Por Marcelo Soares
Um século depois da observação do eclipse total do sol em Sobral, fotografado com imagens ampliadas 231 vezes para testar a teoria da relatividade geral, o mundo celebrou um novo teste feito com as tecnologias de ponta do novo século: imagens de altíssima definição feitas por supertelescópios ao redor do globo e isolando a parte relevante com o uso de inteligência artificial.
O sorriso contagiante da matemática Katie Bouman, 29, se tornou quase tão conhecido quanto a primeira imagem já feita de um buraco negro, com o auxílio de telescópios ao redor do mundo e processada por um algoritmo em cuja criação ela teve papel relevante.
Desde que se tornou mundialmente famosa, foi vítima de outro algoritmo: o que faz recomendações de vídeos no YouTube, facilmente enviesado por conteúdos raivosos. No caso, era um vídeo que minimizava a importância que uma mulher teve na pesquisa. Após receber reclamações, o YouTube modificou os critérios usados nas recomendações referentes ao nome dela e agora os primeiros lugares na busca falam do seu trabalho.
Há três anos, em palestra TED, a jovem doutoranda do MIT apresentou uma primeira versão do projeto que acabaria por revelar a imagem pioneira de um buraco negro.
Ela fala de maneira simples, para que qualquer leigo entenda. Afinal, trata-se de palestras que ficam a meio caminho entre a divulgação científica e o entretenimento – e são vistas no mundo inteiro por muito mais estudantes e curiosos do que cientistas.
Para exemplificar a dificuldade de se fazer aqui da Terra uma imagem de um buraco negro a 50 milhões de anos-luz de distância, ela o compara a enxergar algo do tamanho de uma laranja na superfície da Lua. As melhores imagens atuais da Lua, ela diz, têm definição de um milhão e meio de laranjas por ponto.
Devido a essa mesma distância e às leis da difração, captar uma imagem em definição suficiente exigiria “um telescópio do tamanho da Terra”, algo impossível de criar. Mas, com engenho e arte, seria possível sincronizar imagens de telescópios espalhados pelo planeta e simular um telescópio do tamanho da Terra.
Como estavam testando um conceito que até então só existia no mundo das ideias – a forma de um buraco negro –, eles não podiam procurar nas imagens uma versão predefinida de qual é a “cara” de um horizonte de eventos. “Poderia ser um elefante no centro do universo”, diz ela na palestra.
Na sexta-feira, em palestra na Caltech, o funcionamento do algoritmo já não era mais uma possibilidade teórica. Diversas adaptações precisaram ser feitas à ideia original do projeto. E, agora, ela falava aos seus pares, não apenas a curiosos que aplaudem na plateia de palestras TED. Ainda assim, sua fala é bastante acessível.
Katie fala de como a equipe utilizou o relógio atômico para sincronizar as imagens dos diversos telescópios, permitindo simular um gigantesco. Como as imagens tinham uma resolução muito alta, não podiam ser enviadas online. Os discos físicos eram enviados ao laboratório. Com a sincronização atômica, era possível montar um bom mosaico. Feito isso, como imagens de telescópio a essa distância contêm muito ruído, é preciso isolar o sinal algoritmicamente.
A parte mais importante é a cautela tomada para que a ideia que os pesquisadores tinham sobre qual é a “cara” de um buraco negro não influenciasse o resultado das imagens. As imagens foram obtidas em julho. Em sigilo, a equipe passou dois meses testando-as com diversos algoritmos para ver o que acontecia.
Mesmo que as imagens sugerissem o formato circular que confirmava a teoria de Einstein, ela conta como as imagens foram fragmentadas para testar, via aprendizado de máquina, se o formato era aquele mesmo. O formato se manteve. Eles testaram até treinar o algoritmo para procurar automaticamente a imagem de um boneco de neve (“um buraco negro binário, talvez”, brincou). Ainda assim, se manteve. Testaram treinar o algoritmo com dados falsos, forçando a comparação com um disco e não com um anel. Ainda assim, a imagem se manteve.
Resumindo, a partir da segunda palestra, estes foram os passos do processo cuidadoso que levou à imagem pioneira:
Passo 1: testes com dados sintéticos
A equipe fez diversos testes para simular como é que um buraco negro deveria se parecer a partir das teorias já conhecidas.
Passo 2: reconhecimento às cegas de imagens da galáxia M87
Recebidas as imagens, eles programariam esses parâmetros num algoritmo que os buscaria dentro da imagem, na região onde tudo indicava que houvesse um buraco negro. A programação teria de ter alguma “folga”, para permitir o encontro de um buraco negro que não “parecesse” buraco negro
Passo 3: escolha objetiva de parâmetros
Aqui, foram definidos os melhores critérios para localizar com precisão a imagem adequada
Passo 4: validação
Neste passo, definiu-se como calibrar a imagem para demonstrar a incerteza embutida no modelo, calcular sua consistência e extrair um modelo que permita encontrar novos buracos negros em imagens de altíssima definição. A partir desses parâmetros, é possível calcular o diâmetro do buraco negro e estimar sua massa
Mas atenção para uma das mais importantes incompreensões sobre o que a equipe fez: eles não provaram que Einstein estava certo. (“Mas também não provamos que ele estava errado”, disse Katie, provocando gargalhadas.)
Marcelo Soares é jornalista especializado em análise de dados e fundador da empresa Lagom Data, em São Paulo. Primeiro editor de audiência e dados do jornal Folha de S.Paulo, também lecionou jornalismo de dados nas pós-graduações em jornalismo digital da ESPM e da PUC-RS. É membro do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ) e foi um dos fundadores da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). Escreveu para Los Angeles Times e Wired News e participou da elaboração de projetos que ganharam os prêmios Esso (2006), IRE (2008, 2010 e 2013), CNI (2014), SND (2014), SIP (2014), Petrobrás (2017) e Inep (2018).