Por Allison Almeida e André Gobi
O romance Jornada ao Oeste é considerado uma das obras literárias mais importantes da história das artes chinesas. Escrita na segunda metade do século XVI por Wu Cheng’en, a novela épica conta a história de Sun Wukong, um peculiar rei, com poderes mágicos infindáveis, que resolve desafiar os deuses e outros seres folclóricos orientais para se tornar a criatura mais poderosa da terra.
Sun Wukong tem suas ambições estacionadas por Buda, que vence usando a inteligência. Buda sentencia o rei a realizar uma longa peregrinação rumo às desconhecidas e perigosas terras do oeste. O objetivo era fazer que o temível personagem adquirisse conhecimentos, autocontrole e perspicácia para, assim, utilizar a força de maneira adequada.
Mais de quatro séculos após o lançamento, a obra-prima de Wu Cheng’en pode ser encarada como uma metáfora da China atual, um gigante com uma população de um bilhão e trezentos milhões, que, assim como Sun Wukong, faz sua peregrinação, e encontrou nos investimentos em educação, ciência, inovação e tecnologia pilares para uma grande evolução.
De um conturbado passado de conflitos internos, participações em guerras e revoluções sociais, a República Popular da China emerge hoje como um dos principais oásis tecnológicos do mundo. A nação milenar experimentou uma série de transformações a partir da chegada ao poder de Deng Xiaoping, um simpatizante da Revolução Cultural Chinesa, que defendia, entre outras coisas, uma China mais aberta ao ocidente. Ele se tornou vice-primeiro-ministro em 1977, liderou uma série de mudanças para modernizar setores estratégicos como agricultura, comércio, indústria, ciência e tecnologia.
Além das reformas, uma abertura diplomática inseriu a China como um ator importante na economia mundial. “As reformas econômicas iniciadas ao final dos anos 1970 foram decisivas e permitiram ao país ter um papel relevante dentro do cenário internacional. Não só o aumento dos investimentos contribuiu, mas também o processo político mais amplo. Hoje, está plenamente integrado ao regime multilateral de comércio, é um dos membros mais ativos do Conselho de Segurança da ONU e teve atuação fundamental na reforma do sistema de cotas do FMI, que beneficiou países como o Brasil”, explica Renan Holanda Montenegro, pesquisador associado do Instituto de Estudos da Ásia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
O quadro de mudanças fez a China, que tinha números socioeconômicos semelhantes a países emergentes, experimentar, nas últimas 4 décadas, um dos maiores crescimentos da história da economia. Estatísticas fornecidas pelo Banco Mundial revelam que o país cresceu mais de 10%, em média, nos últimos 30 anos.
Deng Xiaoping, que trabalhou como metalúrgico numa fábrica na França durante a juventude, apostava que, para a China ser forte, precisava deixar de ser um país essencialmente agrário e investir em educação. Palavras como ciência, tecnologia e inovação se transformaram num mantra para o gigante asiático, em busca de uma posição de destaque no tabuleiro geostratégico econômico.
“Crescer mais de 10% ao ano em média significa que o país necessita criar um grande aporte de infraestrutura. A China descobriu que ciência, pesquisa, tecnologia e inovação são essenciais para manter os altos índices de investimento, que no país atingem números próximos a 40% do Produto Interno Bruto”, destaca Maria Beatriz Machado Bonacelli, professora titular do Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp.
Na esteira do assustador crescimento do Produto Interno Bruto chinês, outros indicativos sociais vêm melhorando sensivelmente. De acordo com dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da China passou de 0,53 em 1975 para 0,78 em 2015. A população urbana, que representava cerca de 18% do total em 1978, passou a quase 52% em 2012.
A educação se tornou outro pilar do país que, até então, detinha o título de nação com mais analfabetos no mundo. Mais de quatro décadas após as reformas, iniciadas na década de 1970, o país vive outra realidade, com mais de 95% da população alfabetizada.
A jornada atual
Se Deng Xiaoping tinha convicção da necessidade de criar uma cultura de ciência, inovação e tecnologia para fazer o país prosperar, Xi Jinping, o atual líder chinês, que ascendeu ao poder em 2013, projeta elevar a China a outro patamar. Filho de um militante do Partido Comunista expatriado durante a Revolução Cultural, o atual presidente do titã asiático não esconde suas ambições relacionadas às questões de pesquisa e desenvolvimento tecnológico.
No último lançamento do plano quinquenal, a carta de intenções do Partido Comunista à comunidade chinesa, realizado em 2016, Jinping, engenheiro químico de formação, pronunciou a palavra inovação 61 vezes em pouco mais de duas horas, segundo um levantamento da revista Science. No discurso, anunciou a intenção em aumentar gradativamente os investimentos em ciência, pesquisa, inovação e tecnologia, que devem atingir 2,5% do PIB chinês em 2020. Neste mesmo dia, foram apresentadas metas ambiciosas ao mundo: a produção doméstica de motores e aviões de turbinas a gás e um maior foco na neurociência, na pesquisa genética, na segurança nacional do ciberespaço e na corrida espacial. Dispositivos médicos de alta tecnologia e computação em nuvem também ganharam destaque.
“A China aplica atualmente mais de U$ 300 bilhões em pesquisa e desenvolvimento. É mais de dez vezes o que o Brasil investe. O projeto chinês é bastante peculiar, pois é gerido por um staff (controlado pelo governo) que tem a responsabilidade de monitorar e detectar as principais tendências tecnológicas do mercado para definir setores prioritários para estudos prospectivos em diferentes áreas de conhecimento: petróleo e gás, robótica, biotecnologia, energias renováveis, entre outros assuntos. A partir desse rigoroso mapeamento, são geradas metas a longo prazo e lançados editais para estimular a competitividade entre os cientistas e pesquisadores”, explica Bonacelli.
O esforço científico da nação liderada por Jinping também se reflete em questões referentes à inovação. Segundo levantamento da World Intellectual Property Organization, o Escritório Estadual de Propriedade Intelectual da China (SIPO) recebeu o maior número de pedidos de patentes em 2016, um total recorde de 1,3 milhão.
A maior parte das patentes aponta para uma nova obsessão chinesa: o protagonismo em tecnologia de energia renovável. Apenas no último ano, foram investidos U$ 133 bilhões na construção e desenvolvimento de projetos em energia renovável. O dobro da União Europeia, que investiu U$ 57 bilhões no mesmo período. Até 2020, estão previstos mais U$ 360 bilhões em investimento no setor.
“O governo chinês tem se empenhado ao máximo para posicionar o país na dianteira da inovação tecnológica. O carvão ainda é sua principal fonte energética. As consequências para a saúde da população, economia interna e meio ambiente são consideráveis. Para os próximos anos, podemos esperar cada vez mais projetos de tecnologia limpa sendo desenvolvidos. O fato de a China ter um imenso território, com várias potencialidades, permite ao governo trabalhar em empreendimentos que vão desde a construção de um enorme parque solar flutuante até iniciativas que busquem a integração de barragens hidrelétricas com turbinas eólicas e células fotovoltaicas”, aponta Renan Montenegro.
O especialista também indica uma revolução tecnológica que deve ter a China como protagonista dentro de pouco tempo: a utilização em escala industrial de carros elétricos. “O governo estabeleceu que, em menos de dez anos, pelo menos 20% dos carros em circulação no país devem funcionar com combustíveis alternativos. A China não vai medir esforços para se posicionar como a líder e principal incentivadora desse novo mercado mundial”, avalia Montenegro.
Uma forma de ascensão social
“Os acontecimentos relacionados à ciência são percebidos pela população como uma grande oportunidade de ascensão social”, relata Hai Guoqiang, cientista chinês radicado no Brasil há 24 anos. Segundo o professor do Instituto de Física de São Carlos (IFSC-USP), a política relacionada à ciência e tecnologia é encarada pela juventude como uma forma de conquistar um lugar ao sol, numa terra onde a concorrência é uma das mais fortes do planeta, por conta da enorme população. “A China, apesar de ter evoluído bastante, ainda é um país que parte da população é muito pobre. Fazer ciência é uma forma que jovens estão encontrando para superar barreiras sociais, que pareciam intransponíveis a gerações passadas”, diz.
Atualmente o país está na 2° colocação no Index Nature, ranking que afere a quantidade de pesquisas científicas por país. Pequim é o grande exemplo do boom científico. De acordo com um estudo publicado no Journal of Informetrics em 2017, a capital foi o lugar que mais produziu artigos e pesquisas científicas nas últimas três décadas. As universidades de Pequim publicaram ao todo, entre 1985 e 2016, 859 mil artigos. Quase cinco vezes mais do que as universidades de São Paulo, cidade líder da América Latina, que, segundo o mesmo levantamento, publicou 190 mil artigos.
Para nutrir esses ótimos indicadores bibliométricos, a China sustenta um sistema de educação público com boas escolas de ensino médio e universidades. De acordo com índices colhidos no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), prova organizada pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para medir os níveis de educação globais, realizado em 2015, um aluno de Xangai estuda 13 horas por dia, mais que o triplo da média global. “É uma sociedade que não só reconhece, mas admira quem estuda”, sintetiza Guoqiang.
A conclusão da jornada
Ao final dos desafios da jornada às terras do Oeste, Sun Wukong tem uma espécie de redenção e se transforma num ser iluminado, um Buda. Fora da literatura, a atual jornada chinesa parece estar longe de acabar. Apesar da melhoria de vida da população, devido ao crescimento econômico, a China, sob os olhares do ocidente, ainda convive com questões abertas referentes a direitos humanos e democracia.
Em relação à ciência, embora o crescimento da produção seja cristalino, ainda há dúvidas da comunidade científica internacional. “Existem algumas lacunas de informação sobre o real estado e a qualidade da produção científica chinesa, pois há uma espécie de caixa-preta referente à prestação de contas à sociedade quanto à tomada de decisão em relação aos investimentos em ciência, tecnologia e inovação – a chamada accountability – e quesitos que dizem respeito a padrões internacionais de ética científica”, esclarece Maria Beatriz Bonacelli.
Para Hai Guoqiang, o país asiático ainda tem um longo caminho a traçar. “A China precisa melhorar principalmente no setor destinado a pós-graduação. Há áreas científicas com excelentes resultados, mas há algumas que está atrás de Estados Unidos e Europa. Ciência é um projeto a longo prazo”, finaliza.