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Artigo
Percepções sobre resíduos resultantes da atividade humana
Por Marta Pimenta Velloso
10/02/2008

No presente artigo, o lixo é descrito como o resíduo desprezado e temido pelo homem. Ele representa o resto da atividade humana ou a sobra indesejada de um processo de produção, que tanto pode estar associada à eliminação de microorganismos patogênicos veiculados pelos fluidos e dejetos corporais como ao descarte de resíduos atômicos, radioativos e industriais poluentes.

O estudo está dividido em três partes: 1) Narra o episódio da peste negra do século XIV, mostrando como ela foi associada aos resíduos produzidos pelo corpo humano. 2) Descreve as medidas de higiene, a partir do Renascimento e; a saúde pública no início do século XX que começa combatendo os agentes microbianos das doenças infecciosas e os seus vetores. 3) Explicita nos dias de hoje, os riscos vinculados aos resíduos resultantes da atividade humana.

Os resíduos como veículos de impurezas e enfermidades

Na Idade Média, a maioria dos restos resultantes da atividade do homem estava diretamente relacionada aos resíduos produzidos pelo seu corpo - fezes, urina, secreções em geral e o próprio corpo humano em decomposição. Também havia os restos provenientes da alimentação - carcaças de animais, cascas de frutas e hortaliças.

Os restos começaram a causar medo no homem, a partir do momento em que foram sendo associados ao seu sofrimento físico e psíquico. Esse sofrimento ficou bem marcado na ocasião do surto manifestado pelas epidemias e pandemias de algumas doenças na Idade Média, mais precisamente pela peste negra no continente europeu durante o século XIV.

Com a intenção de mostrar, no decurso da história dos restos, o significado da doença no corpo, tomamos a peste como referência na construção do conhecimento sobre os resíduos. A relação entre corpo, doença e resto vão originar as representações sociais sobre enfermidade e resíduo, uma vez que foi se tornando difícil falar de uma sem tocar no outro.

Neste sentido descrever os sintomas e as conseqüências da peste, no medievo, é pensar na produção de resíduos ou na transfiguração do corpo humano em restos repugnantes. A representação dos resíduos foi sendo construída pelo imaginário social, segundo as tragédias causadas pelas epidemias e pandemias de “pestes”.

Na Idade Média, as palavras “praga”, “peste” ou “pestilência”, significavam o surgimento de enfermidade epidêmica, que produzia um alto índice de mortalidade. Nem sempre o termo se referia à peste negra ou bubônica, já que outras epidemias como gripe, tifo, cólera e varíola, contagiosas e letais, também estavam presentes. No entanto, os sintomas da peste bubônica foram descritos detalhadamente. Houve, assim, pestes ou pragas famigeradas que chegaram a ser denominadas com o nome do lugar onde começaram ou onde foram mais graves. A peste do século XIV, chamada de “morte negra” ou “peste negra” foi a mais célebre pela sua mortandade.

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Capa de livro do século XVI, que descreve a
peste negra ou bubônica do século XIV

As “pestes” causavam temor e, no período medievo, muitas vezes foram interpretadas como “castigo divino”. Além dessa crença, os homens também acreditavam que as enfermidades poderiam ser transmitidas pelo ar corrompido – teoria dos miasmas – e já percebiam que o contágio da doença se dava de pessoa a pessoa. Fato que começou a gerar medo na aproximação com o outro, o que poderia propiciar o contato com as secreções eliminadas pelo doente durante o processo da enfermidade, tais como o sangue e o pus provenientes dos bubões, no caso da peste bubônica. O terror causado pela doença está visível, na seguinte descrição do estado do enfermo:

(...) alguns cuspiam sangue, outros tinham no corpo, manchas roxas escuras e destas ninguém escapava. Os doentes tinham apostemas ou estrumas nas ínguas ou debaixo das axilas, e destes alguns escapavam, e temos de dizer que estes enfermos eram muito contagiosos e que quase todos os que cuidavam dos enfermos, morriam, assim como os sacerdotes que recolhiam as confissões (...)

(Ursino, 1541)

As medidas de higiene e a saúde pública

O século XVII foi marcado pelo avanço dos conhecimentos acadêmicos, que descobriram a circulação do sangue, a química da respiração e, através do aperfeiçoamento do microscópio simples, os agentes microbianos causadores de algumas doenças. Apenas por volta de 1880, com as experiências de (Louis) Pasteur, a teoria da geração espontânea é posta de lado (Braga, 2001).

Estas descobertas contribuíram para uma outra visão de cidade, propiciando novas concepções de sujeira corporal e urbana. As cidades começam a ser planejadas, inspiradas na circulação do sangue e nos movimentos da respiração. Elas deviam ser amplas para que o ar circulasse livremente, sendo divididas em ruas principais e secundárias, da mesma forma que as veias e artérias do corpo humano, que transportam hemácias e outros elementos do sangue para os órgãos. Os resíduos como fezes e urina deveriam sair das casas através de um cano parcial, que nas ruas se acoplariam a um cano comum ou principal (rede de esgoto).

Na segunda metade do século XIX, com a emergência da teoria microbiana das doenças, que refutou a concepção dos miasmas, houve uma radical mudança na visão da saúde pública e da atenção a ser dada aos resíduos eliminados pelo corpo humano. As tradicionais concepções de tratamento do lixo passam por visíveis transformações. Neste contexto, a fogueira, anteriormente utilizada para purificar o ar, torna-se a fonte inspiradora do incinerador (construído na Inglaterra, em 1875), que começa a ser considerado como o método ideal para eliminar os agentes microbianos, transmissores das doenças infecciosas. Os trapeiros, mestres na arte da recolha e separação dos restos, vão gerar o modelo das usinas de reciclagem em Bucarest (1895) e em Munchen (1898).

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Separação de resíduos recicláveis em Cooperativa de Catadores de
Materiais Recicláveis na cidade de Porto Alegre/RS

Neste mesmo período, no Brasil, durante o governo Campos Salles (1898-1902), foi criado o Instituto de Manguinhos, com a função de fabricar vacinas contra a peste bubônica. Oswaldo Cruz dirigiu Manguinhos até 1902, quando Rodrigues Alves, ao assumir a presidência da República, foi buscá-lo para sanear o Rio de Janeiro. Ao aceitar o convite, ele prometeu erradicar a febre amarela, num período de três anos. Mas, primeiro, começou resolvendo o problema da peste. Doença de cadeia epidemiológica complexa, envolvendo roedores; carnívoros domésticos (cães e gatos) e silvestres (pequenos marsupiais); pulgas e o homem. Grave enfermidade infecciosa e contagiosa, possuindo como agente etiológico a bactéria Yersinia pestis, que é transmitida ao homem pela picada da pulga infectada, encontrada principalmente nos ratos.

Para combatê-la, foi formado um esquadrão de cinqüenta homens, todos previamente vacinados, que percorriam os armazéns, becos, cortiços e hospedarias, espalhando raticida e removendo o lixo. Para completar, criou um novo cargo – o de comprador de ratos. Este funcionário percorria as ruas da cidade, do centro aos subúrbios, pagando a quantia de trezentos réis por cada rato caçado pela população. Na verdade, as medidas adotadas para eliminar os ratos ou erradicar a peste estão inseridas num contexto de transformações que envolveram a capital do Brasil, no início do século XX. Com a afirmação da teoria microbiana, as medidas de higiene começaram a ser aplicadas no combate aos vetores e aos agentes etiológicos das doenças infecciosas (Historianet, 2001).

O lixo e seus riscos

Os riscos associados aos resíduos foram considerados durante muitas décadas como questão de higiene pública e, portanto, limitados à área médica. Somente a partir da década de 1970, o lixo começa a ser considerado uma questão ambiental. A preservação do meio ambiente foi assumindo caráter global, com as conferências de Estocolmo em 1972, a ECO 92 no Rio de Janeiro e a de Tibilisi, em 1997.

Nos dias de hoje, apesar dos resquícios da vinculação de resíduo à doença, o lixo mais temido é aquele produzido pelo homem, que é capaz de destruir, em escala planetária, a vida humana e a natureza. A contaminação ambiental é evidenciada através das radiações nucleares, substâncias químicas, agentes biológicos e gases poluentes.

Cabe lembrar o caso do físico (Jacob) Bronowski, membro da equipe do Projeto Manhattan, que produziu a bomba atômica, tragicamente utilizada na II Guerra Mundial. Bronowski, na década de 1970, confessou seu desconhecimento e descontentamento pelo fato dos seus estudos de física atômica contribuírem para a fabricação de uma arma de capacidade letal ainda não superada, a ser usada contra o próprio homem.

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Vítima do acidente com o césio 137 em Goiânia
Pintura de Siron Franco

O descuido relacionado ao destino final de resíduos, que causam riscos à população e ao ambiente, é claramente evidenciado no caso da contaminação pelo césio-137, ocorrido na cidade de Goiânia, no Brasil. Um aparelho de césio-137, que se encontrava fora do seu uso em tratamentos médicos, foi descartado num galpão. Dois sucateiros encontraram o aparelho e, não conhecendo sua função e risco, foram seduzidos pelo brilho de um pó branco. Passaram-no pelo corpo como se fosse uma purpurina, disseminando aquela “coisa mortífera” pela cidade. A negligência no descarte do lixo radioativo por parte das autoridades responsáveis conduziu à contaminação, causando danos de repercussão mundial.

Marta Pimenta Velloso é docente no programa de pós-graduação de saúde pública da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz. Contato: marta.velloso@ensp.fiocruz.br


Referências bibliográficas:

URSINO G. Elegia de peste. Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra; 1541. |Catálogo de obras raras| (mimeo)
BRAGA M. I. R. M. D. Assistência, saúde pública e prática médica em Portugal: séculos XV-XIX. Lisboa: Universitária; 2001.
HISTORIANET: a nossa história. Curso de História. Brasil República: caçando ratos. 23 de novembro de 2001. (Acesso em 13/01/2008).

Para saber mais:

VELLOSO, M. P. “Criatividade e resíduos resultantes da atividade humana: da produção do lixo à nomeação do resto”. Tese de doutorado. Departamento de Ciências Sociais da Escola Nacional de Saúde Pública, Fiocruz, Rio de Janeiro; 2004.
VELLOSO, M. P. “Os restos na história: percepções sobre resíduos”. Revista Ciência & Saúde Coletiva. Março de 2007.