Inácio de Paula, Guilherme de Lucca e Paula Gomes
As restrições de contato social impostas pela pandemia e a crise econômica instaurada impactou a produção audiovisual no Brasil e no mundo. Gravações foram adiadas ou pausadas e as salas de cinema foram temporariamente fechadas. Não somente interrompeu o fluxo de lançamento de filmes como também de eventos: mostras, festivais e premiações estão sendo adiados, cancelados ou transmitidos via streaming.
Considerando que a produção audiovisual é uma cadeia produtiva complexa — o processo de realização de um filme desde o roteiro até a sua exibição demora meses ou até mesmo anos — haverá um “apagão” audiovisual nos próximos meses ou em 2021?
Com a pandemia, muitos filmes que estavam na etapa de produção foram pausados, e os que começariam a ser gravados tiveram suas produções adiadas. Algumas iniciativas de retorno às atividades estão sendo noticiadas em países que foram mais bem-sucedidos em controlar o surto da doença. É o caso do próximo filme de Pedro Almodóvar, o curta-metragem The human voice. Aproveitando o fim das medidas restritivas de distanciamento físico da Espanha após a queda nos números de infectados, o filme foi rodado no mês de julho com um esquema de produção diferente, devido aos protocolos de medidas sanitárias. Essas medidas, que estão sendo elaboradas por órgãos do governo ou associações do setor, aumentarão os custos das produções.
“Serão necessários cuidados muito maiores. Os protocolos para a volta da produção também são complexos, e a quantidade de diárias para as filmagens tende a se expandir. Tudo isso deve fazer com que as filmagens se tornem mais longas e, com isso, mais caras”, afirma Arthur Autran, pesquisador e professor de cinema da Universidade Federal de São Carlos.
Grandes produtoras versus filmes independentes
Com o fechamento temporário das salas de cinema em muitos países, lançamentos de filmes de grandes estúdios foram adiados. As soluções encontradas até o momento (exibição por serviços de streaming, cinemas drive-ins) não são plenamente aplicáveis aos blockbusters, que possuem esquemas de distribuição e exibição grandiosos (pré-estreias, campanhas publicitárias, eventos) e lançamentos mundiais.
Essa situação atípica pode, momentaneamente, garantir mais visibilidade a produções independentes e de produtoras menores, que deixam de enfrentar a concorrência assimétrica com as obras de grande orçamento norte-americanas, responsáveis pela ocupação massiva das salas de cinema. André Gatti, pesquisador e professor de cinema da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), cita o exemplo da França, que reabriu recentemente suas salas de cinema e vem obtendo bilheterias expressivas com a exibição de filmes nacionais.
Mas tanto André Gatti quanto Arthur Autran não acreditam que essa situação se manterá. “Em outros momentos históricos em que o mercado sofreu algum tipo de abalo, as majors sofreram um pouco também, porque o mercado está estruturado para elas. Mas como são as “donas do mercado”, a tendência é a de se readequarem à nova situação. Não acredito que a pandemia vá perpetuar ou instaurar uma nova situação de mercado, em que as produções ditas independentes terão um papel maior do que as majors, ou mesmo significativamente mais relevante do que o atual”, afirma Arthur.
E o público?
O streaming, modalidade que permite a transmissão de vídeos pela internet, cresceu cerca de 20% no período de pandemia, principalmente em plataformas de assinatura, como Netflix, Amazon Prime e Globoplay.
Já os cinemas drive-ins, em que o público assiste ao filme de dentro de seu carro, popular nos Estados Unidos nas décadas de 1950 e 1960, e no Brasil na década de 1970, começa a reaparecer em muitas cidades. A edição deste ano da tradicional Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorrerá de 22 de outubro a 4 de novembro, contará com exibição de filmes via streaming e em drive-ins.
Se por um lado o streaming “reduz” barreiras geográficas, disponibilizando conteúdo que antes era exclusivo de mostras e festivais para audiências de qualquer região do país — e do mundo — por outro, requer acesso à internet. Em países como o Brasil esse é o principal obstáculo, já que a infraestrutura tecnológica ainda é deficiente e o acesso restrito a parcela da população com maior poder aquisitivo.
“As plataformas de difusão digital se mostraram como uma válvula de escape, mas ainda é cedo para afirmar que são a grande tábua de salvação, por questões variadas. No caso brasileiro esbarramos no problema da ausência de internet rápida e no alto custo para um trabalhador, já que a tendência é pagar duas assinaturas, uma doméstica e outra para dispositivo móvel”, reforça André Gatti.
Apesar dessas outras modalidades de exibição terem conquistado adeptos em um cenário pandêmico, as salas de cinema não devem perder a relevância tão cedo. “Continuarão tendo importante papel cultural, societário e de mercado por muito tempo ainda. Elas são, vamos dizer assim, “a vitrine” dos produtos com maior apelo comercial. Ou, em outros tipos de sala, “a vitrine” de produtos com maior respeitabilidade artística, seja por prêmios em festivais, seja por menções na crítica”, analisa Arthur Autran.
O pesquisador pontua, ainda, que haverá aumento no preço dos ingressos quando as salas reabrirem, devido aos cuidados com sanitização dos espaços e diminuição dos assentos disponíveis por sessão. No Brasil, a maioria dos cinemas está em redes de shopping centers, em um modelo com múltiplas salas chamado de “multiplex”. O preço nessas salas é considerado alto para boa parte da população. Aumentar o valor poderá interditar essa possibilidade cultural e de lazer para uma parcela maior ainda. “Podemos falar de uma elitização. Isso, infelizmente, eu prevejo”, complementa Arthur.
A situação do Brasil
Em relação ao Brasil, antes da pandemia o setor já enfrentava o congelamento de recursos destinados ao audiovisual e o abandono de instituições importantes para o setor, como a Cinemateca Brasileira, responsável pela preservação e memória do patrimônio audiovisual brasileiro. Sem recursos, a Cinemateca corre, inclusive, risco de incêndio, já que seu acervo contém material altamente inflamável.
A Ancine, autarquia que regulamenta e fomenta o cinema nacional, vem tendo uma atuação considerada controversa por muitos profissionais e pesquisadores do setor. Desde a posse do atual presidente, Jair Bolsonaro, os recursos financeiros de fomento ao setor estão congelados.
Ações tímidas foram tomadas para amenizar a situação, como a lei Aldir Blanc, que prevê uma renda emergencial para artistas e estabelecimentos culturais afetados pela pandemia. Para os pesquisadores, a pandemia só intensificou um processo iniciado no ano passado, no governo de Bolsonaro. “Observamos uma tentativa de aparelhamento da área pelos setores de extrema-direita que apoiam esse governo, com quadros, na maioria das vezes, totalmente despreparados para ocupar um cargo de destaque no âmbito do governo federal. É necessário que a sociedade reaja a essa situação antes que a produção audiovisual independente, por exemplo, chegue a zero, ou antes que a Cinemateca Brasileira, infelizmente, passe pela mesma tragédia do Museu Nacional” alerta Arthur.