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Artigo
Tradução intersemiótica, tradução e adaptação
Por Luiz Carneiro
10/07/2012

Adaptações, de uma maneira geral, sempre fizeram sucesso. Não fossem as adaptações, a evolução das espécies não ocorreria. E não teríamos, no plano das linguagens, todo um nicho do cinema hollywoodiano, Guimarães Rosa ou James Joyce. O ser humano não teria dominado o planeta se não fosse sua capacidade de adaptação.

A evolução das espécies, das linguagens e das artes tem parâmetros muito diferentes, mas há também semelhanças em termos de estruturas e processos. Essas semelhanças se dão, principalmente, no campo da tradução. Os códigos genéticos são mantidos, replicados e cambiados via sua transcrição. O trabalho de levar para as telas de cinema uma história em quadrinhos, como Watchmen (Alan Moore e Dave Gibbons), é normalmente chamado de adaptação, e é posicionando a tradução no interstício entre a transcrição genética e a adaptação cinematográfica que se pode, talvez, gerar um ganho de perspectiva de construção estrutural e conceitual que seja precioso para a percepção e para a criação artística.

A transcrição do DNA carrega em si processos de replicação, de manutenção e de transformação que trazem à tona a noção de uma forma-fonte e de uma forma-destino. Uma adaptação cinematográfica também pode ser pensada sob estes paradigmas. A forma-fonte da história em quadrinhos Watchmen foi, na adaptação de Zack Snyder (2009), retrabalhada para as telas justamente pelos mesmos processos de replicação, manutenção e transformação presentes nas transcrições de códigos genéticos.

Tanto leitores casuais quanto o fanzinato mais hagiográfico da história em quadrinhos Watchmen podem, comparando a obra original com o filme, encontrar e catalogar momentos de fidelidade e de não fidelidade da obra destino em relação à obra fonte. O simples trânsito de linguagem existente em uma transposição de uma história em quadrinhos para o cinema já instala uma obrigatoriedade de transformação: basta lembrar o simples fato de que em uma história em quadrinhos não há movimento, enquanto no cinema (“cinemato-grafia”, “escrita do movimento”) o movimento é a nutriz da linguagem.

Nesse sentido, em termos da evolução das espécies, mudanças nas condições ambientais causam mudanças em indivíduos, em grupos e, posteriormente, nas espécies, de forma mais generalizada. Analogamente, mudanças nas condições sociais, culturais, econômicas e tecnológicas causam mudanças nas linguagens. Mais que isso, “causam” muitas vezes as próprias linguagens.

É princípio presente tanto em McLuhan quanto em Henry Jenkins que as diferentes formas de comunicação são fruto de tecnologias e demandas – simbólicas e práticas – de seu tempo, estendendo suas estruturas, conceitos e conteúdos para outros tempos, sobrepondo sua malha cognitiva sobre textos culturais variados.

A cultura é, vista sob esse paradigma, um grande texto em múltiplas camadas. Essas camadas são compostas de linguagens e de suas interações, de suas múltiplas contaminações. Para falar da obra de Alan Moore, Annalisa Di Liddo utiliza a expressão “cross-fertilization”1, ou seja, “fertilização cruzada”. No caso específico de Watchmen, tecnicamente falando, essa fertilização cruzada acontece via tradução intersemiótica. Trata-se de um procedimento de transposição de textos de uma linguagem para outra, que encontra na semiótica de matriz peirceana seu cabedal de suporte.

Muitas vezes, por conta de seus procedimentos complexos, a tradução intersemiótica é “simplificada”, e tratada apenas como “contar a mesma história em uma linguagem diferente”, ou “passar a mesma mensagem em uma linguagem distinta”. Tal engano faz com que a transposição de um filme para uma história em quadrinhos – como é bastante comum nos filmes de heróis – seja vista, sob tal perspectiva, como um “mais do mesmo”: filme e história em quadrinhos são pensados quase como o mesmo objeto. “É a mesma coisa”, diz o senso comum.

Um dos pilares da tradução intersemiótica advoga que, quando se transpõe um texto de uma linguagem para outra, o que se cria é outra mensagem em outra linguagem. A história contada pode ser a mesma em um filme e em uma história em quadrinhos, mas, por conta dos limites de cada uma dessas linguagens, as mensagens não são as mesmas.

No exemplo citado, a história em quadrinhos não é uma repetição do filme. Em sua constituição de linguagem, tem que lidar com o fato de não possuir som e movimento, e isso a torna, mais que outro objeto de linguagem, uma mensagem diferente. Basta lembrar que, na história em quadrinhos, muito provavelmente os sons mais representativos – como os de uma briga entre heróis – serão representados por onomatopeias que não estão presentes no filme, simplesmente porque o cinema não precisa desse recurso.

Dentro desse contexto de pensamento acerca da tradução intersemiótica, as teorias da tradução assomam como teorias de sustentação de seus espectros conceituais e estruturais. Pensar em transposição de uma linguagem para outra e tratar essa transposição como criação de outra mensagem em outra linguagem aproxima-se muito da impossibilidade de se dizer a mesma coisa, na tradução. Traduzir “guardanapo” como “napkin”, “servilleta” ou “tovagliolo” não é dizer a mesma coisa em outras línguas, é constituir outras mensagens em outras linguagens.

Na tradução intersemiótica, quanto maior a diferença entre as linguagens, mais o processo de transposição de signos é marcado pela impossibilidade de se dizer a mesma coisa, e mais ressalta-se a constituição de outra mensagem em outra linguagem. Via a perspectiva da teoria da tradução e via as perspectivas teórico-criativas de Haroldo de Campos, a transcriação e sua radicalização na transluciferação mefistofáustica podem ser instaladas como paradigmas da tradução intersemiótica.

Já que na tradução intersemiótica a passagem de uma linguagem a outra demanda uma reconstrução sígnica, tanto melhor essa reconstrução sígnica é quando pautada por uma orientação de libertação e mesmo de rompimento com o objeto original: para que a tradução intersemiótica realize seu trabalho de transposição, as teorias da tradução podem ser acionadas como teorias de base, capazes de dar sólida sustentação e, ao mesmo tempo, lançar à frente o olhar do tradutor/recriador, para que este e seu trabalho atinjam o patamar de reconstituição criativa, desviando o processo de tradução intersemiótica de uma servilidade que, além de insossa e pouco ousada, é também, na verdade, irrealizável.

No universo biológico, mudança/mutação causa o câmbio de uma forma consolidada para uma forma outra com finalidade distinta, e o universo das linguagens e das artes pode ser pensado, guardadas proporções e contextos, como uma grande Galápagos.

Luiz Carneiro é pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Notas

1 Alan Moore: fiction as scalpel, comics as performance. Annalisa Di Liddo. University Press of Mississipi, 2009.