Por Roberto Romano
Como na maioria de nossas palavras e instituições, o império romano serve como fonte para entendermos o modo pelo qual o estrangeiro é assumido ao longo da história antiga, medieval e moderna. Não é o caso de retomar agora todo o fio lógico e social que define a recepção ao estrangeiro no transcurso de pelo menos dois mil anos. Há uma peculiaridade a ser discutida quando falamos na absorção de coletividades não indígenas em organizações políticas sólidas. No caso da Grécia existiam cidades Estado, cada qual com sua compacta formação étnica, cultural e política. O elemento mais amplo do termo “helênico” – supostamente todas as urbes eram irmãs– não garantia unidade entre elas. Dizia-se de modo inócuo: uma guerra que as envolvesse destruiria sua ligação “familiar”. Como Tucídides informa, se existiu “família” no território grego ela mimetizava os mitos e tragédias entre irmãos. Havia direito inclusive ao canibalismo, pois sobrinhos eram servidos aos irmãos em banquetes. Pais devoravam os próprios filhos. Atreu e Tieste são ícones da “fraternidade” entre Atenas, Esparta e outras cidades.
Quem nasce na polis recebe o nome que lhe permite ser dela a base. Ao se dirigir ao lugar pátrio o uso era dizer “os atenienses” e não Atenas, o mesmo em Esparta, Corinto, etc. Até o declínio os coletivos gregos reservavam para os nele nascidos a cidadania. Além da tragédia, a sátira mostra o fechamento político contra tudo o que não fosse autóctone. Luciano de Samosata, no final da relevância política grega no Mediterrâneo, tem peças saborosas para indicar o zelo pela pureza étnica que levou os cidadãos à idiotia, tomando-se o termo no sentido de um indivíduo ou cidade que nada percebe além de seus interesses imediatos. Características gerais dos que habitavam o território grego, no entanto, foram mantidas para salientar a superioridade “fraterna” contra os “bárbaros”. “Os povos que habitam os lugares gelados e os da Europa são cheios de valentia mas deficientes, em parte, de inteligência (dianóia) e técnica. Eles continuam aproximadamente livres, mas lhes falta organização política e capacidade de governar os vizinhos. Os povos da Ásia por outro lado são inteligentes e cheios de técnica, mas lhes falta coragem e são continuamente submetidos, sujeitos à escravidão. Mas a raça grega reúne os dois caracteres pois ocupa a posição geográfica média. Ela é ao mesmo tempo valente e inteligente e continua a ser livre pois consegue ter instituições políticas muito boas, sendo capaz de governar a todos se conseguir a unidade constitucional” (Política, livro VII, 1327). Preceptor de Alexandre, Aristóteles define o programa imperial pan-helênico que avançou sobre a Ásia, o norte da África e lugares do Ocidente. Mas foi interrompido e, para o estancamento das conquistas boa parte da responsabilidade coube à noção da cidadania grega como privilégio a ser negado aos estrangeiros. Em Atenas a democracia restringiu a cidadania aos autóctones, dela expulsando os “bárbaros” e os escravos. Com tal falha abriu-se o campo para o controle imperial de Roma, cuja atitude diante dos estrangeiros foi diversa à empregada pelos gregos.
Em primeiro lugar a política romana em relação às cidades itálicas e no mundo conquistado pelas legiões. As cidades sem defesa alguma eram dizimadas se não aceitassem o domínio de Roma. Às mais fortes era oferecido um pacto (Foedus) pelo qual elas mantinham sua religião, governo, impostos. Eram levadas apenas a apoiar a potência hegemônica e casos graves de guerra ou em sedições intestinas. Gradativamente os integrantes daquelas urbes recebiam o título e as prerrogativas de cidadãos romanos, incluindo o direito de voto. A tolerância diante da religião e da cultura dos federados fez aumentar a potência do império e o tornou presente em regiões que a Grécia nunca atingiu. O estatuto do peregrino ajuda a entender a lógica de integração praticada pelos conquistadores. Entre 30 antes de Cristo e 212 depois de Cristo o termo “peregrino” indica os indivíduos e grupos sujeitos ao império, mas sem cidadania. Durante os primeiros séculos cristãos a grande maioria do império era composta de pessoas não cidadãs romanas. Depois os livres habitantes recebem a cidadania (pela constitutio Antoniniana) e o termo “peregrinus” é abolido. Até então, peregrino é o posto sob a égide do governo romano. Os demais seriam os bárbaros. Os peregrinos usufruíam os direitos concedidos pelo ius gentium, mas não tinham acesso ao ius civile, as leis de Roma. Seus direitos eram limitados em todos os sentidos, da propriedade fundiária à guerra.
Gradativamente os peregrinos têm acesso à cidadania romana por vários meios, incluindo a decisão imperial. O governador de regiões definia muitas vezes tal passagem. Tais governadores eram movidos naqueles casos por vários interesses, incluindo sobremodo os “presentes” a eles concedidos pelos peregrinos ricos. É conhecida a história do comandante militar que prendeu São Paulo, que também era cidadão romano:”Só com uma grande soma consegui esta cidadania “Ego multa summa civilitatem hanc consecutus sum”(Atos, 22, 28) ”. Quem pertencia a um município poderia obter direitos romanos.
A constitutio Antoniniana deu cidadania para todos os livres do império, eliminando a classe dos peregrinos. Sejam quais forem as razões pelas quais o império concedeu a prerrogativa, o fato é que a partir de então ocorre uma horizontalidade de direitos entre o nativo de Roma e os estrangeiros. Nada no entanto, em tais matérias, é sem idas e vindas. Na passagem do estatuto de peregrino ao de cidadão surgem obstáculos. Fica, no entanto, determinada uma lógica de inclusão. Embora ela exiba preferências (por exemplo os latinos recebiam tratamento diferente ao dos peregrinos) sua tendência era a de, via municípios (algo ignorado na Grécia) abrir vias para o acréscimo de potência romana pela absorção dos estrangeiros. ([1])
Com a queda do império romano alguns municípios se mantiveram, autônomos diante da Igreja e dos nobres, potências feudais e anárquicas. Não por acaso eles serviram como núcleos da vida política, econômica e social durante a Idade Média. Seus comerciantes abriram caminhos entre os centros urbanos e atraíram massas que fugiam do guante feudal. Não por acaso data daí o enunciado famoso: “o ar da cidade torna livre”. A circulação de refugiados aumenta de modo exponencial na Europa, o que gera inquietação de comerciantes ricos e corporações de ofício. Gente sem dinheiro e desprovida de treino técnico para o trabalho se amontoava nas periferias e bairros violentos. Diante de famílias inteiras, aos milhares e sem nada, não existe um poder estável. O Estado, como o conhecemos hoje, estava nos seus primeiros ensaios. A Igreja, além de confinada em mosteiros e feudos, tinha paróquias disputadas por nobres que as compravam para garantir sustento aos filhos e filhas não primogênitos. Tanto a instituição eclesiástica quanto a civil iniciam a centralização administrativa e ainda encontram resistência nas bases sociais e hierárquicas. O rei sofre a indignação dos nobres, o papa os ardis dos bispos e abades contra seu mando. O celibato sacerdotal é uma das medidas para garantir as propriedades e a autoridade eclesiástica.
Peço licença para citar um escrito meu sobre o assunto. “Sem comércio, impossível a liberdade dos servos e sua passagem para o caminho urbano. Com o tráfico universalizado a propriedade deixa de ligar-se sobremaneira à terra. Os corpos dos pobres são doravante ‘livres’. Só lhes resta o labor ou a fraude, o roubo e o assassinato. (…) A violência põe em movimento toda a vida social, ampliando-se no universo concentracionário das cidades. Os homens livres e pobres arriscam sua frágil sobrevida a cada átimo, os ricos e poderosos lutam entre si e devem encarar os ‘negativamente privilegiados’. “.([2]) As corporações, fechadas aos não iniciados, impediam abrir vagas de emprego para a massa famélica e violenta. Surge o grito contra a cidade, suposto lugar de pecado e indisciplina: Comunia est tumor plebis, timor regni, tepor sacedotii (a cidade é o inchaço do povo, o medo dos príncipes, o relaxamento dos padres). As universidades são as únicas corporações abertas. Assim, pessoas pobres aos milhares seguem para os centros universitários em busca de asilo e saber. De toda a Europa elas se movem rumo a Paris e outros campi. Os bairros habitados pelos novos recrutas pobres da ciência são ditos, “the wilder side of university life”. Eles incomodavam os burgueses e comerciantes com seus ruídos, motins e modos ainda próximos à natureza selvagem.
Na centralização do poder civil e religioso aparecem técnicas e instituições destinadas a acalmar os burgueses contra massas indisciplinadas, ébrias da liberdade trazida pelas urbes. A polícia surge para garantir a ordem, a propriedade, os “bons costumes”. Os estrangeiros são vistos como ameaça caótica. Prisões, expulsões, penas duras que chegavam à de morte são aplicadas para garantir a economia e a “boa sociedade”. Começa o grande cerco contra os pobres, bem anterior ao cerco contra os doentes mentais descrito por M. Foucault. Tal cerco aumenta no mesmo passo em que o Estado nacional se estabelece em fronteiras constantes. Na Idade Média tais limites eram frágeis, inclusive pelo costume de casamentos entre governantes, o que acrescentava ou subtraía terras de um poder conforme alianças que se faziam ou desfaziam. As novas fronteiras, mais sólidas, definidas pelos Estados, piora a condição dos estrangeiros, massas que fugiam dos truculentos poderes locais, ainda em grande parte nas mãos de nobres, abades, bispos. Se no cume do poder existe uma flexibilidade quanto à origem dos governantes, na base social o rigor é maior para admissão ao convívio. Se o cardeal Mazarino pode exercitar a política do reino, nas bases a hostilidade contra italianos e demais estranhos é acentuada.
Voltemos à queda do império romano. Com ela, toda a panóplia de ordenamentos legais, econômicos, religiosos do imenso poder é explodida por fora, pelos invasores bárbaros, e por dentro. Povos inteiros são tangidos para longe, deslocando-se rumo a terras já habitadas. Gradativamente a Europa se transforma num caldeirão de povos, línguas, costumes. Apenas os municípios, fragmentos do que foi o império, permanecem com população estável, hábitos, administração própria. A centralização dos Estados e da Igreja estabelece gradativamente novos sistemas de ordenação étnica e cultural. Em semelhante tarefa o registro e controle das populações dá-se após a reforma protestante e na contrarreforma católica. Era importante para a Igreja e para os Estados saber quais povos estavam ainda sob seu controle. Surge o uso das estatísticas para conhecer as características das populações. ([3]) No terreno católico que pela primeira vez falou em “razão de Estado” –ao redor do Cardeal Bellarmino e tendo como autor principal o padre Botero – se instala o instrumento de pesquisa populacional intitulado Livro do Estado de Almas. Com seus formulários a Igreja e o Estado podem saber a composição étnica, econômica, social e….religiosa dos povos. Ainda hoje aquele instrumento fornece farta documentação para os que desejam estudar os povoamentos espanhóis no Oriente. ([4])
Foram definidos aproximadamente os limites e fronteiras dos Estados nacionais (tarefa que perdura até os nossos dias) importantes nos conflitos mundiais do século XX (basta recordar as disputas sobre a Alsácia-Lorena entre França e Alemanha). Os conflitos se prolongam em guerras localizadas como no caso da Coreia, Vietnã e outros, sem falar na sul americana guerra das Malvinas. Em todas as guerras dos séculos XIX e XX milhões foram mortos e milhões expulsos de suas terras. Os movimentos populacionais seguiram rumo ao ponto de índices inéditos na história da humanidade. Além da guerra a fome, endemias, lutas religiosas e políticas aceleram a maré montante de coletividades inteiras expulsas e deixadas sem país que as acolham. Assim, dois vetores indicam passagens contraditórias: as populações seguem o ritmo que na Europa vem da Idade Média, com a urbanização a cada instante mais acelerada. Mas ao chegarem aos países alvo elas são atacadas como perigo para os que habitam ali desde algum tempo.
Na passagem do século XIX para o XX a saída dos Estados foi acentuar a xenofobia e o nacionalismo exacerbado. Como fruto de tal política ocorreram fenômenos como os partidos de doutrina totalitária e racista, com o nazismo alemão e a ideologia de superioridade japonesa que levou a China e a Coreia à miséria e moveu suas populações para a fuga das localidades natais. Ainda no caso europeu ocorreram grandes fomes em certos países, o que levou à fuga em massa de seus cidadãos. É que se passou na Irlanda e na Itália. O nacionalismo cumpre a função de antídoto, ele mesmo um veneno, contra a impossibilidade estatal de servir aos povos submetidos ao aparato burocrático, jurídico e militar. Crescem as cidades e as massas que fogem de seu lugar originário, aumenta a violência política, econômica e social nas crises capitalistas cujo auge, no século XX, é a quebra da Bolsa de Nova York e na Alemanha a hiperinflação que abre sendas para o programa racista, com o nazismo. No século XX os nacionalismos se digladiam sob a égide de potências como os EUA e a URSS, gerando novas guerras (Irã/Iraque, Afeganistão, Síria, Israel, formam apenas alguns exemplos). Massas se deslocam para fugir dos conflitos rumo às cidades aparentemente pacificadas. Nelas, os perseguidos se instalam nas periferias urbanas, novamente estigmatizados como perigo para os antigos habitantes.
Vejamos alguns dados. Segundo a ONU 55% da população mundial vive em áreas urbanas. Estima-se que em 2050 o índice será de 68%, talvez a maioria na Ásia e na África. Índia, China e Nigéria contariam com 35% do aumento projetado. Em 1950 a população do planeta girava ao redor de 751 milhões e no ano de 2018 chegou a 4.2 bilhões. Em 2118 ainda a América do Norte tem 82% dos habitantes nas cidades, na América do Sul e Central, mais o Caribe o índice é de 81%. A Europa conta com 74%. Além desses índices, o Relatório da ONU aponta para um elemento vital: decresce o número de habitantes em cidades localizadas em áreas férteis na produção de alimentos. O crescimento das cidades de zona rural cresce de modo lento. Em 2018 o índice era de 3.4 bilhões, espera-se um declínio em 2050 para 3.1 bilhões. As cidades mais populosas do mundo são Tókio (37 milhões em 2018), Nova Delhi (29 milhões), Shangai (26 ilhões), Cidade do México e São Paulo (22 milhões). ([5])
Com semelhantes dados em mente, reflitamos sobre alguns pontos da ordem política, econômica e social que tiveram plena expansão a partir do século XX. No mesmo ritmo em que as populações seguem para os centros urbanos, o que aumenta todas as despesas do Estado e da sociedade, dominam na vida acadêmica e política doutrinas que pregam a diminuição do Estado, dos impostos, da presença oficial no mercado e na sociedade civil. Como diz um comentador, o neoliberalismo, forma de início acadêmica e logo assumida por setores relevantes das elites econômicas mundiais, é uma ideologia a ser vista como defesa intransigente “do livre mercado, propriedade privada, individualismo, e Estado mínimo”.([6]) O espraiamento do ideário neoliberal ocorre concomitante à outra ideologia, a globalização. Há de fato o fenômeno da globalização. Ele que vem de priscas eras, sobretudo da expansão colonial europeia com seus roubos da tecnologia asiática, os genocídios em nome de uma cultura branca “superior”, o comércio de commodities exacerbado nas trocas desiguais entre metrópoles e colônias. Mas também há o que se prega na doutrina espalhada a partir do século XX. Um ponto essencial de semelhantes ideários é o fim das soberanias nacionais. Não basta aos proponentes do neoliberalismo exacerbar a “liberdade” do mercado e a diminuição drástica dos antigos Estados nacionais. É necessário que eles percam o controle sobre territórios e povos, pois o novo soberano doravante seria o “investidor”.
Não foi surpresa, pois, que os Estados, sobretudo os mais frágeis, perdessem cada vez mais impostos e condições de prestar serviços às populações concentradas nas periferias urbanas. Um elemento importante de semelhante vampirismo é o brain drain que leva para os Estados mais ricos cérebros cuja preparação custa muito em impostos da população nativa. Também não é de surpreender a exacerbação do imperialismo, praticado pelas grandes potências em prejuízo das menores. Simultaneamente os Estados pobres sofrem crises de governabilidade a cada momento mais acentuadas. Governos legais cedem passo a ditaduras. Os próprios governos legais assumem políticas autoritárias para atender as exigências dos “investidores externos”. A instabilidade política, a carência de recursos públicos, o imperialismo: a receita está pronta para o massacre das populações que seguiram rumo às cidades. Mal chegam às periferias urbanas as guerras, os golpes de Estado, as políticas de entrega das riquezas às grandes empresas (a água, fator vital por excelência, tende a ser privatizada), as massas são expulsas para o meio do Nada. Entram em mares sem garantias de salvação, recebem repressão e preconceito dos antigos habitantes dos lugares alvo, morrem castigadas pela impotência ou descaso das instituições estatais. Como sempre a ONU cumpre um medíocre papel supletivo das políticas públicas nacionais. Ela própria, dada a ausência de recursos e logo de contribuição para seus cofres que viram dos impostos nacionais, se debate entre a vida e a morte, submetida aos interesses das potências que dirigem o conselho de segurança. No mundo atual, apenas algumas vozes com autoridade ética se levantam contra a política deliberada de extermínio conduzida pelos Estados. Entre elas, a do papa Francisco.
Aproximemos os elementos: aumento exponencial das populações urbanas, quase impossibilidade dos Estados suprirem os serviços sociais (moradia, esgoto, água, alimentos, saúde, segurança, educação, ciência e tecnologia, artes etc), ausência de impostos sobre grandes fortunas, capital especulativo que na era digital se torna “volátil” e chantageia governos com a possível retiradas de seus haveres. E ademais o privilégio do mercado sobre a vida, instabilidade política, belicismo civil e internacional. E acima de tudo, imperialismos que se digladiam para aumentar a força de suas sedes geopolíticas. Não é surpresa que no mesmo passo da urbanização global siga a imigração forçada, ou por busca de vida menos opressiva e miserável. O nacionalismo situado na extrema direita da paleta ideológica não questiona as bases do neoliberalismo, antes as potencia. Daí a ineficácia programada no agendamento dos serviços públicos. Assim, não apenas os novos coletivos que chegam às cidades, mas os já estabelecidos são jogados na incerteza e no medo. E, claro, governantes sem outro recurso para atender as massas já estabelecidas e as novas nos locais, apelam para as vítimas propiciatórias: os imigrantes pobres, de cultura diferente e que seriam criminosos. Tal é o teor da propaganda que levou Trump ao poder nos EUA, tal é o teor das propostas da direita em países chave da Europa, como ocorreu na Itália e, nela, particularmente na região Norte.
Diante de tais circunstâncias é preciso observar que a crise migratória tem íntimo elo com as crises institucionais nos países, pobres ou ricos, e entre os países. Assistimos a metamorfose inédita do aparelho estatal, algo que nunca sucedeu desde as suas origens modernas: nenhum Estado se aproxima sequer do uso razoável dos três monopólios essenciais: o da força pública, da norma jurídica, dos impostos. No mesmo passo em que a prática da terceirização (posta para aniquilar os direitos trabalhistas no mundo neoliberal) extrai do Estado mesmo forças militares (existem firmas de segurança que substituem soldados regulares em guerras em proveito do imperialismo), ela arruína a burocracia essencial para o planejamento e aplicação de políticas públicas. Não apenas a face diretamente política do Estado é dissolvida. A sua armação, o esqueleto do Estado, o funcionalismo, sofre uma guerra drástica por parte dos que representam “os investidores”. Sem a burocracia e forças militares ou de segurança, a norma jurídica desaparece. Tribunais se tornam ao mesmo tempo servidores de empresas planetárias e algozes de setores internos desprovidos de força. E no tocante aos impostos, o enfraquecimento administrativo retira da arrecadação funcionários especializados no campo, o que aumenta a falta de recursos para garantir serviços públicos. No trato com os elementos naturais, a lógica do enfraquecimento do Estado conduz aos crimes dos desmatamentos em prol do lucro imediato. Finalmente, a lavagem de dinheiro arranca do Estado a sua força, a eficácia da norma jurídica, os impostos.
Em suma: as doutrinas genocidas que põem o mercado acima de tudo e também enfraquecem o Estado e sua soberania aumentam a geração das massas desesperadas dirigidas para o abatedouro em novo tipo de massacre em massa. Talvez ainda seja tempo para atenuar semelhante lógica genocida. O problema é saber até que ponto o trabalho corrosivo do neoliberalismo desgastou o que restava de capacidade estatal e social para atender as exigências mínimas de uma vida digna. Observando hoje o anunciado por um jovem teórico do capitalismo no século XIX: “A burguesia dissolveu a dignidade da pessoa no valor de troca (…) Todas as relações sociais sólidas enferrujadas, com seu cortejo de ideias e opiniões admitidas e veneradas se dissolvem, as que substituem envelhecem antes de esclerosar. Tudo o que era estabelecido e estável evapora, tudo o que era sagrado se profana. Os homens são finalmente forçados a considerar com olho desiludido o lugar que eles ocupam na vida e nas suas mútuas relações”. A capacidade de dissolução mostrada pelas burguesias em plano mundial fez de populações solidamente estabelecidas no território um turbilhão famélico sem terra ou esperanças. O lucro? Ele irá aumentar e se concentrar sempre mais até o instante em que as águas incontroladas da imigração se tornem um tsunami que destruirá o que resta de vida urbana e civil. Como o predador capitalista é coletivo e anônimo, não será possível identificar os criminosos. Mas não é difícil os localizar: basta seguir os balanços publicados, os comentários de jornalistas econômicos, as colunas onde são anotadas as festas e o deslumbramento com a riqueza. Haverá ainda quem possa deter tal delírio rico que devora humanos aos milhões ? Talvez.
[1] Cf. O interessante e ilustrativo estudo de Luciene Dal Ri e Arno Dal Ri: “Cidadãos e latinos na experiência jurídica da Roma antiga: novas possibilidades para um modelo de inclusão”. Estudos Jurídicos, no link https://siaiap32.univali.br//seer/index.php/nej/article/viewFile/4681/2593 Cf. Também Hassal, M. : “Romans and non-Romans” in Wacher J. (Ed.) The Roman World, (London, Routledge, 1987), v. 2, p. 685 e ss.
[2] Romano, R. : “Lux in Tenebris, franciscanos e dominicanos, utopia democrática”. In: Lux in Tenebris, Ed. Unicamp, 1987, p. 33.
[3] Cf. Reynié, D. : “Le regard souverain”, in: Lazzeri. Christian e Reynié, D. La raison d’État, politique et rationalité (Paris, PUF, 1992), sobretudo o item “Statistique et pouvoir administratif”, p. 48 e ss.
[4] Romano, R.: “Impostos e razão de Estado”, in: Revista de Economia Mackenzie, http://editorarevistas.mackenzie.br/index.php/rem/article/view/766 e também “Democracia e luzes”, Aulas Magistrais Unicamp: https://www.youtube.com/watch?v=ug-FUzTUpMw
[5] United Nations, Department of Economic and Social Affairs in https://www.un.org/development/desa/publications/2018-revision-of-world-urbanization-prospects.html
[6] Majumbar, Ananda: “Impact of neo-liberalism and globalization” https://www.researchgate.net/publication/316633979_Impact_of_Neoliberalism_and_Globalization