Rubens Ricupero: ‘Antes mesmo da pandemia havia tendência preocupante de redução da cooperação entre países’

Por Paulo Markun, 6 de maio de 2020

Paulo Markun: Olá, nós estamos começando agora Conversas na Crise- Depois do Futuro, uma iniciativa do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de Campinas, a Unicamp, e da TV Cultura; uma série de conversas sobre pessoas que vão refletir um pouco sobre quais são as consequências, quais poderão ser as consequências desta pandemia mais para adiante, em vários setores do conhecimento da sociedade.

O nosso primeiro participante está aí escrito na tela, é o Rubens Ricupero. Eu agradeço muito a participação dele e também de todos que nos acompanham e desde logo queria passar a palavra para o Presidente do Conselho Científico e Cultural do Instituto de Estudos Avançados, o professor Carlos Vogt, para que eles faça uma pequena abertura institucional da nossa iniciativa que, por conta da pandemia fica cada um no seu território, mas a gente tem esse espaço comum da internet para refletir e discutir. Vogt.

Carlos Vogt: Muito bem. Olá a todos. Cumprimento ao Rubens Ricupero que pela segunda vez está conosco dentro desse propósito que é exatamente do contexto do ciclo de conferências da crise brasileira, com iniciativa do Instituto de Estudos Avançados (IdEA) da Unicamp, conferências das quais ele já esteve; e o Markun, com quem temos conversado constantemente e com quem alinhavamos e discutimos esta proposta de dar sequência ao ciclo de conferências com os participantes que já estiveram, ou alguns deles deveriam ter estado também mas que não puderam, impedidos – fomos todos pela pandemia do coronavírus -, dar sequência então às discussões em torno desse tema da crise brasileira, só que agora focando a questão, pelo impositivo das circunstâncias, neste tema “depois do futuro”.

Gostaria de registrar que o tema surgiu motivado pela leitura de um livro importante do filósofo e ativista Franco Berardi, italiano, que se chama exatamente Depois do Futuro. E esse livro trata de uma reflexão sobre um tema que já vinha é claro sendo discutido que era a questão de um amanhã com as formações das bases de referência ao presente, passado e mesmo futuro – tal qual concebemos, até pelo menos a terceira revolução industrial -, e que foi se transformando de modo que isso foi desenhando, digamos assim, uma indagação que o IdEA já vinha trabalhando nos encontros do grupo sobre inteligência artificial.

Então, dentro desse contexto, conversando então com o Markun foi tomando corpo a ideia de fazermos esses encontros virtuais, essas conversas na crise focadas nesse tema ‘depois do futuro’. A nossa iniciativa juntou-se em seguida de maneira muito positiva à TV Cultura, que temos também uma longa história de parcerias de cooperações, de modo que é no contexto dessa iniciativa, no contexto e nas circunstâncias que foram sendo escritas, determinadas, desenhadas, circunscritas eu diria mais propriamente pela epidemia, essa epidemia global do coronavírus, que nós retomamos as nossas conversas e nos encontramos aqui para essa reabertura dessas conversas na crise depois do futuro. É isso.

Paulo Markun: Obrigado, Carlos. Eu queria passar direto para o Ricupero, só com uma curtíssima provocação. Na entrevista coletiva do Secretário Geral das Nações Unidas, o António Guterres, há poucos dias, ele afirmou claramente que lamenta a falta de liderança global nessa situação. A minha pergunta para começar esse bate bola – que eu sei que ninguém tem a resposta, mas o objetivo é justamente de tentar respostas possíveis à isso- é: o senhor acha que isso vai continuar existindo, que nós vamos viver uma situação de falta de liderança global em uma situação em que isso é tão necessário?

Rubens Ricupero: Em primeiro lugar eu agradeço muito o convite, as palavras de acolhimento e passo diretamente ao assunto. Eu não sabia que o título final era “Depois do Futuro”; até fiquei curioso com a expressão. Devo dizer que no ano passado, em agosto do ano passado eu fiz uma conferência na Academia Brasileira de Letras que eu intitulei justamente “Brasil, um futuro pior que o passado”, eram reflexões na antevéspera do bicentenário da nossa independência que vai ocorrer agora no ano de 2022. E eu me inspirava em um artigo que há muito tempo atrás, nos anos 90, foi escrito por um jornalista americano que era um pensador também, Wiliam Favre, e que deu origem a um grande debate no jornal Le Monde em que ele lembrava que desde o iluminismo do século XVIII havia uma tendência no oriente de tomar como garantido que o futuro sempre seria melhor que o presente e muito melhor que o passado, mas que agora nós começávamos a ter dúvidas muito fundadas se, de fato, o futuro seria melhor que o presente ou pior ainda, se ele não seria inferior ao que tinha sido o passado.

Hoje em dia nós estamos vendo, de certa maneira, como esse exercício de tentar antecipar o futuro é um exercício cheio de riscos, porque nós estamos no meio de uma pandemia que é aquilo que se costuma chamar “um cisne negro”, que é um acontecimento absolutamente imprevisível, desses acontecimentos que só ocorrem de longe, longe; um outro foi a queda do muro de Berlim, que também não estava na previsão de ninguém. Mas, são acontecimentos que não podem ser antecipados na base das estatísticas, porque as variáveis são muito grandes, são acontecimentos improváveis. Dito isso e antes de eu responder a questão da liderança, eu diria que esse caráter de ‘cisne negro’, de imprevisibilidade, é que torna o debate sobre a pandemia muito incerto.

Pouco tempo atrás, o Pascal Lamy, que foi o diretor-geral da Organização Mundial de Comércio, hoje ele dirige uma grande fundação europeia, Fundação Jacques Delors, ele me mandou uma mensagem em que ele transmitia as reflexões dele sobre a pandemia. Ele começava de uma maneira que eu achei tão interessante que eu quero partilhar com vocês. Ele dizia que na maior parte dos problemas nós temos uma certa facilidade de enxergar um acordo sobre uma descrição, isto é, sobre o diagnóstico, mas discordamos muito sobre a terapêutica, sobre os meios, os métodos da cura. No caso dessa pandemia é o contrário, todo mundo parece ter um consenso sobre a maneira de combater, isto é, do ponto de vista sanitário é tudo aquilo que a gente conhece: isolamento, testes, isolar os doentes, procurar acompanhar aqueles que foram contaminados, evitar aglomerações etc. No plano econômico a ideia de que o principal ator tem que ser o Estado, o Governo, porque é a única instância que pode tomar  decisões rápidas, centralizadas, no lugar das organizações. Que esse Estado deve fazer tudo aquilo que é necessário, gastar o que for preciso, não olhar a dívida pública, não olhar o déficit. Como na ocasião de uma guerra.

Então, sobre essas linhas gerais da terapêutica todo mundo concorda, agora quando se discute, por exemplo, qual é a origem, não tanto no sentido de onde ela nasceu porque nós sabemos que foi na China, mas se poderia ter sido evitado; como foi que começou esse vírus a se propagar; quanto tempo ele vai durar; se vai haver ou não várias ondas; se as que vierem depois serão piores; se as pessoas estarão totalmente imunizadas; quando haverá uma vacina, quando haverá uma cura; que impacto isso vai ter sobre o mundo. Porque nós costumamos ler artigos, quase todos, de cada dez artigos que publicam sobre a crise, nove começam com a seguinte frase “O mundo não será mais o mesmo depois dessa crise”. Ora, até um certo ponto isso é verdade, depois de morrerem 200 e poucas mil pessoas – e isso vai aumentar ainda – é claro que o mundo não será igual ao que era antes. Mas, o que que as pessoas querem dizer quando afirmam que o mundo vai ser diferente?  Alguns querem dizer que ele vai ser estruturalmente diferente.

Paulo Markun: Tem uma utopia aí.

Rubens Ricupero: É, exato!  Que será um mundo virado ao avesso. Hoje mesmo eu li um artigo no Guardian, da Inglaterra, que é um resumo de uma conversa entre dois grande economistas, um é um irlandês e o outro é aquele que foi ministro da Economia da Grécia, o famoso Yánis Varoufákis, e ambos concordam – o Yanis mais cauteloso – de que nós talvez tenhamos um novo Bretton Woods, uma refundação das organizações econômicas. Ambos dizem  que o capitalismo está suspenso por algum tempo. Eu acho essas afirmações francamente exageradas, eu não acredito, pessoalmente, que o impacto da pandemia vai ser tão grande. Eu vou até procurar explicar o porquê eu acho isso e depois responderei a questão da liderança.

A pandemia – e é preciso não esquecer jamais isso – por mais forte, por mais potente que seja é um acontecimento limitado no tempo. Em história, a escola dos historiadores franceses, do Fernand Braudel, da revista Nice, nos ensinou que é preciso nunca perder de vista qual é a dimensão do tempo que nós estamos falando. É o tempo curto, é o tempo médio ou é o tempo longo? O tempo curto, é o tempo da conjuntura do acontecimento; o tempo médio e, sobretudo, o tempo longo é o tempo da estrutura, das mudanças mais de profundidade. Então, normalmente, não é uma regra absoluta, mas normalmente um acontecimento por mais espetacular que seja ele não muda as tendências profundas da história, as tendências demográficas, as tendências culturais, tecnológicas. É claro que se for uma guerra atômica pode durar 24 horas e acabar com tudo, né; aí muda em profundidade. Mas, dentro de certos limites existe essa diferenciação. A gente pode perceber isso claramente quando pensa em um exemplo: a pandemia por durar quanto tempo? Seis meses, oito meses, dezoito meses? Ninguém sabe, mas provavelmente é isso. Mesmo a peste negra, do século XIV durou nos lugares que ela viveu mais ou menos nove meses, ela foi passando de um país para outro e naquela época demorava mais, então demorou dois ou três anos na Europa. Mas, em cada um dos pontos que foram afetados ela não durou mais do que nove meses. A gripe espanhola também mais ou menos de seis a oito meses; ela teve três ondas e a do meio foi mais mortífera do que as outras.

Esta nós não sabemos, né. Agora, ela é limitada no tempo e tudo o que é limitado no tempo tem dificuldade em mudar a estrutura. Já um acontecimento que é secular… eu falei da pandemia, mas agora analisemos o aquecimento global. O aquecimento global sim é uma tendência profunda e singular, a não ser que os seres humanos façam o que é necessário para evitar o agravamento do aquecimento global  nós sabemos que ele vai continuar se agravando. Depois da pandemia, o gelo da Groenlândia, da Antártida, dos polos vai continuar a se degelar, a se derreter, nós vamos ter o aumento do nível dos oceanos, vamos continuar a ter modificações nos períodos de chuvas, as temperaturas vão subir, as colheitas vão ser afetadas e isso presumivelmente vai continuar e se se agravar além de um certo ponto pode comprometer a continuação da vida na terra – pelo menos a civilização como nós a conhecemos.

Então, aí você vê uma diferença muito nítida. Uma coisa é um acontecimento, outra coisa é uma tendência secular. Um outro exemplo também claro é o assassinato do presidente Kennedy, foi um acontecimento espetacular, mas não mudou o mundo. O presidente Johnson, vice presidente tomou posse e não mudou a Guerra do Vietnã, ao contrário, se agravou, a política interna americana não mudou, a Guerra Fria continuou com a União Soviética.

Então, o que eu quero dizer é que para mudar a estrutura do sistema político mundial e para mudar estrutura do capitalismo é preciso um acontecimento que tenha não só uma potência muito grande, mas uma duração razoável. É o caso das duas guerras mundiais. Por exemplo, a Primeira Guerra Mundial mudou por completo o sistema político; antes da primeira guerra o mundo era em grande parte dominado por grandes impérios, o império austro húngaro, o império russo, czarista, e o império turco-otomano; todos os quatro desapareceram e novos regimes apareceram, países novos se tornaram independentes.

Na Segunda Guerra Mundial o impacto foi ainda maior  porque a duração da guerra foi maior, a destruição foi muito mais poderosa – até da infraestrutura, né – e quando terminou a guerra foi necessário reconstruir as estruturas, foi um esforço capitaneado pelos americanos, à aspiração do presidente Roosevelt, a Conferência de Bretton Woods que criou o Fundo Monetário, o Banco Mundial, mais tarde em 1947 o GATT, em 1945 a Carta das Nações Unidas; que é o mundo que nós temos até hoje. Há 75 anos nós vivemos com esse mundo que, mal ou bem, evitou uma terceira guerra mundial, evitou uma conflagração nuclear. Então, esse mundo e não creio que a pandemia vá destruir; eu não creio que a pandemia tenha força suficiente para isso.

O que a pandemia pode fazer e provavelmente vai fazer: ela vai acentuar certas tendências que já vinham de antes e que obedecem a muitas causas, que vão ficar mais fortes e  outras vão ser inibidas.

Paulo Markun: O peso do nacionalismo é uma delas?

Rubens Ricupero: é. Eu vou dar à você alguns exemplos que eu vejo. O primeiro exemplo tem muito a ver com a questão da liderança que você me perguntou. Antes mesmo da pandemia nós observávamos no mundo uma tendência preocupante  para uma redução da cooperação entre os países; havia cada vez menos desejo de cooperação internacional. Isso foi muito agravado pelo presidente Trump, mas não começa com ele. Ele é que inaugurou realmente uma política em que os Estados Unidos dão as costas à todas as instituições internacionais e  basicamente ignoram essas instituições; ele aplica sanções que são ilegais, que não foram aprovados pelo Conselho de Segurança da ONU e fica por isso mesmo porque é um país poderoso, mas as sanções são ilegais.

Os americanos já antes com o presidente George W Bush invadiram o Iraque contra a posição expressa do Conselho de Segurança; a Rússia anexou a Crimeia. E essa tendência diz respeito a uma ordem internacional que era fundamentada na lei, na carta das Nações Unidas, está se espalhando. Não é só um apanágio dos grandes. Eu falei dos Estados Unidos do Trump, falei da Rússia do Putin, da China que de certa forma tem a mesma posição, mas até potências intermediárias, por exemplo, a Turquia. A Turquia invadiu a Síria; está há meses desenvolvendo operações na Síria – que é um país soberano- e não acontece nada. É completamente ilegal a Arábia Saudita está empenhada em uma guerra civil no Iêmen, está destruindo o país. E assim por diante.

Nós estamos assistindo um fenômeno que é mais grave do que a simples erosão da cooperação mundial. É uma erosão da lei, da lei internacional do sistema que nos garantiu a pa durante 75 anos. Esse ano nós fazemos 75 anos do término da Segunda Guerra Mundial. Então, essa tendência ela precede a pandemia. E aí nós precisamos ver se a pandemia até agora teve um efeito de enfraquecer essa tendência ou de acentuar. Ora, nós somos obrigados a constatar sem nenhuma alegria que, infelizmente, quase todas as respostas à pandemia foram praticamente de uma maneira exclusivamente nacional. Houve 95% de resposta nacional. A cooperação internacional é muito pequena. Até no interior da União Europeia que, como o nome indica é uma união, União Europeia, e que tem essa pretensão de uma solidariedade continental, nós vimos que a Itália ficou sozinha. Quando a Itália pediu socorro a Alemanha fechou a fronteira, os outros países proibiram a exportação de equipamento…

Agora que a curva da pandemia está declinando os europeus estão começando a se mostrar mais solidários. Mas, no auge da crise, naquilo que contava eles não mostraram essa solidariedade.

Paulo Markun: Mas, até o momento na verdade há mais declarações de intenções do que efetivamente ações efetivas. Fala-se em um fundo de 540 bilhões, mas não é dinheiro para financiar a recuperação econômica, ou são empréstimos ou é dinheiro para a saúde especificamente, né.

Rubens Ricupero: É, você tem razão. E, além do mais, como você sabe mais uma vez se agravou aquela clivagem entre os países do norte e do sul, porque os países do sul – Itália, Espanha, França, Portugal, Grécia – querem que haja uma emissão de bônus, euro bônus garantido pelos tesouros de todos os países. E os outros que são mais conservadores do ponto de vista econômico – Alemanha, Holanda, sobretudo, os países do norte – são contra. O Ministro da Fazenda da Holanda foi extremamente infeliz, ele chegou a repetir a fábula da cigarra e da formiga, ele disse “mas, o que faziam os países do sul nos tempos da bonança? Eles não fizeram provisão para os dias difíceis?”. O presidente de Portugal até comentou que se tratava de uma declaração repugnante. Ele teve até que pedir desculpa. Mas, é a velha fábula, né, da cigarra e da formiga.

Então, agora eu vi pela primeira vez, viu Markun, ontem e anteontem um sinal de esperança que foi essa iniciativa da União Europeia, acompanhada de outros países europeus, de reunir mais de 7 bilhões.

Paulo Markun: É, mas nem a Rússia e nem os Estados Unidos botaram dinheiro, né…

Rubens Ricupero: É, exatamente. Os grandes continuaram na política de que o coronel Tamarindo, na Guerra dos Canudos, no meio de um ataque dos jagunços, no meio daquele tiroteio quando foram pedir ordens a ele, ele lembrou um velho ditado – ele, aliás, morreria nessa escaramuça -, ele lembrou um velho ditado do nordeste que diz assim “em tempo de murici, cada qual cuide de si”. Então, é slogan dessa pandemia, né. Em tempo de murici, cada qual cuide de si. Agora, é um sinal de esperança porque mostra que a União Europeia não perdeu de toda a capacidade da iniciativa, né.

Paulo Markun: E o Macron, por exemplo, tem se revelado um pouco mais alto do que se parecia no seu posicionamento, tanto de defesa do papel da União Europeia quanto de enfrentamento da crise no país.

Rubens Ricupero: Exatamente. E aí nós já estamos chegando onde você e perguntou, na questão da liderança. Macron, por exemplo, é uma liderança. A União Europeia em conjunto à Merkel, etc, também constituem uma liderança positiva. Agora, ao mesmo tempo a gente vê como sempre na história um panorama de luzes e de sombras, né. Nós temos essas luzes que são ainda bruxuleantes, estão começando. Mas, nós temos muitas sombras, porque enquanto isso o Trump mandou suspender a contribuição americana ao IMS, né, em plena pandemia. Você quer um exemplo mais contundente de agressão à cooperação internacional do que essa? Ou então ele acirrou o conflito com a China, porque ele diz que quer castigar a China pela início da pandemia.

Ora, todo mundo sabe que se não houver um entendimento entre os Estados Unidos e China, que são as duas super grandes potências, é muito difícil haver por exemplo como dizem esses economistas um novo Bretton Wood. Atrás de Bretton Woods estava o presidente Roosevelt, ele ainda estava vivo, foi em 1944; estavam os ingleses. Hoje, onde é que estão os americanos? Onde é que estão os ingleses? Então, é preciso levar em conta que há algumas lideranças; só que o que nós notamos é o seguinte: em geral, as lideranças mais esclarecidas, mais iluministas não são as lideranças que têm maior soma de poder. As três grandes lideranças que têm poder de armas são Trump, Putin e o presidente Xi. nenhuma das três… o Xi ainda é um moderado comparado com o Trump, mas nenhuma das três dá ênfase ao mundo; eles dão ênfase ao seu próprio país. Não é verdade?

Então, nós estamos vendo que quando as pessoas dizem “passada a pandemia nós vamos ver um mundo diferente”, ora o que eles estão dizendo com isso? Passada a pandemia, se ela terminar em setembro ou outubro, o presidente Trump ainda é o presidente dos Estados Unidos, o Xi é o presidente da China, o Putin é da Rússia. Agora, é claro que se o Trump em parte por causa da pandemia for derrotado aí sim nós vamos ter uma grande mudança. Eu lhe diria até que na minha opinião uma derrota eventual do Trump terá um impacto maior e imediato na ordem internacional do que a pandemia.

Paulo Markun: Professor, pergunta do Facebook de Ralph: qual sua opinião sobre as relações econômicas e diplomáticas entre China e Estados Unidos no pós pandemia? Elas mudam alguma coisa ou elas dependem exclusivamente disso, se o Trump segue ou não?

Rubens Ricupero: até o momento, tudo leva a crer que eles vão piorar, porque o Trump tem multiplicado nos últimos dias as ameaças. Ele disse que vai acentuar as sanções, ele vai usar sanções comerciais para punir a China pela pandemia. E tanto ele como o Secretário de Estado tem afirmado de que eles têm provas de que o vírus teria se iniciado em um laboratório chinês, apesar de que os órgão americanos dizem o contrário. Agora, você sabe e todos os que estão acompanhando sabem que não se pode tomar muito a sério nada do que o Trump diz, né. O que ele diz hoje, amanhã ele desmente. O começo de fevereiro, quando o vírus ainda não tinha chegado nos Estados Unidos ele cumprimentou publicamente o presidente Xi pela eficácio no combate à pandemia. “Grande presidente! Grade líder! Cuida do seu povo”. Então, nada impede que amanhã, se ele achar que isso favorece as chances dele ganhar a eleição, que ele mude outra vez.

Não parece ser o caso, porque as informações que eu tenho ouvido dos Estados Unidos dão conta de que não só o Trump, mas que o Partido Republicano geral está dando aos seus afiliados, seus candidatos, como diretriz na campanha ‘bater duro na China’, porque nós estamos vendo que a animosidade contra a China cresceu muito na opinião pública americana. O que faz com que mesmo se ganhar o Biden não vai ser fácil. Dizem até que a campanha do Trump, um dos seus motivos principais vai ser acusar o Biden de ser ‘soft on China’ como antigamente se falava dos democratas com o ‘soft on Roger’.

Paulo Markun: Uma pergunta.  Na sua avaliação qual deverá ser o comportamento da China na pós pandemia. Explico porque ela tem feito uma ação diplomática e de saúde junto a países africanos  muito intensa e ela fala, inclusive, de uma nova rota da seda agora com fármacos. O investimento que a China tem feito nessa área de produção de fármacos é muito grande, né. Eu estive lá numa cidade, Taizhou, que é uma cidade feita para ter indústria farmacêutica intensa e eles são os principais fornecedores disso. Mas, mais do que isso, o senhor acha que a China pode, digamos assim, subir um degrau no protagonismo mundial no sentido de ampliar sua presença fora de lá?

Rubens Ricupero:  certamente sim. Eu creio que depois da pandemia e já durante a pandemia, a China está demonstrando ter uma política externa mais inteligente e atrativa do que a norte americana. E como você mesmo lembrou eles estão oferecendo cooperação não só à África. Você sabe que o primeiro país que socorreu a Itália foi a China; nos hospitais da Lombardia a China já enviou várias missões, acho que três ou quatro, de médicos, enfermeiros, doação de equipamentos numa hora em que os europeus não tinham fornecido coisa alguma. Aliás, é curioso que os outros países que socorreram a Itália foram Cuba e  a Rússia; Cuba com médicos e enfermeiros e a Rússia também com equipamentos.

Então, a China esta mostrando uma política mais inteligente e como você mesmo notou, viu Paulo, eles já têm um plano Marshall. Muita gente fala “precisamos de um Marshall”, mas o plano Marshall chinês é a “Belt, One Road” initiative (One Belt, One Road), a rota da seda. É claro que é um plano em que ele se dispõe a gastar trilhões com um objetivo geopolítico chinês; eles querem construir uma grande rede de infraestrutura de transportes em que a China em vez de estar na periferia, fora da capital, volte a estar no centro, volte a ser o Império do Meio, como eles diziam no passado. E agora eles estão usando essa formação farmacêutica. Então, eu não tenho dúvida de que eles vão se qualificar.

Agora, eles fazem isso com um método gradual, eles não se candidatam a substituir os americanos, como a principal potência garantidora da ordem internacional. Eles não têm esse tipo de ambição. Na própria OMS a contribuição americana é dez vezes maior do que a da China; a China contribui mas de uma maneira mais modesta, ela usa mais para interesses bilaterais – aqui e ali.  Por outro lado eu acho também, sabe, Markun, que a China não vai sair dessa pandemia com um desempenho uniformemente positivo; o desempenho da China é misto, porque ela teve muita eficácia quando percebeu a gravidade e aí tomou aquelas medidas drásticas que nós conhecemos e que foram capazes de suprimir a ameaça. Mas, você se lembra que no começo eles foram lentos, tentaram esconder, né, tentaram até suprimir informações.

Eu direi até que até um certo ponto  essa reação dele, desordenada, foi muito comum no mundo porque era uma ameaça nova, que não se conhecia; os próprios chineses no início não sabiam o que era, né. Então, eles vão sair com um desempenho misto, por exemplo,o país que teve, ao meu ver, o desempenho mais impecável foi curiosamente Taiwan, que é uma espécie de  nêmesis da China. Você sabe que Taiwan tem o vice presidente que é um epidemiologista e isso evidentemente ajudou, ajudou muito porque Taiwan ainda no mês de dezembro quando surgiram as primeiras notícias de que havia uma pneumonia estranha em Wuhan, antes até que se identificasse o v´rus, eles tomaram medidas muito eficazes porque eles têm, como você sabe, um intercâmbio intensíssimo com a china continental, com Wuhan eles têm voos diários. Então, eles passaram a examinar todo passageiro que chegava de Wuhan e quando tinha sintoma eles isolavam e acompanhavam esse passageiro. E com isso o que eles conseguiram? Eles evitaram de ter esse número enorme de casos e de morte. Mas, por que isso?  Porque eles tinham tido um impacto das pandemias anteriores da Sars em 2002, 2003, e da Mers de 2015, onde eles perderam um número razoável de pessoas.

Então, ao contrário do ocidente, que ficou numa atitude de falsa segurança, os asiáticos que sofreram com essas duas pandemias – Taiwan, Coreia do Sul, CIngapura – reagiram melhor. E reagiram melhor do que a China, por isso que eu diria à você que em termos de soft power, de poder da imagem o desempenho da China não é uniformemente positivo.

Paulo Markun: O investimento  direto na China aumentou, segundo os dados que tenho aqui, 5,8% em 2019, para U$136 bilhões de dólares. E caiu agora nos primeiros meses de 2020, já em relação à pandemia. Agora, por outro lado eles gastam fora da China, os chineses, 734 bilhões em projetos de construção e outros recursos de investimento direto estrangeiro da China nos países, aliás, América Latina e Caribe, que era de 5 bilhões antes de 2010 já foi de 25 bilhões no ano passado. Minha pergunta é se o senhor acredita que essa presença do capital estrangeiro na China e do capital chinês fora de lá complica o resultado do casamento da pandemia com essa aversão norte americana aos chineses e da era do Trump ou é um processo que vai continuar? Em outras palavras, a globalização é para valer? Continua apesar das pandemias?

Rubens Ricupero:  Depende do que você entende como globalização. Globalização tem um sentido na verdade mais profundo, que é a intensificação do contato entre pessoas, civilizações, culturas, facilitada pela revolução das telecomunicações, internet. Antigamente, eu me lembro – eu tenho 83 anos – que para ter contato com um chinê sou um indiano, quando eu tinha 30 anos de idade, era uma coisa quase impossível. Hoje em dia basta entrar na internet e pode-se fazer até uma transação à distância, né. Isso eu não creio que vá sofrer nenhum tipo de retrocesso.

Agora, o capital externo da China, capital que foi investido na China, em grande parte foi para construir essas cadeias globais de produção, né. Ora, o que nós estávamos vendo antes da pandemia e não só com o Trump, mas também com outros países era uma tendência de reduzir essa dependência excessiva da China, aquilo que em inglês se chama “the coupling”. Quer dizer, havia uma espécie de casamento entre China e Estados Unidos; eram duas economias que estavam em uma relação de simbiose, uma dependia da outra. E a tendência do presidente Trump é separar, fazer com que os Estados Unidos traga de volta o seu investimento, traga de volta os seus empregos, traga de volta a sua capacidade industrial. Costuma-se questionar até que ponto isso seria possível, né, porque o grau de integração é tão grande que ninguém sabe até que ponto vai ser possível. Mas, até um certo ponto isso pode ocorrer e pode levar a consequências muito sérias.

Eu vou lhe dar um exemplo concreto que pouca gente tá acompanhando. Você sabe que os americanos inauguram já antes do Trump inauguraram em relação à China um novo tipo de estratégia que eles chamam de competição estratégica em todos os domínios. Eles dizem que durante 40 anos eles contribuíram para que a China crescesse na presunção que uma vez rica a China se tornaria democrática, aderiria aos padrões do ocidente. Isso não aconteceu. A China  se transformou, ao contrário, em um rival que está procurando expulsar os americanos da Ásia, do continente asiático, do Pacífico e eles resolveram optar agora pelo que eles chamam de competição. É um pouco o que havia na Guerra Fria. você se lembra, na época do khrushchov, da coexistência pacífica, com competição pacífica, quer dizer, não se chega à guerra, não é uma questão de meios militares, mas não há mais cooperação; vai se negar pão e água.

Em consequência, como você sabe, a principal obsessão americana é impedir que os chineses consolidem a posição que eles estão começando a ter em liderança em algumas tecnologias de ponta. Porque o que vai determinar isso que você chama de “depois do futuro” – isso não é para a minha conversa, mas vocês podem ter com algum outro mais entendedor do que eu – como você sabe, o que vai determinar isso é quem vai dominar as tecnologias de ponta. Quais são elas? A inteligência artificial, a robotização, a computação quântica, né, o uso da física quântica na computação, a internet de nuvens, a internet das coisas, a bioengenharia que permite até criar seres vivos… Há umas oito ou dez grandes áreas em que o chineses querem atingir a vanguarda. Em algumas eles já estão na vanguarda. É o caso da velocidade 5G.

Ora, os americanos sabem que quem dominar as tecnologias de ponta vai ser a potência mais poderosa em termos militares e estratégicos, coisa que até agora os americanos ainda detém essa primazia. Dapi ser uma luta muito forte. Então, uma das coisas que o presidente Trump decidiu fazer para evitar que isso acontecesse, lá atrás, alguns meses atrás, ele determinou que as empresas americanas que forneciam insumos importantes para All Way cessassem de fornecer esses insumos. Isso teve um efeito apenas limitado, porque começou a ser seguido mas depois os industriais mesmo gritaram que estavam perdendo o grande mercado deles que era a China. Então,  ele abrandou essas normas. Mas, agora ele reafirmou outra vez. E eles estão começando a chegar em um ponto que pode ser um golpe gravíssimo chinês que é proibir a grande empresa que é de capital americano em Taiwan, que é a que fornece os circuitos integrados, de continuar vender para o All Way e  isso o All Way não tem condições de substituir a curto prazo, nessa área de circuitos integrados, etc.

Então, você vê, se isso acontecer vai haver uma separação grande das duas economias e aí, é claro, eles vão se tornar cada vez mais antagônicos, né. Mas, por isso que é difícil de saber, né. O provável é que depois da pandemia vai haver uma redução no nível que se registrava antes de criação de novas cadeias globais. O que já estava se registrando, havia uma redução, sabe, até porque a própria China começou ela mesmo a querer produzir os seus insumos. A China antes importava dos seus países vizinhos 70% do que ela depois montava e vendia aos Estados Unidos; agora isso caiu para 30% porque eles mesmos estão produzindo.

Então, devido a isso não parece que haverá no futuro muito clima para que haja muitos capitais que vão para a China, né. Eu acho que vai diminuir, porque, por exemplo, nessa área do equipamento médico hospitalar que você citou, você sabe que aqui todo mundo diz um pouco às pressas que 90% de equipamento vem da China. Não é bem assim. A OMC que publicou um relatório há pouco tempo sobre o comércio de produtos médicos hospitalares mostra sim que a China é muito importante, mas que também é muito importante Taiwan, Cingapura, Coreia do Sul…

Paulo Markun: E a Ásia?

Rubens Ricupero: E a Ásia, como sempre. Agora, o que acontece é que num momento de dificuldade como esse da pandemia, quando os países viram que ficava na mão de um fornecimento externo se deram conta que no futuro seria melhor ser mais prudente, né. Invés de levar em conta apenas a lógica do preço mais baixo, levar também a segurança. Então, é provável que isso aconteça. Veja você, Markun, aqui mesmo no Brasil está acontecendo. Há várias universidades, eu não sei se a Unicamp, mas eu sei que há várias universidades aí que estão desenvolvendo projetos inspiradores, né, que já começam a ser produzidos no Brasil. Então, um certo grau de redução dessas cadeias de globais eu acho que vai ocorrer. Não acredito que seja em todos os setores e que seja, digamos, alguma coisa que mude radicalmente o panorama do capitalismo. Penso que diziam “o capitalismo está em suspenso”, não é verdade, né. O capitalismo continua, as empresas, a Bolsa de Valores já recuperou 20% do que tinha perdido no início, não aqui, nos Estados Unidos, as bolsas internacionais..

Paulo Markun: Quer dizer, o senhor imagina que essa crise da pandemia ela não pode ser, digamos assim, equiparada ao crack da Bolsa de 1929?

Rubens Ricupero: Eu acho que é diferente. Eu acho que é diferente. Eu acho que vai ser uma queda grande na produção, no Produto Interno Bruto, no emprego, com consequências sociais muito sérias, mas depende mais uma vez da duração. Se não durar um período excessivo, se por exemplo as economias começarem a voltar… estão voltando, né, na China  como você sabe a economia já voltou em 90%; em outros países asiáticos igualmente.então, nesses países em que a economia está voltando, inclusive na Europa, né, eu acho que isso atenua o tamanho do golpe. Ninguém sabe exatamente qual é o tamanho do golpe. Eu vou lhe dar um exemplo, todo mundo disse que o Brasil ia sofrer muito por causa das commodities… Eu costumo acompanhar, semana por semana, o comportamento das exportações. Você sabe que curiosamente isso até agora não aconteceu, as exportações brasileiras já no ano de 2019 estavam caindo, mas no mês de março elas aumentaram 13%. E aumentaram para onde? Sobretudo para a China. Então, é curioso porque março era um mês em que a China estava em epidemia, né, mas nós vendemos mais soja.

Então, muita coisa que se diz aí a gente tem que checar empiricamente e ver se está acontecendo.Eu reservo a minha opinião sobre qual vai ser o tamanho do golpe, porque ainda creio que não existem elementos para permitir afirmar quanto tempo as economias vão ficar paralisadas. Ao meu ver, se a pandemia permitir a retomada gradual do trabalho na maioria das economias avançadas e se isso não for seguido por uma recaída muito grave – como você vê é tudo “se”, é tudo incerteza -, se isso acontecer eu tenho a impressão de que não será tão grave como foi nos anos (19)30.Agora, tem uma coisa que eu queria te dizer, eu acho que a agenda vai mudar, porque a agenda antes e depois desses grandes acontecimentos ela se altera.

Antes da Segunda Guerra Mundial a agenda dos anos 1930 era dominado pelo combate à grande depressão. Até o começo da guerra, como você sabe, eles não tinham ainda superado o começo da economia. O que acabou com a depressão foi a guerra, porque aí você teve que usar o pleno esforço produtivo de tudo, né, tanto assim que não havia mão de obra, você não tinha homens suficientes para combater e para trabalhar nas fábricas. Tivemos que…

Paulo Markun: E a guerra é outro fenômeno onde o papel, a força do Estado também é decisiva, né, como a pandemia.

Rubens Ricupero: Determinante. E você veja, Markun, quando terminou a guerra qual foi a agenda mundial? Primeiro ponto, reconstrução da economia; segundo ponto, o estado do bem estar social. Com nós vai ser a mesma coisa, nós vamos ter de um lado reconstrução – não como em 1945 que havia destruição física, né, as estradas -, hoje em dia reconstrução no sentido de botar o sistema de novo a funcionar, créditos, estímulos, coisas desse tipo. E ao mesmo tempo a pandemia pôs em evidência a gravidade dos desequilíbrios, das desigualdades. Então, haverá um clamor para que essas desigualdades sejam combatidas. Então, a minha impressão é que como eu estava falando antes, no início, quais são as tendências que já estavam presentes antes e que vão ser acentuadas? No caso da cooperação, como eu lhe disse, luzes e sombras.se o presidente Trump for derrotado aí nós vamos ter uma liderança mais normal; não é que tudo vai virar mil maravilhas, porque ainda há muito animosidade contra a China. Mas, o Biden é um presidente mais normal; poderia-se retomar o entendimento com a China, com a Rússia, com o Irã, as coisas ficariam melhor. E da mesma forma eu acho que nós vamos ter depois uma acentuação de um certo equilíbrio da globalização; não vai continuar tão grave. Agora, onde eu me preocupo é nessa questão do conflito Estados Unidos e China, que isso sim está sendo agravado e não atenuado pela pandemia.

Paulo Markun: Eu queria fazer uma última pergunta, porque o nosso tempo está acabando aqui Ricupero. É a seguinte: pelo o que eu tenho conversado com vários setores de pessoas aqui da minha bolha via internet há dois tipos de reação à essa crise que nós estamos vivendo, a dos otimistas e a dos pessimistas. Otimistas que muitos colocam que o mundo será diferente e que a humanidade finalmente vai abraçar a solidariedade, vai diminuir o consumo, vai resolver o problema do aquecimento global e assim por diante. E os pessimistas que dizem que nada vai ser como era e portanto, estaremos na incerteza e na escuridão total. O senhor se alia a algum desses grupos?

Rubens Ricupero:  Olha, eu antes de responder vou dizer a você o seguinte: nessa questão de otimista e pessimista é bom a gente sempre lembrar aquela frase do Antonio Gramsci que também o Albert Einstein disse algo parecido, que “nós devemos ser pessimistas no conhecimento e otimistas na esperança e na ação”. No conhecimento nós temos que constatar a realidade e a realidade que nós vivemos é essa, né. Ninguém pode dizer que a pandemia está trazendo à superfície o melhor do ser humano. Em alguns casos sim, os médicos que morrem, os enfermeiros, né, aqueles que se sacrificam. Mas, em outros casos nós vimos roubo de máscara, países que se atravessam e não deixam o fornecimento seguir para aqueles que compraram, gente que explora e que vende por um preço três vezes maior. Então, a realidade é essa, o pessimismo do conhecimento.

Agora, o otimismo da esperança e da ação, por quê? Porque o nosso destino não está escrito nas estrelas, né, o ser humano faz o seu próprio futuro, né. Talvez o melhor que vocês possam fazer nesse ciclo é dizer que o futuro vai ser aquilo que nós vamos fazer, até mesmo no aquecimento global, porque o aquecimento global é um resultado da nossa ação ou da nossa omissão. Então, dependendo do que a gente fizer nós vamos ter um futuro melhor ou pior e isso me permite realmente responder melhor aquilo que você me perguntou, porque desde o início eu estava com ideia de dizer isso. Eu acho que as crises revelam de uma maneira escancarada qual é a verdadeira natureza dos seres humanos e a natureza das lideranças.

Quais são aqueles que tem o potencial de uma grande liderança e os que não tem? E nem sempre essa liderança se revela na primeira reação. Você veja, por exemplo, Markun, na Europa o primeiro ministro Giuseppe Conte… o Giuseppe Conte no início cometeu grandes erros, mas ele soube reconhecer com humildade os erros, mudou de rumo e hoje ele goza de uma popularidade que nenhum outro ministro teve numa pós guerra. Por quê? Porque ele soube admitir o erro e adquirir uma liderança eficaz. Assim aconteceu em muitos outros países no começo – até de certa forma era compreensível, era um fenômeno novo – subestimaram. Agora, existem aqueles líderes que não aprendem, né. Nós temos o caso do trump, temos infelizmente o caso do nosso líder supremo que não aprendem, eles continuam… o Trump mudou um pouco, mudou melhor que o nosso, né, mas tem alguns que não mudam.

Agora, você veja como esse problema da qualidade da liderança é extraordinário, porque a liderança é baseada na sua capacidade de julgar a realidade e também de ter presente as lições da história. Por exemplo, os asiáticos que eu mencionei, Taiwan, Cingapura, Coreia do Sul, eles souberam tirar lição das pandemias de 2003 e 2015; outros não souberam. Você sabe que o Bill Gates tem um discurso fantástico que eu aconselho todo mundo a ver; em 2015 ele disse em uma reunião que houve em Vancouver, ele profeticamente disse “olha, se nos próximos anos algum fator vai ser responsável pela morte de mais de 10 milhões de pessoas, o mais provável é que isso seja não uma bomba, não um míssel, mas um micróbio de vírus, porque vem aí uma pandemia”. Mesmo porque você vê, a nossa pandemia atual é a oitava se nós contarmos desde a gripe espanhola; tem a gripe espanhola de 1918 e 1919, nós temos a gripe chinesa de 1957, a gripe de Hong Kong de 1967, a epidemia da aids, temos a SARS em 2003, a MERS em 2015 e a ebola. Nós tivemos jpa sete epidemias. E nós sabemos que vai haver outras, porque com a facilidade de viagens, de contatos, é uma coisa segura.

E o Bill Gates dizia uma coisa muito interessante. Ele dizia “olha, não é que nós temos um sistema que funciona mal, nós não temos um sistema para detectar e combater” . muita gente diz “ué, mas e a OMS?”. A OMS não é isso. Eu fui embaixador na OMS por quatro anos, eu conheço bem a OMS; a OMS não tem nem mandatos, nem recursos. Ela é uma organização meritória, mas a maior parte do dinheiro que os países dão à ela é com objetivo definido, por exemplo, U$100 milhões de dólares para usar para combater a malária em Botsuana; ela não pode fazer com o dinheiro o que ela quer. E ela não tem mandato para detectar as pandemias.

Vou dar à você um exemplo, quando houve a epidemia do ebola na África equatorial, você sabe que a OMS teve que comer da mão da organização Médicos Sem Fronteiras, porque ela não tinha pessoal local. Foi a Médicos Sem Fronteiras que socorreu a OMS. então, uma lição que a liderança deveria extrair da pandemia seria essa de que nós precisamos criar um sistema para evitar que isso se repita. Eu diria que a mensagem que eu gostaria de passar, eu não tenho grandes ambições de ver um mundo virado do avesso, porque eu não acredito que vá acontecer. Mas um objetivo modesto seria esse, vamos fortalecer o OMS, vamos demandar, vamos dar recursos, vamos ter países que colaboram para que no futuro, quando haja um problema desse tipo seja detectado no início e se impeça que haja esse estrago todo.

Paulo Markun: Rubens Ricupero muito obrigado pela sua conversa. Nós terminamos aqui a primeira das Conversas na Crise- Depois do Futuro, com Rubens Ricupero. Depois de amanhã, na sexta-feira, às 16h, pelo Facebook do jornalismo da TV Cultura e pelo Youtube você acompanha a nossa conversa com Luiz Gonzaga Belluzzo, economista, sobre as perspectivas da economia. Essas conversas acontecem sempre às quartas e sextas nas próximas semanas, sempre às 16h do horário do Brasil e obviamente como estamos na internet isso fica disponível aí. E também, tanto o Instituto de Estudos Avançados quanto a TV Cultura têm todo o interesse de que outras instituições, outras mídias divulguem e promovam o debate que no final das contas só esclarece e só ilumina esse tempo tão complicado. Até mais. Muito obrigada Ricupero.

Rubens Ricupero: Muito obrigado. Até logo.