vestindo uma cueca e um homem usando um vestido. Ao som de “Baby, have you heard the news/ This is our time to be free/ They’re talking ‘bout it on the streets/ This is our time to be free”[1], a campanha recebeu fervorosas críticas de uma conhecida pastora evangélica, que comenta em suas redes sociais seu choque ao assistir à propaganda e sua “ousadia”. Ela conta: “(…) eles fizeram todos nus como se fôssemos criados iguais e temos o poder de escolha. Então chegam em um campo cheio de roupas e as mulheres começam a vestir as roupas dos homens e os homens as das mulheres. Que absurdo! Nós que conhecemos a Verdade imutável da Palavra de Deus não podemos ficar calados.”, e complementa seu texto com hashtags como “sou feminina, visto-me como mulher” e “homem veste-se como homem”.

Alguns meses antes, a principal publicação brasileira sobre educação lança em 2015 uma edição sobre gênero, cuja chamada provoca: “Vamos falar sobre ele?”, em grandes letras brancas, sobre a foto de uma criança em um vestido brilhante e uma tiara de princesa. A criança da capa, um garoto britânico de 5 anos, chegou a ser afastado da escola por seu comportamento impróprio de preferir usar vestidos ao invés de vestir-se “de acordo com seu gênero”.

Pensando nessa leitura das roupas, quase como algo intrínseco ao corpo que as veste, mostra-se interessante pensar a moda e seus entrelaçamentos naturalizados com o gênero a partir da perspectiva de Daniel Miller e seu conceito de humildade das coisas. O antropólogo argumenta que quanto menos percebemos os objetos, mais poderosos eles se mostram, uma vez que, ao invés de tomar uma postura agressiva no reforço da norma, eles “lhe ajudam docilmente a aprender como agir da forma apropriada” (Miller, 2013, p. 83). As coisas são humildes, pois “quando algo é evidente demais, pode chegar a um ponto no qual ficamos cegos para sua presença, não lembramos dele.” (Miller, 2013, p. 79).

Ora, a moda é o perfeito exemplo de como nos acostumamos a ver nas roupas símbolos de feminilidade e masculinidade, ao ponto de sequer questionarmos o porquê de nos vestirmos como fazemos – ou, ainda, o porquê de não podermos nos vestir de outras maneiras. Algumas noções presentes do vestir são tão enraizadas (e há uma considerável influência da religião aí) que nos leva a ignorar fatos documentados (em nome da manutenção de nossas crenças e valores). A masculinidade, por exemplo, já foi construída com discursos vestimentares bastante divergentes dos nossos, lançando mão do que hoje seria, sem sombra de dúvida, considerado “coisa de mulher”. Os saltos altos, perucas e maquiagens dos homens da corte francesa parecem se situar não só em um outro tempo, mas em um outro universo, uma vez que, no nosso, “homem se veste como homem” (e “mulher como mulher”).

Figura 4 – Luís XIV Fonte: Acervo pessoal

Conclusão

Ainda que a roupa seja tida como dada e, talvez até mesmo por isso, a moda muitas vezes reforce lógicas hegemônicas, como é o caso do gênero, tomo emprestadas as reflexões de Judith Butler (2015) para destacar que na moda reside também um inegável potencial desestabilizador. Como ela ressalta, a ideia de que há um sexo biológico que mapeia e determina nosso comportamento se mostra algo tão frágil, que deve ser repetido e reiterado à exaustão, na eterna batalha para consolidar sua pretensa verdade. O condicionamento das roupas ao gênero ajuda a tecer esse sistema de reiteração que, como coloca Santos (2018), nos interpela a assinalar “F” ou “M” em incontáveis situações de nossas vidas cotidianas.

Entretanto, Butler (2013) chama a atenção ao fato de que é a repetição descontextualizada dos atos que promove a desestabilização daquilo que ganhou estatuto de verdade, ou seja, usar-se da própria norma para subverter a lógica e dentro dela construir contra-discursos indisciplinados acaba evidenciando o caráter construído daquela verdade. Não é de se espantar, então, que visões conservadoras se mostrem tão ultrajadas ao perceber as mudanças nas noções do vestir – além de simbolizar o rompimento com conceitos fixos de gênero e sexualidade, representam a tomada de consciência a respeito das roupas, esses objetos tão próximos que se percebem uma segunda pele; evidenciam a plasticidade do corpo, a instabilidade daquilo que nos é tão caro: a natureza.

O momento é de endurecimento, mas esse endurecimento nada mais é do que uma postura reativa: cada vez mais se proliferam os deslocamentos, as transições, as viagens, as experimentações que assombram a hegemonia e suscitam o repúdio. Os laços que nos prendiam à tradição estão sendo desafiados, colocados em questão. Nos tempos austeros que se anunciam, não devemos permitir que a roupa seja a venda nos olhos, mas sim o vírus que fragmenta o sistema, multiplicando nossas possibilidades de existência para além do 0 e do 1.

Maíra Arcoverde é mestra em têxtil e moda pela USP. Pesquisa sociologia da moda, cultura material, estudos culturais, feminismo, gênero e teoria queer. Também atua como designer na marca de acessórios Basfond e é docente no curso técnico de modelagem do vestuário na ETEC Carlos de Campos, além de lecionar como convidada em cursos livres no Senac.

Bibliografia

Beauvoir, S. O segundo sexo – vol. 1: Fatos e mitos. 4ª edição. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970.

__________. O segundo sexo – vol. 2: A experiência vivida. 2ª edição. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967.

Butler, J. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. 8ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

dos Santos, M. R. “Gênero e cultura material: a dimensão política dos artefatos cotidianos”. Revista Estudos Feministas, v. 26, n. 1, 2018.

Miller, D. Trecos, troços e coisas: estudos antropológicos sobre a cultura material. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

[1] Em tradução livre: “Baby, você ouviu as novidades? / É o momento de sermos livres / Estão comentando pelas ruas / É o momento de sermos livres”.