Comunicação pública, propriedade privada

Por Sérgio Amadeu da Silveira

A sociedade civil no Brasil nunca teve força para aplicar um regulamento público aos meios de comunicação privados que atuam na comunicação pública.

Em um de seus textos mais influentes, Habermas (2003) afirmou que a esfera pública estava sendo colonizada pela publicidade. Os jornais que nasceram como expressões de clubes de leitura e de encontros comensais teriam seguido o caminho da crítica política independente dos jogos palacianos. A imprensa, voz da burguesia nascente, trazia informações e críticas da condução da sociedade e dos desatinos do poder da nobreza. A leitura de Habermas nos leva a crer que na segunda metade do século XVIII e início do século XIX tivemos um jornalismo independente que apesar de privado circulava publicamente, sendo um dos principais elementos constitutivos da nascente esfera pública.

A emergência dessa imprensa europeia, criada pela burguesia, seguiu o modelo capitalista e se tornou negócio. Desse modo, o jornalismo não era uma atividade idealista, voluntária, um meio de lazer, de distração ou passatempo. O tratamento de informações, a expressão de posições sobre como conduzir a política, a luta de ideias apresentadas às amplas massas, também deveria dar lucro. Nesse sentido, a imprensa poderia ser autônoma em sua linha editorial desde que seus posicionamentos encontrassem as verbas publicitárias para mantê-la. Dificilmente um grande jornal iria sobreviver apenas pela venda de exemplares.

Max Weber, em um texto clássico – A política como vocação –, lembra que o jornalista, em um dado momento, era “o único político remunerado em caráter profissional” (p. 55), ou seja, remunerado como em qualquer outra ocupação pelas suas habilidades vendidas como força de trabalho ao capitalista. É evidente que o dinheiro comandava o jornalismo e pagava seus custos. Como atividade econômica, os veículos de imprensa enfrentavam seus concorrentes. Essa concorrência capitalista exigia um processo de renovação, modernização constante, aprimoramento profissional que seguisse a velocidade do capitalismo. Nos Grundrisse, Karl Marx havia notado que a evolução constante dos transportes e dos meios de comunicação eram vitais ao processo de valorização do Capital por garantir “a anulação do espaço pelo tempo” (p. 432), aumentando sua velocidade de rotação.

O surgimento da radiodifusão, da capacidade de transferir informações pelo espectro eletromagnético, pelas ondas do rádio e depois pela televisão, exigiu uma maior capitalização das empresas jornalísticas. O modelo europeu de radiodifusão estatal enfrentou o modelo norte-americano de concessões privadas. O Brasil seguiu os Estados Unidos. A comunicação eletrônica do lado de cá do Atlântico foi operada, praticamente desde o início por agentes privados que obtinham concessões públicas para operar o espectro radioelétrico. A partir da década de 1980 a própria Europa muda sua forma de tratar a comunicação eletrônica e adere ao padrão norte-americano. Afinal, a força do neoliberalismo já era incontestável e propunha destruir todos os resquícios dos chamados welfare states. Era preciso utilizar o Estado como maximizador dos negócios empresariais privados e não executor de políticas públicas.

A primeira metade do século XX teve nas verbas publicitárias o maior e quase absoluto provedor de recursos necessários para sustentar a imprensa e a radiodifusão nas Américas. Salvo as poucas emissoras estatais, a maioria dos veículos eram privados. Assim, a chamada comunicação pública era realizada por entes privados regulados por uma série de dispositivos legais, tendo como um dos objetivos principais conter a concentração econômica. No Brasil, tais regulamentos sempre foram atenuados no caso da radiodifusão. O primeiro código brasileiro de radiodifusão surgiu no início da década de 1960. Apesar de uma série de regras e de objetivos alegadamente públicos e nacionais, as concessões das emissoras de rádio e televisão se converteram em moeda de troca para o apoio governamental e foram sendo obtidas pelos políticos locais, organizadas em redes de emissoras controladas por poucas famílias – destaque para os Marinho. Aqui, nunca a sociedade civil teve força para aplicar um regulamento público aos meios de comunicação privados que atuavam na comunicação pública.

A espetacularização nas sociedades de controle

Ainda nos primeiros anos da expansão da televisão pelo mundo, em 1967, Guy Debord publica A sociedade do espetáculo (1997). Nele, apontava a supremacia da imagem como fundamental à formação de um público passivo diante das necessidades do capitalismo de vender sua gigantesca produção de mercadorias. Todo o produto era apresentado como espetacular e o ato de consumi-lo, um verdadeiro espetáculo. No capitalismo, tudo passou a ser espetacularizado para atender à mercantilização de todas as esferas da vida. Os jornalismo televisivo também seguia essa lógica e cada vez mais se confundia com um programa de entretenimento.

A criação de novas necessidades era fundamental diante da satisfação das necessidades existentes. O espetáculo serve a esse imperativo, sem o qual o consumismo se arrefece, golpeando o capitalismo e sua necessidade constante de venda. Assim, a expansão das comunicações carregava a possibilidade de criar um amplo público consumidor sempre à espera de um novo produto, da novíssima novidade, confirmando o que Marx e Engels escreveram no velho Manifesto Comunista: “a burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção – revolucionar, portanto, as relações de produção e, assim, o conjunto das relações sociais” (2022, p. 48).

Sendo assim, não pode existir um “mercado de massas” com um elevado grau de consumo sem criar uma necessidade psíquica nas pessoas, sem gerar transtornos e frustrações em quem não consome muito mais do que o necessário, uma vez que a necessidade deve caminhar velozmente para acompanhar a produção e a criação de novos serviços. Cabe ao marketing e à publicidade, a partir dos meios de comunicação, realizar o adestramento das pessoas para se querer sempre mais. Por isso, a comunicação pública convive misturada, influenciada e em uma mixórdia com a publicidade. 

Existe uma crítica foucaultiana à ideia de uma sociedade de espetáculo uma vez que o real seria composto de corpos e forças, não de imagens e signos. Do mesmo modo, pensadores inspirados em Deleuze poderiam também afirmar que o que caracterizaria nossas sociedades depois do pós-Guerra (1945) seria a disseminação do controle. Todavia, a espetacularização não implica a negação das disciplinas e muito menos a negação do controle. Apesar da caracterização do espetáculo, em Debord, exigir, por princípio, a aceitação passiva, ou seja a redução da potência humana à condição de espectador, é possível ver a espetacularização crescer no século XXI, em um mundo recoberto pela Internet.

A gestão algorítmica, monetização e modulação das atenções

A eclosão da redes digitais, em especial da Internet, na última década do século XX, retirou da Televisão a primazia das comunicações. A TV perdeu a centralidade dada pela indústria cultural. A Internet como uma rede de redes digitais, com uma arquitetura lógica distribuída inverteu os fluxos comunicacionais. Falar passou a ser fácil. O difícil agora é ser ouvido e visto. A economia da atenção se impôs.

Fundada em uma complexa relação causal, a elevação das capacidades de processamento computacional e armazenamento de informações, combinada com o avanço das tecnologias de conectividade formaram o terreno sociotécnico que proporcionou a existência do modelo de negócios baseado na coleta de dados pessoais. Rapidamente, tal modelo se consolidou como um dos principais arranjos lucrativos do capitalismo digital embalado pela doutrina neoliberal.

O negócio baseado em dados se alicerçou na oferta de interfaces e serviços digitais gratuitos com a finalidade de obter a maior permanência possível dos usuários em plataformas online, assegurando o rastreamento, detecção e registro de seus comportamentos. Em seguida, as informações sobre as condutas dos usuários eram armazenadas e organizadas por modelos algorítmicos com a finalidade de formar perfis pessoais. O Google se tornou a empresa que melhor expressa esse modelo (Zuboff, 2021).

No final da primeira década do século XXI, já era inegável o sucesso do mercado de dados. Isso levou as empresas a aderirem à dataficação (van Dijck,  2014) e orientou a publicidade e o marketing no caminho da microssegmentação e personalização de anúncios, serviços e conteúdos oferecidos. Com isso, as plataformas digitais se estabilizaram como os arranjos empresariais que melhor se adequaram ao capitalismo digital baseado em dados. Colocando-se entre a oferta e a demanda por determinado serviço, produto ou atividade, as plataformas coletam e analisam informações de todos os lados de um segmento ou atividade do mercado. Dessa forma, se constituem como empresas de dados.

No cenário da comunicação, o digital, em geral, a Internet, em específico, engoliu a TV, o rádio, a comunicação pessoal instantânea, enfim, passou a ser o meta meio de comunicação. A Internet é uma rede de redes que não possui um proprietário. Ela funciona com base em protocolos abertos, não patenteados, de uso público. Mesmo que seu atual sistema de domínios – perigosamente organizado pela ICANN (Internet Corporation for Assigned Names and Numbers) que possui uma relação de certa subserviência ao governo norte-americano – seja completamente capturado pelos interesses geopolíticos do Estado Unidos, em tese, os demais países poderiam se conectar definindo um novo servidor-raiz ou usando um novo sistema de conversão de endereços IPs em nomes de domínio e, até mesmo, um novo protocolo de conexão.

A Internet é aberta e não proprietária, mas os sites mais visitados que concentram a maioria das atenções na rede são fechados, verticalizados e controlados pelas chamadas Big Techs, grandes empresas de tecnologia. Assim, o mecanismo de busca do Google e o Youtube, ambas empresas do grupo Alphabet, disputam a liderança do acesso com sites chamados de redes sociais, como  Facebook, Instagram e o mensageiro instantâneo Whatsapp, esses três últimos do grupo Meta.

As chamadas redes sociais e os dispositivos de mensagem instantânea dominam a comunicação atual. No Brasil, 93% das pessoas com acesso à Internet utilizam mensageiros instantâneos, 72% utilizam redes sociais, 77% assistiram vídeos, programas, filmes ou séries pela Internet, 55% já acompanharam transmissões de áudio ou vídeo em tempo real. Esses dados são da pesquisa realizada em 2020 pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), do Comitê Gestor da Internet no Brasil.

As plataformas de relacionamento online, as chamadas redes sociais, os mecanismos de busca são organizações privadas operadas por sistemas algorítmicos, em geral, de aprendizado de máquina e aprendizado profundo. Esses algoritmos são opacos e seguem determinações e regras de aprendizado que são definidas por seus controladores (Silveira, 2019). Ao contrário de um telejornal na televisão, em que o apresentador fala ou omite notícias e todas as pessoas podem facilmente ver e ouvir, os algoritmos agem sem que saibamos o que estão fazendo. São invisíveis e completamente fechados.

Frank Pasquale escreveu que essas plataformas são esferas públicas automatizadas (2017). No livro denominado The black box society (2015), Pasquale afirmou que os algoritmos são fechados com a condescendência das sociedades. Os donos das plataformas alegam que os algoritmos não podem ser conhecidos para proteger seus segredos de negócios, a propriedade intelectual e para evitar que sejam driblados pelos usuários. Assim, não sabemos como os algoritmos de uma rede social estão distribuindo os conteúdos publicados. Não sabemos se estão beneficiando mais um tipo de discurso em detrimento de outros. Não sabemos se nossa postagem teve sua visualização reduzida, ou mesmo, se foi bloqueada e que somente será vista por quem a publicou.

Conclusão

Vivemos uma situação insustentável para as democracias. A comunicação passa a ser realizada por mediadores que se apresentam como neutros, mas são propriedade de empresas com interesses políticos, comerciais e nacionais, operadas por algoritmos invisíveis que coletam dados de todas pessoas para esquadrinhá-las e formar seus perfis com a finalidade de modular sua atenção. Além disso, são espaços monetizados, ou seja, os endinheirados podem comprar likes, visualizações, seguidores, ou seja, podem gastar de modo ilimitado recursos para distribuir seus conteúdos. Podem programar robôs ou sistemas automatizados de compartilhamento e replicação de postagens dando a falsa impressão de serem humanos.

Algoritmos invisíveis, códigos fechados, poder ilimitado do Capital, captura de dados dos usuários para aprimorar e testar o que melhor os influencia, são elementos aliados ao mantra neoliberal de que as empresas só querem melhorar nossa experiência e compõem um cenário completamente tóxico para as democracias. A comunicação pública está sendo realizada em terrenos privados controlados algoritmicamente. Nunca foi tão importante a regulação das plataformas pelas sociedades democráticas. Em nenhum outro momento o poder dos grupos privados sobre a comunicação pública foi tão grande.

Sérgio Amadeu da Silveira é professor da Universidade Federal do ABC e bolsista produtividade CNPq-2

Referências

CETIC. Pesquisa TIC Domicílios – 2020. Disponível:

https://cetic.br/pt/tics/domicilios/2020/individuos/

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de janeiro: Contraponto, v. 102, p. 85-102, 1997.

HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Tradução: Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

MARX, Karl. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. Boitempo editorial, 2011.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. São Paulo: Editora Hedra, 2022.

PASQUALE, Frank. The black box society. In: The Black Box Society. Harvard University Press, 2015.

PASQUALE, Frank. “A esfera pública automatizada”. Líbero, n. 39, p. 16-35, 2017.

SILVEIRA, Sergio Amadeu. Democracia e os códigos invisíveis: como os algoritmos estão modulando comportamentos e escolhas políticas. Edições Sesc, 2019.

VAN DIJCK, José. “Datafication, dataism and dataveillance: Big Data between scientific paradigm and ideology”. Surveillance & Society, v. 12, n. 2, p. 197-208, 2014.

WEBER, Max. A politica como vocação / Max Weber; tradução de Mauricio Tragtenberg. Brasilia: Editora Universidade de Brasilia, 2003.

ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Editora Intrínseca, 2021.