Por Paulo Markun, 13 de maio de 2020
“A universidade não é um repositório de conteúdos disparados para as pessoas, é um lugar de formação, não é de informação simplesmente, é um espaço de convívio de gerações, de confrontação de ideia e de saberes. Lembre-se do princípio fundamental da autonomia das universidades: a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Será que nós podemos garantir isso no espaço virtual?”
Paulo Markun: Olá, tudo bem? Começamos agora mais um ‘Conversas na Crise – Depois do Futuro’, uma iniciativa do Instituto de Estudos Avançados da UNICAMP e da TV Cultura, que busca levantar questões, opiniões, pontos de vista sobre as consequências dessa pandemia em vários campos do conhecimento. Nosso convidado de hoje é o professor João Carlos Salles, reitor da Universidade Federal da Bahia e presidente da Andifes, Associação Nacional dos Dirigentes de Instituições de Ensino Federais do Brasil. Para começar, eu passo a palavra para o professor Carlos Vogt, que é presidente do Conselho Cultural e Científico do IDEA, Instituto de Estudos Avançados para a apresentação. Carlos.
Carlos Vogt: Muito bem. João Carlos, boa tarde Fantástico ter você outra vez nesses encontros sobre a crise, nesses encontros agora modulados como Conversas na Crise – Depois do Futuro, dadas as circunstâncias que vêm sendo impostas pela pandemia. É uma satisfação tê-lo aqui conosco depois de você já ter estado nas nossas conferências da crise brasileira ao vivo e em presença na Unicamp.
O professor João Carlos Salles é graduado em filosofia pela Universidade Federal da Bahia (1985), é Doutor em Filosofia pela Unicamp (1999) e professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal da Bahia desde 1985. Foi presidente da Associação Nacional de Pós Graduação em Filosofia, a ANPOF, de 2002 a 2006. Foi presidente da Sociedade Interamericana de Filosofia, de 2013 a 2019. E na UFBA, antes de ser reitor exerceu outras funções de direção; acadêmica; administrativa; coordenador de pesquisa, de 2006 a 2008; diretor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, de 2009 a 2014; e reitor, enfim, da Universidade, desde 2009, estando agora já no seu segundo mandato. É, como o Markun referiu, presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior, a Andifes, desde 2019. Autor de diversas obras na área de filosofia e com ampla experiência e produção acadêmica sobre o tema da gestão universitária.
João Carlos, bem-vindo.
João Carlos Salles: Vogt, muito obrigado. Obrigado, Paulo. Um prazer estar com vocês.
Paulo Markun: Bom, eu queria começar colocando uma pergunta que eu sei que é difícil a resposta. Um levantamento da Unicef do último dia 10 de maio agora dizia que havia, naquele dia 10, mais de 1,2 bilhoes de alunos afetados pela pandemia no mundo inteiro. Não só alunos universitários, evidentemente, mas uma parte deles universitários. Cento e setenta e sete países estavam implementando fechamentos em todo o país e 13 fechamentos locais, o que corresponde a 73% da população estudantil do mundo. u m outro dado impressionante é que, por exemplo, a Cambridge anunciou o cancelamento dos exames deste ano, de todos os exames de 2020, inclusive os exames do bacharelado internacional. Então, a pergunta que eu sei que não tem uma resposta simples é qual a sua avaliação, professor Salles, do impacto da pandemia no mundo acadêmico, no mundo universitário? Quer dizer, nós vamos conseguir recuperar desse choque que levamos todos?
João Carlos Salles: Sabe, Paulo, quando eu vi o chamado ‘Depois do Futuro’, aí eu disse “não, conversa de filosofia, vamos falar sobre o tempo”. E aí acho que um pouco eu vou falar sobre isso. Primeiro, a primeira impressão que eu tenho é que a pandemia trouxe uma aflição enorme, um sentimento de perda de tempo enorme das pessoas; a reação das pessoas é uma reação inusitada agora e preocupante. As pessoas estão aflitas com a sua produtividade e as vezes não tendo consciência da gravidade da situação. Nós não estamos de férias, nós não estamos em greve, nós estamos vivendo uma situação de calamidade pública muito grave, né. Então, nesse sentido é muito importante que primeiro a gente tenha essa consciência do presente, dessa dimensão presente na qual a vida tem prioridade, ou seja, nada do que vem a ser a universidade importa se nós não tivermos hoje a consciência forte dessa presença necessária a ser garantida, essa prioridade da vida. Primeira questão.
E depois pensar como sairemos. Pensar cenários futuros aí já coloca um desafio também para o tempo da universidade. A universidade é uma instância, é um animal mitológico muito curioso porque nele convivem tempos distintos; nós temos o tempo do ensino, o tempo da pesquisa, o tempo da extensão, da relação com a sociedade. E agora nós estamos sendo desafiados a fazer com que esses tempos distintos tenham uma organização harmônica para que as respostas não comprometam nossa natureza. Eu estou aqui fazendo a menção a outro animal mitológico, centauro, né, que nós sabemos que Lucrécio já dizia que era uma impossibilidade metafísica, porque o tempo do homem é diferente do tempo do cavalo e juntá-los significaria fazer com que criança e adulto convivessem em completamente.
E eu estou pensando nisso porque nós temos que pensar nessas diversas dimensões e saber o que que dá corpo, o que que dá natureza à Universidade. E aí eu acho que a ideia de presença, de universidade real, no sentido onde as pessoas convivem e passam pelos laboratórios, pelas bibliotecas, a relação com o outro ela deve dar a medida, o critério, a medida de qualidade do que podemos fazer depois que sairmos dessa situação e o que podemos fazer para sair dessa situação.
Paulo Markun: Agora, antes de avançar queria lembrar a quem nos acompanha que é possível fazer as perguntas tanto pelo Facebook quanto pelo Youtube, a nossa equipe me manda e eu encaminho ao senhor. Agora, a minha dúvida é a seguinte, o papel do campus universitário, do convívio universitário… eu cito no meu caso particular que é obviamente pré histórico e de um curso muito peculiar, que é o curso de comunicação na USP, porque a instância teórica, digamos assim, era bastante distanciada da vida prática das redações e eu mais fiquei nas redações do que na universidade, mas a convivência universitária é uma ferramenta muito importante do, vamos dizer assim, do desenvolvimento do conhecimento. Em que medida é possível pensar em uma universidade digital, numa universidade à distância? E em que medida é possível condicionar a operação universitária às regras da OMS, que fazem com que seja necessário reduzir a presença dos alunos na sala de aula, o distanciamento social, os lugares de convívio etc.?
João Carlos Salles: Isso vai ter respostas distintas, vai depender das circunstâncias sociais. Uma das coisas que a pandemia trouxa para toda a sociedade brasileira foi a consciência de um profundo déficit digital da sociedade. Vocês viram quando se ofereceu esse auxílio efetivo, pequeno, relativamente pequeno, de R$ 600; para as pessoas se cadastrarem pelo internet e para terem até conta, descobrimos logo um exército, milhões de pessoas invisíveis ao sistema bancário, invisíveis, portanto, a esse exercício da cidadania que passa por ter uma conta, por ter esse tipo de relação com o mercado. Nós descobrimos logo também um conjunto enorme de pessoas sem acesso digital. Por exemplo, no caso de estudantes da nossa comunidade, boa parte deles tem acesso à internet, tem acesso à ações remotas dentro do âmbito da universidade – isso muda de região para região, de universidade para universidade da composição social. Nós percebemos então um déficit nas habitações das pessoas. Ou seja, se nós pensarmos o que é um déficit habitacional, se pensássemos a 30 anos atrás certamente pensaríamos no saneamento – continua havendo déficit-, pensaríamos em energia elétrica – continua havendo déficit-, pensaríamos em água certamente e outras coisas – continua havendo déficit. Mas agora temos que acrescentar na lista “acesso às tecnologias”, acesso às tecnologias digitais.
Boa parte da nossa população vive esse déficit fora da universidade. Os estudantes, é claro, são marcados por essa diferença. Um dos problemas que nós temos é como sair dessa pandemia sem aprofundar desigualdades que a universidade exatamente pretende diminuir. Ou seja, como ter soluções que garantem isonomia de oportunidades? Não pode ser uma ação única da universidade, não é uma ação fácil, não é simples; o professor não é necessariamente um youtuber, não é alguém que pensa que pode se comunicar na sua aula como faria nas redes sociais. Aí volta a questão: o tempo da argumentação acadêmica é diferente da rapidez do Twitter; o tempo da argumentação acadêmica, da exposição, exige uma demora em termos de maturação, de diálogo, de diferenças, de leituras distintas e não uma afirmação pura e simples, rápida, ditada, apressada, de certas vontades individuais.
Então, acho que a universidade, primeiro, tem um problema enorme estrutural da sociedade que afeta a universalidade, de acesso dos estudantes; mas, tem um problema de linguagem, do tempo própria da academia. Como é que eles se traduz na vida digital? Como fazer com que os nosso bons professores, aqueles mais experientes, mas que mostram o incipiente iletramento digital vão conseguir dar boas aulas utilizando essas ferramentas, vão conseguir fazer avaliação adequada e não reproduzir arquiteturas de poder? Você sabe que uma boa parte da reflexão pedagógica das últimas décadas lembravam que a própria disposição da sala de aula fazia uma separação entre quem sabe e quem não sabe; um certo tipo de relação que você podia questionar a compreensão do lugar do docente, era alguém que não deixava que sua cadeira fosse ocupada – a cadeira dele se afastava dos outros. Imagine esses expedientes de poder na insegurança ou na falta de transparência que a total transparência que a internet traz. Ou seja, nós podemos cultivar formas arbitrárias que comprometem o tempo próprio de formação da universidade.
Paulo Markun: Na Nova Zelândia um grupo de publicadores permitiu leituras públicas virtuais dos seus materiais a bibliotecas e salas de aulas; na Austrália também, a Associação Australiana de editores de bibliotecas e de autores concordaram com um conjunto de medidas excepcionais para permitir que as bibliotecas forneçam conteúdo educacional. Esse é outro problema, né? Num certo sentido esse mundo digital coloca uma questão que…
Ah, temos aí um gato.
João Carlos Salles: Desculpe, são vários. Eu estou um pouco disperso porque são dois que estão aqui, de fato, disputando minha atenção. Eu vou tirar aqui da sala. Só um instante, só um minuto.
Paulo Markun: Essa entrará para os chamados memes da internet. E o complicado é que às vezes um detalhe saboroso, porém…
[João Carlos Salles regressa]
Desculpe.
Paulo Markun: Imagina, professor. Agora, a questão é a seguinte, como é que se faz com essa questão dos conteúdos? Se já havia no passado, há bem pouco tempo pelo menos, o debate sobre o xerox e em que medida era possível xerocar material, como é que isso fica quando a gente vai ter que usar muito mais intensamente os meios digitais para a difusão do conhecimento?
João Carlos Salles: Duas questões que incomodavam antes, o direito autoral. Hoje nós sabemos o reino do pdf, ou seja, os vários livros que estão na rede e que se tem acesso imediatamente, as vezes mal acabaram de sair e estão disponibilizados, né. Esse reino do pdf criou, de fato..quer dizer, tem uma vantagem, tem um acesso mais isonômico das pessoas, diminui diferenças, mas cria problemas sérios na produção. Outra coisa, por exemplo, é a gravação de aula. Você deve lembrar que tempos atrás a grande disputa política do Brasil com as tentativas de gravar as aulas para utilizar esse material contra os docentes, processando os docentes. Imagine agora uma realidade em que tudo é gravado. É natural, os professores não têm problema com o que dizem, com o que defendem, mas é claro que o recorte que pode ser feito nesse material, a fala fora do contexto, tudo isso pode ser utilizado para campanhas difamatórias das quais poucas pessoas escapam uma vez empreendida essa campanha.
São duas coisas, dois sinais. Ou seja, nessa mudança de registro podem comprometer a tranquilidade, a liberdade de expressão quando nós temos ao contrário tudo sendo expresso. Curioso isso, tudo expresso e, entretanto, falta o contexto, o contexto próprio de proteção do espaço acadêmico, da legitimidade de procedimento e assim por diante. A questão do material disponibilizado também. Você pode ter… a ideia própria do direito autoral pode se perder em um cenário em que todo mundo tem acesso a tudo.
Paulo Markun: Agora, uma outra questão. Nos últimos tempos, nos últimos anos houve o crescimento exponencial do Ensino À Distância no Brasil por uma via menos nobre, digamos assim, que é oferecer ensino público pago mais barato. Os números são impressionante, o senhor até mencionou naquela conferência na Unicamp. Como é que isso ficará, na sua avaliação, daqui para frente? Há uma tendência ainda maior de oferta de ensino à distância, de misturar joio com trigo?
João Carlos Salles: Eu falei, brinquei aqui que ia falar sobre o tempo, certamente o tempo da universidade presencial e o tempo das ações remotas vão precisar conviver. Será impossível para nós não utilizar mais e mais ações remotas. Acho que tem uma defasagem nossa, no nosso letramento digital, etc. isso tudo tem que ser corrigido. Mas, nós temos que fazer isso garantindo – esse é outro lado fundamental – a qualidade da universidade. Ou seja, a universidade não é um repositório de conteúdos que vão ser disparados para as pessoas, é um lugar de formação, não é de informação simplesmente, é de formação, lembrando aquele campus que você louvou como um espaço de convívio de gerações, de confrontação de ideia e de saberes. Então, é bom lembrar que temos aí um desafio de como conciliar essas duas tecnologias.
Eu fiquei muito assustado quando vi recentemente, passados os 15 dias da calamidade pública, talvez um pouco mais, uma publicação de representantes da iniciativa privada dizendo que todos os seus professores já estavam capacitados para utilizar as tecnologias digitais e com isso não sei quantas vagas poderiam ser garantidas. É preocupante porque simplesmente nós sabemos que há necessidade de um domínio mais sofisticado das técnicas e a universidade tem que disciplinar isso, não é um arbítrio individual do professor que acha que ele sabe fazer bem, porque achar que se segue uma regra, acreditar que segue uma regra não é seguir uma regra; acreditar que você comunica bem não é se comunicar bem. Existem procedimentos que devem ser atendidos para saber se está se garantindo a qualidade do ensino e de um ensino que, na origem, deve ter vínculo com a pesquisa e com a extensão. Lembre-se, princípio fundamental da autonomia das universidades: essa indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Será que nós podemos garantir isso no espaço remoto, no espaço virtual? Então, temos que sempre pensar como associado, ligado; o tempo desse espaço ágil que se estende além fronteiras deve estar ligado, bem alinhado no âmbito da universidade como um espaço fundamental de aposta da geração nossa no futuro. Olha aí mais uma vez o tempo.
Paulo Markun: Agora, a Andifes representa instituições que têm condições díspares de recursos, de estrutura, de orçamento e de inserção na sociedade – universidade tradicionais, antigas, e outras que foram criadas recentemente. E mais ainda, todas elas enfrentando esse recente maremoto de considerar que a universidade é uma instituição que não produz conhecimento, mas que produz balbúrdia, que produz maconha, que produz comunismo, sei lá. Como enfrentar isso? É possível ter uma regra para todo mundo? Cada universidade tem que buscar o seu caminho? Como é que se faz?
João Carlos Salles: A autonomia é um princípio fundamental e não é vazio, o que significa que cada universidade deve encontrar um modo de exercitar sua competência, o modo como articula as suas relações. Mas, a gente pode elaborar alguns princípios comuns, algumas condições, até para que não se peça de uma instituição o que ela não pode dar. Então, por exemplo, nós temos boas universidades fazendo bom ensino à distância, digamos assim, ou pelo menos tendo atividades remotas de grande eficiência – algumas de renome internacional, algumas nacionais -, mas para isso elas antes são grandes universidades. Elas não fazem um grande ensino à distância sem serem antes grandes universidades. Chamar uma universidade que não teve maturação na pesquisa ainda, que não estabeleceu bem, que não consolidou os seus campings, não consolidou a sua vida comum para esse desafio digital é criar uma vida artificial não ancorada numa história de pesquisa, numa consolidação de grupo de pesquisa. Por isso que eu acho que precisamos ver tudo isso com certa ressalva para saber exatamente o que devemos pedir a cada um e que regras podemos ter como regras desejáveis.
E veja bem, sairemos da pandemia… o que ela ensinou a pandemia? Ensinou que duas instituições do Estado, como projetos de Estado foram fundamentais para o combate à pandemia. O Sistema única de Saúde e a Universidade Pública; Universidade Pública tanto estaduais como federais. Ora, eu faço um raciocínio contrafactual que eu tenho feito em vários lugares: imagine como não seria melhor a nossa resposta, Paulo, se nós, ao longo desse tempo, tivéssemos tido um grande investimento, investimentos mais robustos do Sistema Único e na Universidade. Agora, nesse momento, numa avaliação parcial a Andifes registrou mais de 800 pesquisas sobre coronavírus nas universidades federais apenas. Imagine só. Ou seja mesmo nessa situação de relativa defasagem orçamentária, chamada a reagir, mostrou uma capacidade grande de pesquisas, de produção de álcool gel, de equipamentos de proteção individual, de campanhas educativas, de instrução à população; elas reagiram mostrando essa natureza dúplice e fundamental delas de conhecimento e solidariedade.imagine como reagiriam se o investimento fosse mais continuado. Essa é uma lição da pandemia. Ou seja, se nós queremos enfrentar o futuro e futuras crises – que tudo sinaliza como possíveis – não podemos cometer esse erro de desassistir as universidades, de reduzi-las de novo ou de reconduzi-las a uma austeridade muito severa, imaginando que compensaríamos essa severidade, essa austeridade com ações digitais simplesmente oferecendo vagas à distância.
Paulo Markun: O Brasil vive hoje sob o comando de um comandante que vai na contramão daquilo que diz a esmagadora maioria dos governantes diante da pandemia. Emprega a volta às atividades econômicas como passo fundamental em que pese que isso vá provocar ou não o aumento do número de infectados e, portanto, do número de mortos. Uma outra questão que se coloca é o fato de que qualquer momento, qualquer movimento, perdão, de reabertura das atividades, de redução da quarentena – isso envolve as universidades também – pode significar um aumento do número de infectados. E, portanto, aqui na Europa, por exemplo, não está descartada e já tem acontecido recuo da parte do governo para que as instituições, as empresas e as cidades, inclusive, voltem a se fechar. O senhor acha que isso onde acontecer no caso das universidades? E mais ainda, em que medida a determinação, por exemplo, do MEC impacta de alguma maneira na autonomia universitária?
João Carlos Salles: Eu comecei dizendo que nesse momento estávamos regidos por um valor fundamental da presença, a vida, né. Isso infelizmente não tem sido a tônica de todas as declarações governamentais. Ao contrário, parece que ante o dilema da bolsa ou a vida, se aposta na bolsa quer se proteger a bolsa e não a vida. No momento que temos que fazer algum sacrifício agora parecem que querem entregar os dedos e não os anéis.então, eu acho que existe aí uma opção de valor. É por isso que nesse momento está em jogo também não apenas o conhecimento científico, sabe, Paulo. Eu acho que nesse momento como eu falo na universidade como esse espaço, como esse lugar, eu falo da universidade como exemplo de diálogo entre as diversas áreas. Porque não basta ter resposta aplicada para resolver o problema da pandemia, é preciso ter cultura. Ou seja, é preciso defender ciência, cultura e arte como modelos de convívio e respeito ao outro, que certamente fariam com que os governantes não pudessem estar ameaçando tanto ou incitando tanto que se quebre o distanciamento social. Então, essa é uma questão primeira que nós temos que apreciar de forma precisa e clara. Parece que está havendo, que nós estamos vivendo a era do fim da hipocrisia no mal sentido. Ou seja, o que seria o fim da hipocrisia no mal sentido? O Foucault já dizia que a hipocrisia era a homenagem que o vício presta à virtude; com isso ele queria certamente lamentar a existência do falso virtuoso, alguém que finge que é virtuoso sem ser.
Agora, na época do “e daí?”. Ou seja o que nós estamos vivendo é uma situação em que se diz, em que o governante diz: não precisa ser virtuoso, defenda seu interesse, defenda seu emprego, não precisa se preocupar com tantas vidas ceifadas. Não é? Isso é algo muito grave desse momento. E aí você percebe, claramente, que no momento em que toda a sociedade deveria agir em uníssono sob a liderança da autoridade científica mais abalizada, nós temos vozes conflitantes – as mais diversas. E isso é um grande prejuízo hoje para ações consertadas, adequadas, pelos diálogos diversos. Ao mesmo tempo que deva ressaltar aqui; há esforços da Secretaria do Ensino Superior do MEC de favorecer, de estimular, de sustentar, de apoiar pesquisas feitas na universidade ou ações feitas na universidade. Por outro lado, nós temos declarações que mencionam premiação a quem retornar mais cedo, premiações a universidades que retornarem mais cedo, quando na verdade, você deve saber disso, as universidades no esquema que se colocam de retorno à atividade ela é um tipo de instituição que deve aguardar mais cedo. Por quê? Pela sua capilaridade, ou seja, os estudantes das universidades nossas estão espalhados no interior, em outros estados. Então, o retorno às atividades das universidades faria uma disseminação ou um processo de não distanciamento social muito grande. E aí nós temos um desafio também para o retorno às aulas.
Você já mencionou isso e eu não tratei da questão. As nossas universidades precisam estar preparadas para a questão de higienização das mãos, dos espaços. Nós temos que redesenhar os nosso espaços físicos; vivemos as vezes salas superlotadas. Então, veja, há uma série de ações que precisam de investimento real no bom sentido, não é gasto, é investimento com as questões estruturais da universidade e investimento na proteção das pessoas. Tudo isso tem que ser pensado. Então, é claro que cada universidade tem sua autonomia para pensar como vai se relacionar com as ações remotas, tem sua autonomia para pensar o retorno do seu calendário, mas há princípios que a Andifes vai defender o tempo todo: que se respeitem as normas das autoridades sanitárias quando embasadas do conhecimento científico mais apurado e não quando sejam resultados de alguma pressão eventual de um governante.
Paulo Markun: Nos Estados Unidos se fala em 14 bilhões de dólares para suportar as universidades e um artigo publicado ontem no The New York Times dizia que esse dinheiro não é suficiente; 14 bilhões não resolverão a situação das universidades diante dessa coisa da pandemia. Aqui no Brasil, qual é sua expectativa de reforço orçamentário para as universidades no cenário que a gente está vivendo?
João Carlos Salles: Essa é uma situação muito delicada, porque as universidades não podem sair disso sendo tratadas com austeridades fiscal, né. Elas já vinham na situação de defasagem orçamentária e não pode de uma hora para outra terem o seu orçamento reduzido; até se for mantido simplesmente, você estará garantindo apenas o custo efetivo das universidades.então, se torna uma questão de saúde pública também investir nas universidades para as ações que elas vão fazer; ao mesmo tempo é uma ação de longo prazo porque a universidade está mostrando que é um dos equipamentos sociais, um exemplo de capacidade da sociedade de reagir às epidemias. E, veja só, não há sinais de que teremos um orçamento mais liberal; ao contrário. Então, isso é muito preocupante. Envolve uma reflexão do COngresso Nacional nesse momento muito séria, muito detida, para que as universidades não sejam tragadas pela regra da Emenda Constitucional 95 e paguem o preço de austeridade que será contrária ao interesse da nação;
Paulo Markun: No caso das pesquisas científicas e médicas sobre vacina, sobre a maneira como o vírus opera no organismo humano, a disseminação, etc, quer dizer, a pesquisa mais próxima daquilo que é o fulcro do combate ao coronavírus existe uma enorme concorrência internacional. E ao mesmo tempo há sinais de cooperação. O caso da União Europeia, por exemplo, se juntaram os países para obter 7.400.000.000 de euros, perdão, de dólares para financiar pesquisas conjuntas. Dois países, não da União Europeia, mas do grupo que poderia apoiar não entraram nessa participação, os Estados Unidos e a Rússia. Minha pergunta é: no Brasil, as universidades já têm acordos de cooperação? Já se superou os limites institucionais das suas corporações para jogar junto nessa história?
João Carlos Salles: Está havendo algo interessante nas universidades, os grupos estão dialogando. Fazendo uma homenagem à Vogt, à Unicamp, e falando também da minha casa – fiz doutorado na Unicamp; a Unicamp está desenvolvendo um grande gesto e carreado muitos recursos em grupos especiais, força tarefa mesmo para pensar isso. E o sinal que nós temos, o exemplo da Unicamp é um exemplo nacional; a comunidade científica nossa mostrou competência e disposição de colaboração. Mas, ao mesmo tempo a gente tem a notícia de que tanto a Unicamp e mais ainda as federais que não têm tido o acesso a esse recurso, solicitam investimento maior imediato para que essa cooperação não seja apenas o resultado da disposição atual dos cientistas. Existe essa cooperação, ela já e nacional, e estamos aí enfrentando alguns obstáculos; obstáculos de apoio dos governos, obstáculos das agências de fomento que começam a desenhar, aproveitando essa oportunidade agora tão dramática, limitações a bolsas, limitações ao apoio a certas áreas que comprometem – mais uma vez falando do tempo -, comprometem as universidades na longa duração.
Nós temos duas coisas: o imediato do enfrentamento da pandemia e a preservação da instituição universitária. Nesse caso, só para dar o exemplo, foi agora, recentemente…até teve uma alteração, mas que conserva ainda a subordinação das áreas de humanas, letras, etc, às áreas tecnológicas mais aplicadas – isso para edital e iniciação científica. Há uma incompreensão nesse sentido no Inpq, incompreensão porque quando você faz um edital dirigido para certas áreas prioritárias – isso é um direito do Estado que fomenta fazer isso -, você faz para atrair os pesquisadores já consolidados, para favorecer tal pesquisa, por exemplo, energia eólica. Mas, não se faz isso na base da pirâmide, quando você está atraindo jovens para se encantar com a vida universitárias; você não pode fazer com que o jovem que eventualmente esteja encantado com a área de humanidades, que ele para atender a área prioritária da energia eólica faça uma pesquisa tipo assim “a metafísica de Aristóteles e a energia eólica na Chapada Diamantina”. Ou seja, ele não pode subordinar a pesquisa dele, que deve ter seu curso própria e com isso você está alimentando a cadeia inteira do conhecimento – eu digo conhecimento, que envolve ciência, cultura e arte – em que se constitui uma instituição capaz de responder em dois sentidos. Insisto nos dois sentidos, porque você não responde só com conhecimento aplicado; a razão fria, gélida – aprendi no excel – pode ser mais perigosa que o Twitter, às vezes. Ou seja, a razão gélida, o mero cálculo não é suficiente se nós não sabemos qual o sentido da nossa pesquisa, se nós não sabemos o que nos espera, digamos assim, ‘depois do futuro’. Ou seja, que sociedade humana vai estar depois do futuro, com que valores, com que capacidade de se confrontar tanto com a tecnologia, com os avanços tecnológicos, mas com o sentido da existência e algo que não se corrige, porque a finitude humano exige nossa reflexão.
Paulo Markun: O reitor da Unicamp, o professor Marcelo Knobel, publicou um artigo nesses dias aqui dizendo que a Unicamp tem feito um esforço enorme de obter doações de equipamentos para suprir a precariedade digital de muitos de seus alunos. E o senhor estava falando com a gente antes de começar aí a live, como se diz, sobre a situação da Universidade Federal da Bahia, onde aconteceu uma pesquisa, mas cujo o resultado lhe parece, se eu entendi bem, não representar efetivamente a total realidade dos alunos. Como é que é isso?
João Carlos Salles: Veja só qual é a situação, logo que começamos a situação de suspensão do nosso calendário das atividades remotas apareceu uma surpreendente pressão. Surpreendente porque eu acho que…não porque não seja legítimo, porque nós queremos continuar nossas atividades já que não estamos nem em greve nem em férias, é- evidente que nós queremos continuar nossa atividade, mas queremos fazer isso garantindo alguns princípios fundamentais que levaram à suspensão da atividade presencial. Ao mesmo tempo se nós deslocamos a atividade presencial da universidade, suspendemos a atividade que está pautada pela ideia de inclusão de que os alunos têm que ter acesso, têm que poder ter livre acesso aos meios diversos até que sua desigualdade originária desaparece e seu talento brilhe…porque a universidade é um lugar que não alimenta apenas talentos prévios, não favorece os já privilegiados, ao contrário, ela cria ao mérito, ela produz, ela cria o mérito, ela cria comissões para que o talento se torne no mérito, que se afine diante de todos.
Então, ela exerce esse papel; esse papel não pode ser abandonado porque estamos com as atividades presenciais suspensas, não pode ser abandonado. Aí nos quisemos saber como é que os estudantes poderiam acompanhar as atividades remotas, fizemos uma enquete na UFBA, esse resultado será apresentado no nosso congresso da UFBA que será agora de 18 a 29 de maio, um grande congresso, congresso onde a Universidade mostra a sua capacidade de debate – são quase 600 mesas que serão alocadas em salas virtuais durante esses dez dias, discutindo todos os temas. Pois bem, quisemos saber o acesso dos estudantes. Na pesquisa, um terço aproximadamente dos estudantes respondeu a pesquisa. Mas, o que me surpreendeu..vou destacar um dado. Um dos dados da resposta era se o aluno precisava ou não de assistência estudantil e 90% dos alunos que respondeu a enquete, ou seja, 90% do 1/3 que respondeu a enquete dizia exatamente que não precisava de assistência estudantil. Ora, a composição dos nossos alunos na Universidade Federal da Bahia é de 69% de alunos que tem renda per capta familiar de até um salário mínimo e meio o que configura a situação de vulnerabilidade. Ora, esse conflito nas proporções na composição dos estudantes na proporção de quem respondeu a enquete mostra que a pressa em realizar atividades virtuais ia excluir mais ainda os que já são naturalmente excluídos por todos marcadores sociais. Virtualmente entre aspas.
Paulo Markun: Como é que se resolve isso?
João Carlos Salles: Veja, resolve com investimento do Estado. O Estado tem que investir fortemente para diminuir essa distância digital. Isso aí concordo evidentemente. Faremos campanha, teremos que criar condições; é política pública de acesso à internet para o estudante. Sem dúvida, sem restrições. E equipamentos até precisam ser adquiridos. Precisa de investimentos. Ou seja, essa universidade vai precisar diminuir o déficit habitacional no que significa acesso às tecnologias digitais. Mas, essa é só uma face do problema. A outra face é a capacitação dos docentes, né.
Paulo Markun: Para agregar, a Ana Paula Figueiredo mandou a seguinte pergunta que eu acho que encaixa bem aqui: como vamos incluir na educação de professores da educação básica e da educação superior o letramento digital e, mais importante, as premissas da mundanidade da educação à distância?
João Carlos Salles: Primeiro vamos pensar duas coisas aqui. É importante. Fizemos também uma pesquisa com os docentes e mais da metade dos docentes respondeu. E aí eu poderia dizer o seguinte, sintetizando, mais da metade dos professores que respondeu a pesquisa revela pelas declarações que deu um letramento digital incipiente, ou seja, têm acesso à tecnologia, alguns até não utilizam a tecnologia. E aí vamos pensar nisso. Como fazer isso? Primeiro, precisamos separar duas coisas: uma coisa são as ações remotas, as aulas online; outra coisa é a educação à distância, o ensino à distância. O ensino à distância é uma modalidade completa, é um curso que é completo, pensado com uma educação à distância, ele tem uma parte presencial com tutorial, bolsistas, etc, pólos em geral, pólos feitos nas regiões, tem toda uma lógica que configura o que chama universidade Aberta do Brasil, que está ligada às nossas universidades. E são modalidades que têm uma forma de aprovação, uma forma de registro, de controle específica. Então, não tem sentido dizer que vai substituir o presencial por essa modalidade que é outra modalidade.
A utilização de ações remotas exige esse letramento, capacitar os docentes, discutir procedimentos pedagógicos, criar regras sobre acompanhamento. Tem toda uma série de questões. Agora, claro, tudo isso se dá quando o aluno pode ter acesso. Então, você tem duas coisas que devem confluir: uma primeira parte tem a ver com o acesso material aos meios digitais e a outra à capacitação dos docentes. E aqui um paradoxo interessante. Nossas universidades têm um plano de carreira, os professores não são [inaudível], os professores vão progredindo, vão tendo sua progressão funcional em função das suas publicações, das suas experiências como líderes de grupos de pesquisa. Em geral, os pesquisadores que são…nosso caso é diferente das estaduais, nas universidades federais você tem as duas últimas categorias que são os professores associados e os professores titulares.
Eu devo supor, eu já perguntei isso e ainda estou aguardando a resposta, de que ao cruzar o letramento digital com a trajetória dos pesquisadores. Vamos considerar que boa parte dos professores que são a nossa referência podem ter um letramento digital inferior aos professores mais jovens, o que inverte a pirâmide de valores de quem sustenta, de quem é referência acadêmica da universidade. É algo que nós temos que fazer porque, assim como não queremos abandonar os estudantes – ninguém deve ser abandonado, esse é o espírito da universidade, ninguém fica para trás- também os docentes não devem ser abandonados. Por outro lado, esses docentes mais experientes se aproximam mais da faixa de risco e por isso mesmo devem ser mais preservados. Olha só os paradoxos que nós temos que enfrentar na situação de estudo de uma retomada de atividades remotas e presenciais.
Paulo Markun: O senhor falou também antes da gente começar a live sobre um evento que vai acontecer na Universidade Federal nessa circunstância com mais de 500 apresentações de trabalho. Como é que se faz isso na internet? No congresso é mais ou menos compreensível, você faz lá suas salas, cada um se apresenta de um lugar e tudo tá resolvido.
João Carlos Salles: Primeiro, nós estamos aqui com a cabeça…montando o quebra cabeça da programação. Nós nos surpreendemos com um belo resultado. Nós fizemos um chamamento. Nós temos um Congresso da UFBA já que fazemos, um congresso presencial que vai ocorrer no momento que for redefinido o calendário, ele ocorre no segundo semestre do ano letivo; ele vai ocorrer na UFBA, esse grande congresso presencial da UFBA vai ocorrer. Mas agora, nesse momento, até como uma forma de manter nossa agregação, manter o nosso diálogo, fazer com que a sociedade que eu acho que solicita o conhecimento da nossa pesquisa nas diversas áreas, nós propusemos e estamos realizando o congresso virtual; o primeiro congresso virtual da UFBA. E abrimos para inscrições de mesa pela comunidade, chegaram e foram ali consolidadas 586 mesas, que vão ser feita…nós estamos trabalhando, prevendo a tecnologia de acompanhamento, porque não pode ser, você sabe muito bem que não funciona cada um “vou abrir meu instagram”. Não é assim que funciona. Você tem que ter toda uma estrutura de acompanhamento e técnicos acompanhando essas salas para que haja qualidade mínima no diálogo entre as pessoas, que se garanta os meios todos. Então, nós estamos montando agora essa programação e vamos ter um belo congresso, se você está em São Paulo, está no Rio, qualquer parte do Brasil, não tem problema, é fácil de acompanhar: congresso2020.ufba.br. Grande congresso virtual; discutiremos a crise política, dicutiremos o coronavírus, a educação digital; muitas mesas. Nós vamos enfrentar a questão…é o nosso método, né, universidade não enfrenta essas questões com opinião, enfrenta com debates, com estudos específicos. Vamos enfrentar as questões das tecnologias digitais, o problema dos alunos, do acesso, da assistência estudantil. Tudo isso vai ser enfrentado nesse congresso, o grande congresso da UFBA onde todas as áreas estarão presentes, intervenções artísticas. Tudo isso [inaudível ] universidade.
Paulo Markun: A data, quando é?
João Carlos Salles: É dia 18 de maio, de 18 a 29 de maio. A abertura será na tarde do dia 18, estaremos fazendo a abertura do congresso na tarde do dia 18. Palestrantes importantes. Vocês vão ficar…vão gostar muito de ver os palestrantes já confirmados e em breve aumentaremos a lista dos palestrantes confirmados, agora que nos estamos consolidando a programação. E a inscrição é fácil, é gratuita, é aberta e todo mundo pode estar assistindo e fazendo parte dessa comunidade.
Paulo Markun: Maravilha! Pergunta de Andrea Oliveira, recebida pelo Youtube: qual a posição da Andifes sobre a realização do ENEM?
João Carlos Salles: A Andifes acabou de assinar um documento coletivo solicitando a suspensão do calendário do ENEM. veja, nós mantivemos o tempo todo o diálogo com o Inep, o Inep nos esclareceu primeiro de que estava anunciando datas porque esse procedimento seria necessário para os processos licitatórios, os processos de providência para realização da prova. Temos hoje testemunhos muito importantes, muito sérios de nossas universidades, do país, da comunidade da educação mostrando como a realização nessas condições vai sim aprofundar traços de exclusão, não vai garantir que o bom acesso à universidade… e o acesso à universidade pelo ENEM hoje é fundamental que ele seja pensado sobre a ótica da isonomia de oportunidades, agarrando bem todas as possibilidades de formação dos estudantes. Então, a Andifes já assinou esse documento e sairá com a nota própria manifestando sua posição pelo adiamento do calendário do ENEM.
Paulo Markun: Professor, as outras pandemias da história da humanidade, que foram dramáticas e das quais a gente só tem notícias -quer dizer, as mais antigas – por ler alguma coisa, de 1918 e as anteriores, né, não tinham essa tecnologia que nós temos hoje em dia. Nós estamos vivendo uma situação… Nem tinham, obviamente, também o desenvolvimento científico e tecnológico que permite acelerar o processo de descoberta e de utilização de uma vacina ou de um remédio. A minha questão é a seguinte, esse cenário de avanço tecnológico inteligência artificial, internet 5g, computação quântica, tudo isso meio ficção científica – às vezes dá a impressão para quem tá ainda na internet tradicional – ele pode significar que o desfecho da pandemia tenha um saldo positivo, apesar de tudo? Ou a sua visão é mais pessimista?
João Carlos Salles: Nós respondemos segundo nossa natureza, né. Nós sabemos muito bem é claro, que esses recursos podem possibilitar maior interação da comunidade, a manutenção do diálogo em situações que seriam só de fechamento. Ou seja, nós estamos aqui realizando essa conversa com cada um de nós em um lugar diferente do mundo; eu aqui na Bahia, centro do universo, mas as pessoas em outros lugares do mundo. Estamos muito tranquilos com essa situação . entretanto, Paulo, nós sabemos que os valores, o modo da relação, a exclusão podem ser também um dos legados dessa crise. O Brasil tem uma tradição autoritária muito forte, uma tradição de exclusão muito forte. Eu me surpreendi sabendo que foram listados como serviço essencial, por exemplo, no Pará, o trabalho doméstico. Essa é a ideia de que essa servidão não pode parar, que as pessoas de uma certa classe não podem deixar de ser assistidas mesmo colocando em risco a vida das pessoas que prestam serviços. Essa é lamentável, porque a pandemia, se ela desconhece o marcador social quanto doença, a resposta à doença pode reforçar esses marcadores, comprometendo a vida de pessoas nas periferias, em residências com grande déficit, com obrigatória moderação, ainda mais forçadas a uma exposição que poderia ser evitada em muitos casos.
Em outros casos, se não pode ser evitada deve ser protegida, acompanhada, deve oferecer condições para que não haja o contágio e haja assistência mais detida. Então, o legado não necessariamente será a pureza; eu tenho que dizer para você que com um certo realismo nós saímos de várias crises anteriores a reprodução de desigualdade continuou, continuou a miséria humana. Ao mesmo tempo continuou a beleza da humanidade, porque tem essa duas faces. Assim como a universidade tem duas faces, assim como a universidade tem lado de competição, um lado de mera repetição, eu não creio que seja essa a verdadeira natureza da universidade. Eu creio que a verdadeira natureza da universidade é a colaboração, é o olhar ao outro, é a criatividade. E assim como eu considero que esse lado da universidade é fundamental, também considero que nós temos a chance sim de disputar a narrativa do futuro; não será da dor, não transforma necessariamente a pessoa que era antes talvez de um caráter duvidoso num caráter purificado, a dor não necessariamente purifica. Mas, o trabalho humano, o diálogo pode sim fazer outra rede de solidariedade prevalecerem, outras formas de vida encontrarem a sua expressão mais forte. Então, eu acho que a universidade é um dos modelos que se apresenta a sociedade como um lugar, uma forma de vida que congrega ao mesmo tempo conhecimento, conhecimento técnico e solidariedade.
Paulo Markun: Salvador viveu uma epidemia de varíola, em 1919, que foi impactante e dramática e que, num certo sentido, não é tão bem estudada, se eu não estou equivocado. Andei olhando aí pela internet nesses últimos dias o material, li alguma coisa do antropólogo Antonio Risério, também algumas teses sobre o assunto, mas ao que consta foi um transtorno gigantesco. É comparável com o que está se vivendo hoje?
João Carlos Salles: Difícil dizer porque, primeiro, a varíola tem uma expressão física sintomática muito forte. Eu, criança ainda, lembro de pessoas que foram vitimadas pela varíola e a impressão sempre foi de uma marca muito forte, uma marca que facilitava, por exemplo, até a separação dos doentes de uma maneira muito mais clara. Digamos que os meios de combate eram diferentes, mas certamente já fizemos o senhor do bonfim aqui, você sabe disso, você sabe que ele saiu em passeata, ou seja, um carro com o nosso senhor do bonfim saiu em passeata para abençoar a cidade. Tomara que isso surta algum efeito em termos de profilaxia espiritual da vida pública em Salvador. E aí eu posso dizer o seguinte, é interessante algo que está acontecendo agora: Salvador tem uma tradição de disputa política muito forte você sabe, eu estou mencionando a história do Bonfim, mas existe um momento, uma festa do senhor do bonfim onde os governantes vão a essa festa – em geral ali estão se anunciando as candidaturas políticas, interesses inconciliáveis. Aí eu posso me aproveitar disso para dizer que nós estamos tendo aqui, claro, com diferenças, com visões distintas, mas uma cooperação inédita entre o governo do município e o governo do Estado, que são tradicionais opositores políticos. Esse evento deveria iluminar o enfrentamento..esse evento de necessária cooperação política e não de hostilidade, de ameaças a governadores e a prefeitos como está sendo feito, mas sim de cooperação. E hoje parece que nos falta uma liderança específica para o enfrentamento da pandemia. Talvez uma liderança para outras questões, não necessariamente agradáveis, perigosas para a vida pública, para a vida democrática, mas claramente insuficiente, inepta, indesejável para a questão da economia. E aí a Bahia tem esse exemplo hoje.
Paulo Markun: Que bom. É um bom exemplo. É bom lembrar também…eu não vou aqui, não tô aqui e nem tenho nenhuma competência para fazer isso, defendendo bandeira alguma, mas o avô do atual prefeito de Salvador, Antônio Carlos Magalhães, sediou o Congresso que restabeleceu a UNE, em 1979.
João Carlos Salles: Eu fui delegado do Congresso da reconstrução da UNE em 1979. Tenho muito orgulho disso. Aliás, por coincidência, eu e o meu vice reitor da UFBA, meu amigo Paulo César Miguez de Oliveira, nós dois fomos delegados, representando na época a faculdade de economia. Disputamos, eram dois loucos que disputaram, fomos lá, delegados, e nossa amizade está aí até hoje.
Paulo Markun: É bom lembrar que…
João Carlos Salles: E ele teve esse gesto, ele teve esse gesto de abrir o centro de convenções para o congresso de reconstrução da UNE.
Paulo Markun: Em pleno governo Figueiredo, em plena ditadura militar.
João Carlos Salles: Exatamente.
Paulo Markun: Quer dizer, então é um bom sinal, porque um pouco falta isso – o senhor já falou aí – na atual conjuntura, entender que determinados gestos têm que ser praticados independentemente da opinião política de quem está no comando. Infelizmente isso não está acontecendo.
João Carlos Salles: Responsabilidade de nós. Eu acho que aí esse é um lugar de assistência [inaudível] de responsabilidade dialogando com os governantes, com o ministério, com secretarias, com governos municipais. Esse é o nosso papel: altivez e responsabilidade; não perderemos nossas bandeiras e não deixaremos de dialogar.
Paulo Markun: Bom, eu queria voltar então ao ensino à distância, colocando a pergunta – talvez a última, já que o nosso tempo está se aproximando do final – de João Vitor Del Poio: como se deve enxergar o ensino à distância para os diferentes cursos, de exatas e humana por exemplo? Tem que ter algum tratamento diferenciado ou a fórmula do ensino à distância com os pólos presenciais e instrutores funciona para tudo quanto é curso?
João Carlos Salles: Pode funcionar para cursos dos mais distintos; sem dúvida alguma algumas restrições na área de saúde, há restrições claras do ensino à distância. Nós temos um exemplo no curso à distância de dança, certamente não pode ser dança próximo, colado – brinco sempre com o nosso pessoal-, nós temos um curso de distância na área de dança, de qualidade, reconhecida. Mas, primeiro, não há fórmula, por isso não há pressa. A universidade não pode se dominar pela pressa, ela tem que garantir sua qualidade; o maior tributo que ela pode prestar às futuras gerações. Ou seja, oferecer com serenidade os melhores padrões de qualidade para o tipo de formação que ela for apresentar. E se nós somos esse espaço tão intenso de atividades, de diálogo…já disseram que isso é balbúrdia, mas é exatamente a boa balbúrdia que impede que sejamos o lugar da barbárie. Por isso mesmo, até mesmo para pensar educação à distância usaremos a balbúrdia conceitual, da reflexão, do debate, da capacidade de ver as diferenças e de encontrar soluções apropriadas para cada caso.
Paulo Markun: Muito bem. Professor João Carlos Salles queria agradecer muito a sua participação aqui no Conversas na Crise, lembrar a quem nos acompanha, em primeiro lugar, que esse material fica disponível tanto no Facebook quanto no Youtube, se quiser recomendar para alguém recomende, se quiser recomende para os inimigos também porque não só os amigos fazem parte do círculo do Brasil. E lembrar também que na próxima sexta-feira, às 16h, horário do Brasil, teremos a conversa com Mozart Ramos sobre educação no ensino fundamental. Muito obrigado professor Salles. Até a próxima.
João Carlos Salles: Até a próxima. Um grande abraço.