Por Moises Velasquez-Manoff
Hambúrgueres e batatas fritas quase mataram nosso microbioma ancestral
[Versão resumida de artigo publicado originalmente na revista Nautilus em 12 de novembro de 2015. Tradução de Amin Simaika. Ilustrações de Katherine Diemert]
Para o microbiologista Justin Sonnenburg, aquele momento que define uma carreira — no caso dele, a descoberta que mudou a trajetória de sua pesquisa, inspirando-o a estudar a forma como a dieta e os micróbios nativos determinam nosso risco de doença — veio de uma aldeia no interior da África.
Um grupo de microbiologistas italianos comparou os micróbios intestinais de jovens camponeses em Burkina Fasso aos micróbios intestinais de crianças em Florença, na Itália. Os camponeses, que subsistiam com uma dieta majoritariamente composta de painço (milhete ou milho-miúdo) e sorgo (ou milho-zaburro), abrigavam uma diversidade microbiana muito mais ampla do que os florentinos, que ingeriam uma variante da chamada dieta ocidental. Enquanto a comunidade microbiana florentina estava adaptada a proteína, gorduras e açúcares simples, o microbioma do burquinense estava orientado para degradação de carboidratos complexos de plantas, que chamamos de fibras.
Os cientistas suspeitam que nossa comunidade intestinal de micróbios, a microbiota humana, calibra nossa função imunológica e metabólica, e que sua corrupção ou diminuição pode aumentar o risco de doenças crônicas, da asma à obesidade. Poderíamos pensar que, se evoluímos em conjunto com nossos micróbios, estes seriam mais ou menos os mesmos em humanos saudáveis em todos os lugares. Mas não é isso que os cientistas observaram.
“Essa foi a composição mais diferente de microbiota humana que jamais havíamos visto”, diz Sonnenburg. Para ele, isso carregava uma mensagem profunda: o microbioma ocidental, a comunidade de micróbios que os cientistas consideravam como “normal” e “saudável”, aquela que usavam como linha de base contra a qual comparar microbiomas “doentes”, poderia ser consideravelmente diferente da comunidade que prevaleceu durante a maior parte da evolução humana.
Então Sonnenburg se perguntou: Se o microbioma de Burkina Fasso representasse um tipo de estado ancestral para os humanos — o Neolítico, em particular, ou agricultura de subsistência — e se a transição entre aquele estado e o da Florença moderna representasse uma viagem de uma existência agrícola para uma vida urbana do século XXI, então em que ponto do caminho os florentinos haviam perdido todos aqueles micróbios?
Quando o estudo do Burkina Faso foi publicado em 2010, a questão de quais micróbios específicos melhoravam a saúde humana permanecia desesperadoramente indefinida, mas as evidências estavam começando a sugerir que a própria diversidade era importante. Então, apesar de sua pobreza material relativa, esses aldeães pareciam ricos de uma forma que a ciência estava apenas começando a apreciar.
De onde vinha aquela diversidade? Os seres humanos não conseguem digerir fibras solúveis. Assim, recorremos aos micróbios para desmontá-las para nós, encharcando seus metabólitos. A microbiota de Burkina Fasso produzia aproximadamente o dobro desses subprodutos da fermentação, chamados de ácidos graxos de cadeia dupla, em comparação aos florentinos. Isso deu uma forte indicação de que a fibra, a matéria-prima fermentada unicamente por micróbios, de alguma forma estava aumentando a diversidade microbiana nos africanos.
Na realidade, quando Sonnenburg alimentou ratos com muita fibra, os micróbios especializados em quebrá-la floresceram e o ecossistema se tornou mais diverso em geral. Quando ele colocou os ratos em uma dieta à “moda ocidental”, pobre em fibras e açucarada, a diversidade despencou. (Os ratos, com fome de fibras, também se mostraram mais irritadiços e mais difíceis de lidar.) Porém as perdas não foram permanentes. Mesmo depois de semanas nessa dieta semelhante a junk food, a diversidade microbiana do animal se recuperava na maior parte se ele voltasse a consumir fibra.
Nossas comunidades microbianas poderiam voltar a se diversificar se simplesmente comêssemos mais grãos integrais, verduras e legumes. Mas os Sonnenburgs [Erica, esposa de Justin, também é microbiologista] observaram o que aconteceu quando ratas prenhas foram colocadas em uma dieta sem fibra: as diminuições temporárias se tornaram perdas permanentes. A “dieta ocidental” havia provocado extinções microbianas.
Ao atravessarmos o canal vaginal ao nascer, somos banhados nos micróbios de nossas mães, um tipo de cultura inicial para nossa própria comunidade. Neste caso, no entanto, os filhotes nascidos de ratas seguindo dietas sem fibras e com muito açúcar não adquiriram o pacote completo de micróbios maternos. Grupos inteiros de bactérias se perderam durante a transmissão. Quando Sonnenburg colocou esses ratos de segunda geração em uma dieta rica em fibras, seus micróbios não se recuperaram. Os ratos não conseguiram tornar a desenvolver o que nunca haviam herdado. E quando esses animais de segunda geração passaram para uma dieta sem fibras, por sua vez, suas crias herdaram ainda menos micróbios. As extinções microbianas se agravaram de geração para geração.
Muitos dos cientistas que estudam o microbioma suspeitam que estamos experimentando um espasmo interno de extinção em paralelo com a crise de extinção que está estrangulando o planeta. Numerosos fatores estão envolvidos nesses desaparecimentos. Os antibióticos, disponíveis depois da Segunda Guerra Mundial, podem funcionar como o napalm, achatando indiscriminadamente nossos ecossistemas. As comodidades modernas de saneamento, iniciadas no fim do século XIX, podem limitar o compartilhamento de micróbios que promovem igualmente doenças e saúde. As casas nas cidades de hoje nos isolam de muitos dos micróbios do solo, das plantas e de animais que se precipitaram sobre nós durante nossa evolução, possivelmente limitando uma importante fonte de novidade.
Mas o que o experimento dos Sonnenburgs sugere é que, por deixar de nutrir adequadamente os micróbios-chave, a dieta ocidental também pode estar matando-os de fome e eliminando sua existência. Chamam essa ideia de “matar de fome o ego microbiano”. Eles suspeitam que essas extinções geradas pela dieta possam ter alimentado, ao menos parcialmente, o recente aumento de doenças não transmissíveis. A questão que eles e muitos outros estão fazendo é esta: Como era o microbioma de nossos antepassados antes de ter sido alterado por saneamento, antibióticos e junk food? Como funcionava aquela coleção primitiva de micróbios humanos? E de algum modo era mais saudável que a que abrigamos hoje?
O Projeto do Microbioma Humano do Instituto Nacional de Saúde, cuja primeira fase terminou em 2012, foi anunciado como um “roteiro” de micróbios humanos. Porém, segundo Maria Gloria Dominguez-Bello, microbiologista da Universidade de Nova York que estuda comunidades ameríndias remotas, o esforço é “realmente o projeto do microbioma americano; não é o projeto de microbioma humano.”
Dessa forma, um esforço notável e um tanto quixotesco teve início para catalogar e, possivelmente, preservar, antes de desaparecerem, os micróbios de pessoas que moram em ambientes que relembram o passado da humanidade — pessoas cujos microbiomas podem se aproximar de um estado ancestral. Os pesquisadores estão descendo de barco a motor os rios na Amazônia, dirigindo off-road na savana da África Ocidental, fazendo caminhada até as aldeias nas montanhas de Papua-Nova Guiné. Eles estão se apressando para catalogar um ecossistema que pode desaparecer em breve.
“É realmente nossa última chance de recolher muitos desses micróbios de todo o mundo”, diz Rob Knight, microbiologista da Universidade da Califórnia em San Diego. “Precisamos fazer isso antes que seja tarde demais — e já está quase muito tarde.”.
Ele e outros cientistas suspeitam que essas populações não manterão seus costumes tradicionais muito mais tempo. Os antibióticos, que se acredita que reduzem os micróbios, já são utilizados com frequência em algumas comunidades. E, à medida que a modernização e a aculturação progridem — à medida que esses povos vão rumo à realidade saneada, fechada dentro de casa, com dieta de junk food, que caracteriza muito a vida em nações desenvolvidas hoje em dia — alguns micróbios humanos, ou talvez certas configurações desses micróbios, podem se perder para sempre.
Por enquanto, os cientistas são cuidadosos ao caracterizar a busca como puramente descritiva; eles querem saber como esses microbiomas humanos afetam nossos corpos. No entanto, talvez esteja envolvido um tipo de arca microbiana, uma câmara de armazenamento para micróbios humanos potencialmente em risco de extinção. Martin Blaser, microbiologista na Universidade de Nova York e marido de Maria Gloria Dominguez-Bello, argumenta que, como as pessoas ocidentalizadas podem ter perdido micróbios importantes, precisaremos nos repovoar com micróbios provenientes de populações com vida mais tradicional — por exemplo, de ameríndios da Amazônia ou caçadores-coletores africanos.
Com certeza isso está muito distante. Ninguém entende muito sobre a espantosa variedade documentada até agora — quais micróbios são bons, quais são prejudiciais, quais são irrelevantes. Porém, uma constante é que as pessoas que vivem estilos de vida de subsistência têm tremenda diversidade em comparação às populações ocidentalizadas — até 50% mais espécies que os norte-americanos ou europeus. Isso inclui não somente bactérias, mas também eucariotas — protistas de uma única célula e grandes vermes multicelulares. Esses organismos, que com frequência estão ausentes no Ocidente, historicamente têm sido considerados patógenos. Mas agora há evidências que sugerem que podem moldar favoravelmente o microbioma, beneficiando o hospedeiro.
A outra constante refere-se à dieta e às fibras solúveis que Sonnenburg estuda. Enquanto os micróbios norte-americanos se orientam para degradar gordura, açúcares simples e proteínas, os micróbios de comunidades de subsistência estudados até agora são voltados para fermentar fibras.
A maioria dos participantes do estudo vive nos trópicos; suas comunidades microbianas podem refletir ambientes tropicais, não um estado humano ancestral. No entanto, mesmo microbiomas “extintos” de latitudes mais altas — incluindo de uma múmia europeia congelada — são configurados de maneira semelhante para quebrar fibra vegetal, o que aumenta a sensação de que o microbioma ocidental divergiu do que provavelmente prevaleceu durante a evolução humana.
Os Sonnenburgs acham que a fibra é tão importante que lhe deram uma nova designação: carboidratos acessíveis por microbiota, ou MACs (do inglês microbiota-accessible carbohydrates). Eles acreditam que o desajuste entre o microbioma ocidentalizado, sem MAC, e o genoma humano podem predispor a doenças ocidentais.
Os cientistas que estudam essas comunidades suspeitam que embora a mortalidade por doenças infecciosas seja alta, as doenças crônicas, não transmissíveis, são muito menos prevalentes. Ao mesmo tempo, desde o final do século XX os pesquisadores observaram repetidamente que, mesmo no Ocidente, as pessoas que crescem em fazendas com gado ou expostas a certas infecções fecais-orais, como a hepatite A e vários parasitas — ambientes que, em seu enriquecimento microbiano relativo se parecem com essas comunidades de subsistência — têm risco menor de certas enfermidades ocidentais, particularmente febre do feno, asma e certos distúrbios autoimunes.
Ninguém quer trazer de volta os assassinos de outrora. Mas a suspeita — e a esperança — é que os micróbios benéficos possam ser separados dos perigosos e que os “bons” possam ser recuperados. Ou talvez possamos simplesmente tratar melhor a comunidade que já abrigamos alimentando-a de forma mais saudável.
O Departamento de Agricultura dos EUA recomenda entre 25 e 38 gramas de fibra por dia para adultos; a maioria dos norte-americanos consome substancialmente menos alimentos ricos em fibra, incluindo nozes, grãos integrais, certas frutas e vegetais. Essa diretriz provém, em parte, da pesquisa de um físico nascido na Irlanda chamado Denis Burkitt. Enquanto trabalhava em Uganda na década de 1960, Burkitt se convenceu que a dieta africana rica em fibra explicava a relativa ausência de câncer colorretal nos africanos.
Entretanto, o problema da hipótese das fibras sempre foi ambivalente. As pessoas que ingerem muita fibra parecem ter menor risco de muitas doenças, incluindo doença coronária e diabetes. Mas quando os cientistas deram fibra aos voluntários, historicamente eles não observaram muito benefício. E isso ressalta o real mistério: Através de qual mecanismo a fibra melhora a saúde?
Fibra solúvel é um termo guarda-chuva para açúcares vegetais complexos — incluindo alguns polissacarídeos, oligossacarídeos e frutanos. As moléculas consistem de açúcares simples ligados entre si em longas cadeias difíceis de desmontar. Se você despejar uma carga de fibra — ou carboidratos acessíveis por microbiota — em uma comunidade colônica de micróbios, os que se especializam em fermentá-la irão florescer. E vão começar a produzir ácidos graxos de cadeia curta, incluindo butirato, cujo odor se pode reconhecer em queijo envelhecido, e acetato, que dá ao vinagre a sua acidez.
Esses ácidos, pensa Sonnenburg, são um dos mecanismos há muito tempo procurados através dos quais as fibras previnem doenças. Estudos com roedores sugerem que elas se difundem na circulação, estimulam o braço anti-inflamatório do sistema imunológico — células que ajudam as pessoas a não combaterem o pólen das árvores e outras proteínas inofensivas — prevenindo alergias e outras doenças inflamatórias. O efeito calmante chega até a medula óssea e os pulmões, onde, como mostrou um estudo recente da revista Nature Medicine, os ácidos reduziram a vulnerabilidade dos animais à asma.
Como explica Justin Sonnenburg: “Temos esta fábrica não supervisionada de medicamentos em nosso intestino”. A questão que os microbiologistas enfrentam hoje é como cuidar dessa fábrica.
Aqui, estudos com populações que vivem estilos de vida mais tradicionais podem oferecer pistas. No passado, a maioria das pessoas provavelmente ingeria muito mais fibra do que hoje. Se as pessoas comem vegetais minimamente processados, que os seres humanos têm há milhões de anos, é impossível não ingerir fibra. Os modernos caçadores-coletores e os horticultores certamente ingerem muita fibra. O povo hadza, da Tanzânia, por exemplo, consome – ingerindo tubérculos, frutos do baobá e silvestres – pelo menos dez vezes mais fibra do que os norte-americanos. Os agricultores, como os burquinenses, também comem mais fibra do que as populações ocidentais, em papas e pães feitos de grãos não refinados.
Considerando-se esse suprimento constante de carboidratos acessíveis por microbiota, os microbiomas humanos do passado, argumentam os Sonnenburgs, provavelmente produziam uma abundância desses ácidos graxos de cadeia curta. Isso provavelmente mudou um pouco com a transição para a agricultura, que tornou as dietas menos variadas. Mas uma mudança ainda mais drástica ocorreu recentemente, com o advento e adoção generalizada de alimentos refinados. Como resultado, as populações ocidentalizadas, acreditam os Sonnenburgs, perderam micróbios saudáveis fermentadores de fibra. E sofremos de um tipo de deficiência de subprodutos da fermentação.
Então por que não podemos suplementar nossa dieta com ácidos graxos de cadeia curta? Segundo Sonnenburg, o ecossistema que produz os ácidos pode ser tão importante quanto os próprios ácidos. Ele mostra duas imagens de seções transversais de pelotas fecais ainda nos intestinos de ratos. A maioria das análises de microbioma faz registro, através de marcadores genéticos, de quais micróbios estão presentes e em que abundância. Isso é igual a imaginar como se parece uma floresta a partir de uma pilha de cavacos de madeira, e não dá muita ideia de como a floresta se organizou. Mas, através de uma ideia engenhosa, um dos pós-graduados de Sonnenburg havia desenvolvido uma maneira de congelar o ecossistema no local para depois fotografá-lo.
O quadro resultante foi diferente de qualquer interpretação do microbioma. Um animal havia ingerido muita fibra e o outro não. No ecossistema alimentado por fibra, as bactérias semelhantes se agruparam umas às outras, como os cardumes de peixes em um ecossistema de corais. Uma estrutura ondulante prevalecia atravessando o espaço. Porém, na dieta sem fibra, não somente a diversidade se reduziu: os micróbios se distribuíam uniformemente como um cozido que ferveu tempo demais.
Em um lado de ambas as imagens, na maior parte, os micróbios estavam ausentes — a camada de muco no revestimento do intestino. Mas essa camada era duas vezes mais espessa nos ratos alimentados com fibra do que nos alimentados sem fibra. Essa diferença chegava a aproximadamente 30 nanômetros, muito menos do que a largura de um fio de cabelo. Mas um dia poderemos olhar para trás e balançar a cabeça ao descobrir que as doenças ocidentais — desde diabetes até câncer colorretal — se originavam de 30 nanômetros de muco que, em algum ponto do tempo, desapareceu no mundo desenvolvido.
Pensamos na dieta ocidental — com muitas gorduras não saudáveis, açúcar e proteínas — como excessivamente rica. Mas o que falta na dieta talvez possa ser tão importante, ou talvez mais importante do que o que é abundante.
Há muitos anos, enquanto ainda estava na pós-graduação, Sonnenburg descobriu que ocorria algo muito estranho quando aqueles micróbios que adoram MAC ficavam com fome. Eles começavam a comer muco.
Nós precisamos daquele muco. Ele mantém uma distância necessária entre nós e nossos micróbios. E à medida que o muco vai se corroendo com uma dieta pobre, o revestimento do intestino fica irritado. Os detritos microbianos começam a vazar e permear. Uma das descobertas mais notáveis dos anos recentes é que é possível ver essa coisa chamada endotoxina aumentar na corrente sanguínea, imediatamente após alimentar uma pessoa com uma refeição fast food cheia de açúcar e gorduras. O sistema imunológico responde como se a pessoa estivesse sendo ameaçada, levando à “inflamação latente” que os Sonnenburgs acreditam que dá origem a tantas doenças ocidentais.
Necessitamos da inflamação para combater infecções ou auxiliar na reparação de tecidos. Mas a inflamação crônica — um sinal de perigo soando indefinidamente — pode levar a todo tipo de disfunção celular, contribuindo para muitas doenças degenerativas.
Espremer calorias de alimento selvagem, fibroso, exigia uma imensidão de micróbios especializados em diferentes tarefas, mas também cada um dependente de seus vizinhos. A dificuldade da tarefa incentivava a cooperação entre os micróbios. Quando a pessoa não consumia a fibra, no entanto, eliminava-se a necessidade dessa cooperação tão próxima. Os arranjos mutuamente benéficos começaram a se desgastar.
Os experimentos de Sonnenburg ajudam a contextualizar o que outros cientistas estão descobrindo em povos que caçam e buscam alimento. Os hadzas, uma das últimas tribos de caçadores-coletores da Terra, vivem perto do Lago Eyasi na Tanzânia, uma região do leste da África que é considerada o local de nascimento de nossa espécie. Uma análise de seus micróbios publicada no ano passado detalhou uma comunidade imensamente diversa, incluindo um número de micróbios desconhecidos dos cientistas.
Os hadzas abrigam uma variedade de bactérias chamadas treponemas, que estão ausentes no mundo desenvolvido. São espiroquetas relacionadas com o patógeno que causa sífilis. Todos os grupos rurais não ocidentalizados estudados até agora, incluído vários grupos ameríndios, também têm treponemas, assim como nossos parentes primatas.
Cecil Lewis, geneticista da Universidade de Oklahoma na cidade de Norman, que estuda os microbiomas de povos nativos, incluindo de populações ameríndias, suspeita que os treponemas possam pertencer a um “microbioma ancestral” — uma comunidade que nos acompanhou desde antes de sermos humanos. Talvez a medicação anti-sífilis os tenha eliminado do Ocidente. Ninguém sabe ao certo o que eles podiam fazer ou o que sua perda poderia significar.
Entretanto os treponemas têm genes que auxiliam a quebrar carboidratos complexos, sugerindo que exercem uma função na fermentação, o que se encaixa com a outra característica notável dos microbiomas dos ameríndios e dos hadzas. Enquanto nós temos apenas umas poucas cepas de bactérias prevotella, por exemplo, os hadzas têm uma variedade caleidoscópica. Mais uma vez, a dieta está envolvida. Quebrar plantas resistentes, selvagens, pode exigir um conjunto diferente de micróbios. O que aconteceu com a diversidade ocidental? É possível que inadvertidamente tenhamos matado essa riqueza, ou nunca a possuímos absolutamente. Mas outra possibilidade, como sugere o experimento de Sonnenburg, é que, por não termos alimentado esses micróbios, nós os perdemos. Nossa variedade ancestral pode ter minguado ao longo do tempo simplesmente devido à nossa dieta pobre em fibra.
Os ratos de Sonnenburg vivem em bolhas de plástico, afastados de novas fontes de micróbios. Os humanos não. Uma questão importante é saber se, caso uma pessoa começasse a comer tubérculos selvagens e frutos do baobá, a complexidade microbiana necessária para fermentar a nova alimentação simplesmente surgiria, provinda do ambiente.
Testes com prebióticos, alimento para as bactérias fermentadoras de fibra, sugerem que se pode aumentar a riqueza microbiana com mais fibra, melhorando a função metabólica. Mas é aqui que está o problema: em estudos na Europa, somente indivíduos que já abrigavam uma diversidade de linha de base se beneficiaram dessas intervenções dietéticas. Os indivíduos cujas comunidades microbianas estavam empobrecidas demais não respondiam ou não conseguiam responder à nova dieta. Perece que não tinham capacidade para isso.
Os Sonnenburgs apontam esses estudos como prova de que precisamos dos micróbios certos — de seus talentos alquímicos exclusivos — para extrair nutrientes da comida. Onde os conseguimos? Nossos genes particulares podem influenciar a formação de nosso microbioma, talvez influenciando nossa propensão a desenvolver doenças ou engordar, ao mudar nossa comunidade microbiana. Porém outro motivo para ter falta de uma bactéria é mais direto: Para começar, pode ser que nunca a tenhamos encontrado.
Esses ambientes em que um compartilhamento relativamente prolífico de micróbios ainda ocorre — creches, estábulos, casas com muitos irmãos ou casas com cães — parecem proteger contra alergias, asma, algumas doenças autoimunes e certos cânceres. Essas observações, com frequência agrupadas sob a rubrica da “hipótese de higiene”, parecem destacar um fenômeno separado da dieta: acesso à variedade microbiana e, possivelmente, a heranças microbianas únicas.
Consideremos a bactéria Helicobacter pylori, de formato espiralado, que habita no estômago. Durante ao menos um século, a H. pylori vem diminuindo no mundo desenvolvido. A maioria de nossos bisavôs provavelmente a tinham; hoje em dia menos de 6% a tem. Diferente dos micróbios que interessam Sonnenburg, a H. pylori não come o que comemos. Ela nos come, a nós que somos seus hospedeiros. E diferentemente dos micróbios que se pensa que provêm dos alimentos, água, solo ou outros animais, a H. pylori só provém de outras pessoas — particularmente, acreditam os cientistas, de nossas mães. Trata-se de um micróbio adaptado aos humanos que é transmitido entre gerações.
A H. pylori é famosa por causar úlceras e câncer gástrico, mas há crescentes evidências que também sugerem que, subvertendo o sistema imunológico para garantir sua própria sobrevivência, a bactéria pode proteger contra asma, obesidade e, possivelmente, outras doenças inflamatórias. Se há um projeto de restauração do ecossistema implícito no estudo da microbiota ancestral, a H. pylori serve como importante contrapartida à ênfase na dieta. Você pode comer toda a fibra que quiser (a menos que sua comida esteja contaminada por fezes), mas nunca voltará a adquirir micróbios como H. pylori. A única forma de restaurar tais micróbios pode ser reintroduzi-los deliberadamente.
Até mesmo essa ideia é complicada. Há alguns anos, Maria Gloria Dominguez-Bello descobriu uma cepa única, ameríndia, de H. pylori em uma tribo isolada da Amazônia, uma bactéria cujos antepassados tinham provavelmente cruzado a ponte terrestre de Bering com os antepassados dos nativos norte-americanos há aproximadamente 15 mil anos. No entanto, a cepa nativa estava desaparecendo. Quando pessoas de diferentes ancestralidades se mesclaram na América do Sul, descobriu Maria Gloria Dominguez-Bello, as cepas importadas venceram as nativas. As cepas africanas e europeias de H. pylori estavam extinguindo as ameríndias.
Por que isso era importante? Podemos nos alimentar melhor com “nossos” micróbios particulares. Um estudo sobre os colombianos no ano passado constatou que quando as pessoas de ancestralidade basicamente nativa americana abrigavam cepas europeias ou africanas de H. pylori, seu risco de câncer gástrico aumentava drasticamente. Os micróbios introduzidos não combinavam com o genótipo nativo. E essa divergência parecia aumentar o risco de malignidade.
“Esse tipo de coisa poderia estar acontecendo com muitos micróbios”, diz Barbara Schneider, bióloga molecular na Universidade Vanderbilt em Nashville, coautora do estudo. “Não há motivo para pensar que a helicobacter seja a única.”
Poderíamos chamar isso de problema da “herança de família”. Alguma fração de nossos micróbios pode estar adaptada exclusivamente às nossas peculiaridades genéticas pessoais — ao nosso ramo particular de família humana. Uma vez perdidos, pode não haver recuperação desses micróbios. O que significa que, já que uma pessoa nasceu e cresceu nos EUA, “suas” helicobacters e treponemas podem ter-se perdido para sempre.
Não muito tempo depois que conversamos, Stephen O’Keefe, um gastroenterologista da Universidade de Pittsburgh, publicou o que pode ser a melhor prova até agora (em humanos) que ampara a hipótese dos Sonnenburgs de carboidratos acessíveis por microbiota.
O’Keefe há tempos está intrigado com o alto risco de câncer colorretal entre os afro-americanos em comparação com os africanos nativos. Assim como Burkitt, 60 anos atrás, também ele suspeitava que uma dieta rica em fibra pudesse explicar a disparidade. Para provar isso, ele colocou 20 sul-africanos em uma dieta com muita gordura e carne — incluindo cachorros-quentes, hambúrgueres e batatas fritas; e colocou 20 afro-americanos em uma dieta “africanizada” com muita fibra, incluindo mingau de milho, feijão e frutas. Em contraste com os estudos anteriores, no entanto, sua equipe visitou os voluntários em casa, preparando suas refeições e supervisionando-os.
Rapidamente ocorreram mudanças: a inflamação do cólon, que aumenta o risco de câncer, diminuiu nos afro-americanos que seguiam a dieta africana, e aumentou nos africanos que seguiam a dieta norte-americana. A produção de subproduto da fermentação, o butirato, que se acreditava que prevenia o câncer colorretal, aumentou nos que ingeriam os alimentos africanos, e diminuiu nos que ingeriam o estilo americano. No microbioma alimentado com pouca fibra, com carne e gordura, O’Keefe observou um “afrouxamento” daquelas comunidades tão próximas, orientadas para a fermentação de fibra. Ele havia feito com humanos o que Sonnenburg havia feito com roedores — perturbou o ecossistema — e para isso gastou apenas duas semanas em uma dieta de tipo americano. Ele também demonstrou que, independentemente dos micróbios que você pode não ter herdado, o que você dá de comer aos micróbios que você tem pode fazer uma grande diferença no modo como se comportam.
Há alguns anos, a família Sonnenburg reformulou sua dieta. Jogaram fora todas as comidas processadas, e começaram a comer muitos legumes, verduras e grãos integrais. Compraram um cão. Justin Sonnenburg começou a moer manualmente seu trigo para fazer pão. Fez uma horta. E quando comparou seus micróbios arquivados de muitos anos antes com os recentes, descobriu que sua diversidade microbiana havia aumentado em 50%. “Essa é uma grande diferença,” ele me contou, “tão grande como as diferenças entre os americanos e os ameríndios.”
Ainda resta a ser observado o que uma análise detalhada revelará sobre essa diversificação — quanto veio do seu cão, do solo, da massa fermentada que ele prepara; quanto poderia estar lá o tempo todo em números deprimidos e floresceu com uma dieta rica em fibra. No entanto, o que ficou claro para os Sonnenburgs foi que, mesmo sem entender totalmente como funciona o microbioma, ainda se pode impulsioná-lo em uma direção mais saudável.
Moises Velesquez-Manoff é jornalista e autor de
An epidemic of absence: A new way of understanding allergies and autoimmune diseases