Por Márcio Barreto
Representar o tempo com a imagem de uma linha reta na qual um ponto representa o presente entre infinitos outros pontos que se estendem no passado e outros tantos que se prolongam no futuro é inevitável. E imprescindível à inteligência que calcula a ação do corpo no mundo numa sincronia unidimensional. É newtoniano. Mas é também um artifício, que inibe a apreensão da natureza do tempo em sua ação, em sua criatividade, como bem notaram Proust, Bergson e Einstein, entre outros.
A ação inventiva do tempo que subverte aquela imagem pode ser captada pela memória, pela intuição e também através de outros artifícios que a própria inteligência possibilita, como a ciência e o aparato técnico do cinema. Os fotogramas perfilados na película nos remetem à imagem do tempo linear, mas a velocidade da projeção também subverte essa linearidade quando o cinema permite ao espectador a percepção da inventividade do tempo.
Tarkovski definia a essência do trabalho do diretor de um filme como a ação de “esculpir o tempo” (Tarkovski, 1990:72), como aparece na tradução brasileira de seu livro Sculpting in time. A expressão é interessante porque o ato de esculpir pressupõe uma materialidade não encontrada no tempo, essencialmente fluido e fugitivo. “De todas as artes, a que mais enfatiza a presença material, sólida, no espaço, é a escultura. De tudo o que existe, nada é mais incapturável, fisicamente falando, do que o tempo. Escultura e tempo – objeto e não objeto por excelência” (Santos, 1989:111). Tarkovski, no entanto, conforme sugere o título da edição em inglês, esculpe no tempo, acolhendo sua ação transformadora.
A tensão entre o estático e o movente é intrínseca ao cinema, pois o movimento é produzido pela velocidade com que fotografias, imagens sem movimento, são projetadas. Projetadas lentamente, dão ao espectador a sensação de dilatação do tempo; projetadas rapidamente, o movimento parece estar comprimido em relação ao murmúrio de sua vida interior.
Jean Epstein, nos anos 1920, associou o efeito de retardar ou de acelerar a velocidade do projetor a percepções do tempo relativístico.
[...] a qualidade específica do novo mundo projetado é a de colocar em evidência outra perspectiva da matéria, ou seja, a do tempo. A quarta dimensão, que parecia um mistério, torna-se, pelo processo de aceleração ou de retardamento da projeção, uma noção tão banal quanto a de outras coordenadas. O tempo é a quarta dimensão do universo que é espaço-tempo (Epstein, 1974:250).
Apesar da analogia simplista – e ingênua, do ponto de vista estritamente científico –, a aproximação que Epstein elabora entre os efeitos técnicos do cinema e a Teoria da Relatividade realça o intrínseco parentesco entre ciência e cinema: o cinema ampliou o espectro de percepção da realidade de um espectador do início do século XX e as teorias da Relatividade Restrita e Geral preconizaram que esse espectro poderia se estender ao imperceptível, à quarta dimensão do espaço-tempo.
Sonho e cinema também são frequentemente descritos como análogos. Embora o cinema não se restrinja à metáfora da indução onírica, os sonhos também colocam a realidade em xeque. O filósofo tcheco Milic Capek estende as similitudes entre sonho e cinema à ciência, associando a temporalidade dos sonhos à multiplicidade de medidas do tempo previstas pela teoria da Relatividade Restrita.
“Uma pessoa que sonha experimenta um subjetivamente longo intervalo que permanece contemporâneo ao subjetivamente muito mais curto intervalo de uma pessoa acordada, com o normal lapso do seu presente psicológico. Assim, o aparente paradoxo relativístico perde muito de sua misteriosa aparência” (Capek, 1971:249).
O parentesco entre ciência e cinema remonta ao próprio nascimento do cinema. Com a consolidação técnica da fotografia instantânea no final do século XIX, o médico francês Etienne-Jules Marey e o fotógrafo inglês Eadweard Muybridge realizaram experimentos fotográficos sequenciais para fins científicos, os quais abriram caminho para o surgimento do cinema em meados da década de 1890. A perfuração da fita onde as imagens fotográficas equidistantes são perfiladas possibilitou o advento do cinema porque garantiu a projeção das fotografias num fluxo constante. Gilles Deleuze (1983) afirmou que, na ciência, a equidistância teve também um papel fundamental, pois o que possibilitou o desenvolvimento da ciência moderna foi a adoção do tempo como variável independente, na qual todo instante imaginado numa linha reta é equidistante de um anterior e de um subsequente em infinitos intervalos adotados entre o primeiro e o segundo.
O tempo aparece, portanto, como essencial para o cinema e fundamental na constituição da ciência moderna. Ilya Prigogine e Isabelle Stengers, ao defenderem a irreversibilidade intrínseca à seta do tempo, atribuíram à ciência moderna o pressuposto artificial da reversibilidade do tempo. Se, no cinema, a projeção de um filme no sentido inverso ao da filmagem permite a imagem da reversibilidade do tempo, a dinâmica newtoniana “define como matematicamente equivalentes os dois sentidos do fluxo do tempo, pois faz da reversibilidade a propriedade de toda evolução dinâmica” (Prigogine e Stengers, 1984, p.47).
O videoartista c explora a reversibilidade do tempo através de técnicas que subvertem a seta do tempo para o espectador, como em “Tristan’s ascencion” (2005) ou em “The reflecting pool” (1979). Mas Viola, naquilo que diz respeito ao tempo, não se restringe a essa questão: os que se expõem à experiência de assistir aos seus vídeos são tocados por contrações da duração insuspeitadas que trazem à tona percepções metafísicas sobre vida e morte, tempo e instante, repouso e movimento. Não por acaso, provavelmente em referência a Tarkovski, sua exposição em Paris, no Grand Palais, em 2014, teve o título de “Bill Viola, Sculpteur de temps” e, em São Paulo, no Sesc-Paulista, em 2018, de “Visões do tempo”.
Bergson já havia notado o reflexo da racionalidade científica no mecanismo do cinematógrafo. O cinema opera a reconstituição artificial do movimento a partir de imagens imóveis, tal como o fluxo ininterrupto do tempo é artificialmente reconstituído na ciência a partir da sequência infinitesimal de pontos-instantes (t) representados numa reta. O tempo como somatória de infinitos instantes não reconstitui, para Bergson, fluxo do tempo, pois fluxo é movimento e os instantes são fixos. “No que diz respeito ao tempo, a ciência conta os instantes, marca as simultaneidades, mas segue sem apreciar o que se passa durante os intervalos” (Bergson, 1999, p.57). Em A evolução criadora, o capítulo IV é dedicado à analogia entre o mecanismo do cinematógrafo e do conhecimento:
“É porque a fita cinematográfica se desenrola, fazendo com que, uma a uma, as diversas fotografias da cena se sucedam umas às outras, que cada ator desta cena readquire a sua mobilidade: integra todas as suas atitudes sucessivas no movimento invisível da fita cinematográfica. O procedimento consistiu, em suma, em extrair de todos os movimentos próprios a todas as figuras um movimento impessoal, abstrato e simples, o movimento geral, por assim dizer, em colocá-lo no aparelho, e em reconstituir a individualidade de cada movimento particular pela composição deste movimento anônimo com as atitudes pessoais. Este é o artifício do cinematógrafo” (Bergson, 2001: 271).
Podemos dizer que, para Bergson, uma imagem imóvel de um fotograma é análoga a um ponto-instante da ciência, pois ambos estão em contradição com o movente. No entanto, o filósofo italiano Mauro Carbone (2011) sugere que Merleau-Ponty chega a uma conclusão similar à de Bergson, invertendo, porém, as premissas. Em La chair des images, Carbone postula que nossa percepção espontânea não é analítica, mas sintetizadora, e é precisamente por isso que podemos considerá-la de natureza cinematográfica. Com efeito, seu caráter sintetizador está a serviço das dinâmicas essenciais que nos dão a unidade de uma forma percebida, tal como a de uma sequência cinematográfica: longe de serem “artificiais”, como Bergson tende a considerar, elas contribuem com a verdade das nossas percepções.
O cinema não se restringiu a sua vocação para o entretenimento barato. O invento oriundo do uso científico da fotografia arvorou-se pela própria ciência, com o pioneirismo de Jean Painlevé, e também pela arte, pela possibilidade de esculpir no tempo. Bergman, por exemplo, faz do tempo a quarta dimensão do espaço atribuindo aos seus enquadramentos a tessitura de um palco.
Para denominar os momentos fugazes da experiência do espectador de cinema, irracionalizáveis cognitivamente e de descrição impossível pela linguagem verbal, Epstein cunhou, no início da década de 1920, o termo fotogenia: “A fotogenia é para o cinema o que a cor é para a pintura, o volume para a escultura – o elemento específico dessa arte” (Epstein, 1974:145).
A fotogenia, no sentido de Epstein, irrompeu no cinema como a própria escultura no tempo. Tarkovski entalha o tempo para que o elemento específico da arte cinematográfica apareça ao espectador na simpatia entre a consciência de sua própria duração e a temporalidade do filme. Em Solaris, o espectador é levado tão longe na questão do tempo, da memória, da duração, quanto Bergson nos leva pela via da filosofia e Proust pela via da literatura.
Para captar a escultura do tempo no tempo, é preciso estar em sintonia com sua ação de esculpir, para o que o cinema oferece seu potencial de expansão do campo perceptivo do espectador, de “co-moção”, de fotogenia.
Em Além da vida, filme de 2010, Clint Eastwood esculpe no tempo a cena em que Marie – orgulhosa de si própria após apresentar com sucesso seu projeto de livro sobre Mitterrand – olha pela janela do alto escritório em que se reúne com os editores e vê o outdoor no qual ela aparece como celebridade em propaganda de empresa de telefonia móvel. A cena dura dez segundos, nos quais a gaiola de ouro que aprisiona a protagonista aparece ao espectador como virtude, mas ela se estende ao longo do resto da projeção reconfigurando a ilusão inicial em revelação de que ir além da vida é libertar-se, durante a própria vida, das amarras limitantes de virtudes que conferem sentido grandioso à vida.
O transe num encontro de xamãs yanomami é aproximado ao espectador em Xapiri, filme dirido por Laymert Santos, Stella Senra e Bruce Albert, entre outros, e no qual a técnica da cinematografia está a serviço da escultura no tempo. A não linearidade do tempo ritualístico através de técnicas de superposição de imagens abre a possibilidade do transe do espectador, não o mesmo transe dos xamãs, pois, enquanto a técnica xamânica inclui, por exemplo, a inalação do pó de iacoana, o filme alterna luz e sombra, som e silêncio através de técnicas de tratamento digital da imagem para esculpir no tempo uma fotogenia tão irracionalizável quanto a aparição dos espíritos xapiris aos xamãs.
Sonho e realidade, repouso e movimento, tempo matemático e pura duração, tempo absoluto e tempo relativo, ciência e arte: o segundo volume do livro de Gilles Deleuze sobre cinema, A imagem-tempo, traz à tona esses elementos complementares do aparente paradoxo entre o estático e o movente que o cinema apresenta. Deleuze expõe a percepção que o cinema possibilita da ação transformadora do tempo, da escultura no tempo.
Marcio Barreto é licenciado em Ciências e em Matemática pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (1989), mestre em Educação (1995) e doutor em Ciências Sociais (2007) pela Unicamp. Fez pós-doutorado na Université Paris-1 – Sorbonne, sob o tema Cinema e Percepção da Ciência. É professor da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, do programa de pós-graduação do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor-Unicamp) e da pós-graduação interdisciplinar em Ciências Humanas e Sociais Aplicadas da FCA .
Referências bibliográficas
Bergson, Henri. Durée et Simultanéité. Paris: Quadridge/P.U.F., 1999.
_____________. A Evolução Criadora. Lisboa: Edições 70, 2001.
Capek, Milic. Bergson and Modern Physics. Dordrecht: D. Reidel Publishing, 1971.
Carbone, Mauro. La chair des images: Merleau Ponty entre peinture et cinema. Paris: Vrin, 2011.
Deleuze, Gilles. Cinema 2: a imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2005.
Epstein, Jean. Ecrits sur le cinema. 1921 – 1953. Paris: Seghers, 1974.
Prigogine, Ilya. e Stengers, Isabelle. A Nova Aliança. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1984.
Santos, Laymert Garcia dos. Tempo de ensaio. São Paulo, Cia. das Letras. 1989.
Tarkovski, Andrei. Esculpir o tempo. São Paulo, Martins Fontes, 1990.