Por Peter Schulz
Esse pequeno ensaio propõe uma costura, incompleta e imperfeita, de ideias que talvez aticem algum debate sobre essa questão, que é cíclica desde o fim da última guerra mundial: ora a ciência é atacada e se manifesta, ora a ciência é deixada em paz e se cala. Esse pêndulo encerra uma importante ambiguidade.
A discussão sobre a relação entre ciência e democracia sempre ganha importância quando ambas estão em crise. Dentro das fronteiras da ciência um senso comum se estabelece: ciência e democracia andam de mãos dadas e não faltam exemplos em que ataques às duas se correlacionam. Sejam exemplos históricos, como os hediondos ataques ao conhecimento e seus promotores na Alemanha nazista, a perseguição a cientistas durante a ditadura civil-militar no Brasil; ou os contemporâneos, também no nosso país: notícias quase diárias de ataques à ciência pela extrema-direita que se instalou no poder.
Por outro lado, esse senso comum carrega ambiguidades. A comunidade científica acostumou-se a (e naturalizou a ideia de) ver a si própria através de indicadores de produção científica. Nesse sentido, como lidar com os dados desses indicadores, que colocam a China – que não é propriamente uma democracia – como maior produtora de artigos científicos da atualidade? Sem falar no notável crescimento dessa produção em outros países, como o Irã e a Arábia Saudita. Essa ambiguidade reside, possivelmente, na junção de sensos comuns compartilhados pela comunidade científica e uma visão reducionista sobre a ciência e seu papel na sociedade, como a percepção mencionada sobre a disputa por indicadores, uma espécie de bolsa de valores para os produtos dos conhecimentos científicos[i].
Esse pequeno ensaio propõe uma costura, incompleta e imperfeita, de ideias que talvez aticem algum debate sobre essa questão, que é cíclica desde o fim da última guerra mundial: ora a ciência é atacada e se manifesta, ora a ciência é deixada em paz e se cala. Esse pêndulo também encerra uma importante ambiguidade.
Dois exemplos já longínquos podem ilustrar esse movimento, suas motivações e sensos comuns, que muitas vezes não funcionam. Para, no entanto, realizar a costura proposta, lembrando sua incompletude, é necessário um primeiro passo atrás, substituindo as noções vagas de ciência e comunidade científica por uma outra, talvez mais útil: o conceito de campo científico.
O conceito de campo científico foi introduzido pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu no livro Os usos sociais da ciência – Por uma sociologia clínica do campo científico[ii]. O sociólogo se pergunta se “é possível fazer uma ciência da ciência, uma ciência social da produção da ciência, capaz de descrever e de orientar os usos sociais da ciência?” Uma resposta, pelo menos parcial, a essa pergunta permitiria que as comunidades científicas e suas instituições empreendessem uma reflexão coletiva sobre si próprias. Para isso ele concebe a ideia de campo científico: “o universo no qual estão inseridos os agentes e as instituições que produzem, reproduzem ou difundem a ciência. Esse universo é um mundo social como os outros, mas que obedece a leis sociais mais ou menos específicas”.
O campo científico é mais ou menos autônomo em relação aos outros campos (econômico, político, social). Esse campo subdivide-se em outros territórios, os das diferentes disciplinas, cada uma com condições específicas próprias e “regras de jogo” internas. Portanto, é um universo político, não necessariamente democrático, mas a democracia se impõe como centralidade na relação com os outros campos mencionados, tanto na produção, quanto na reprodução e difusão da ciência. Essa breve descrição já é útil para perceber a autonomia, as resistências, as pressões e os conflitos, internos e externos, sendo esses últimos o foco do presente texto: a relação entre ciência e “seus outros”, nas palavras de Bernadette Bensaude-Vincent, filósofa e historiadora francesa, que junto ao sociólogo português Boaventura de Souza Santos, comporão mais abaixo o alinhavo iniciado com as ideias de Bourdieu.
Para que a discussão avance, temos, emulando a ciência, um pequeno arcabouço teórico, mas precisamos de exemplos, como mencionei. Introduzo para isso, um ensaio de Herbert Bailey Jr., da Editora Universitária de Princeton, publicado em uma revista de divulgação científica em 1947[iii]. O título do ensaio, “As editoras universitárias e a popularização da ciência”, já diz a que veio: como as editoras poderiam estabelecer relações entre o campo científico e os outros campos, ou, em outras palavras, construir relações entre a ciência e “seus outros”. As considerações e as propostas sobre papel das editoras continuam interessantes, mas são precedidas das justificativas da “responsabilidade do cientista em explicar suas atividades para a sociedade”.
O leitor pode ir à fonte, pois aqui me limitarei a duas delas, relevantes para este texto. Uma justificativa se baseia na importância da ciência para o iluminismo da sociedade.
“Bruxaria, alquimia, astrologia e criacionismo foram mortos pela ciência. Que outras falsas crenças a ciência pode atacar agora? Eu considero que um dos mais graves problemas, que é diretamente vulnerável ao ataque do conhecimento científico atual é o preconceito racial”. Segue o texto argumentando que se um hábil comunicador da ciência “abordasse a teoria da evolução e a genética para o público, o racismo rapidamente morreria”. Ou seja, a ciência conseguiria derrotar as ideias não científicas. Constatamos que, apesar dos esforços, o racismo não desapareceu, nem o criacionismo ou a astrologia, mais de 70 anos depois. Bernadette Bensaude-Vincent adverte assertivamente, já neste século, que o crescente entendimento público de ciência não gera automaticamente atitudes mais favoráveis em relação à ciência ou ao que ela defende[iv]. Falta alguma coisa ainda, o engajamento, que ainda mencionarei mais abaixo. Mas o que Bailey Jr. propunha em 1947 segue como senso comum de grande parte do campo científico, em que pese todo o conhecimento gerado sobre a necessidade de superar essa visão por uma relação participativa entre público e ciência.
Uma outra razão, apresentada no ensaio pós-guerra, refere-se à importância da popularização/relação da ciência com o público “para o bem da ciência em si”. Era uma época de indefinições sobre o financiamento da ciência nos EUA naquele pós-guerra, debate que durou cinco anos, até a criação da National Science Foundation (NSF) em 1951. Se a primeira razão ilustra o arraigamento de um senso comum que não funciona, essa outra mostra uma posição de “ciência em nome da ciência”, que aos poucos, décadas depois, começa a ser deslocada para “novas práticas de interação ‘em nome da democracia’”. Interações de dois tipos, tanto aquelas em que “os outros” são incluídos na discussão sobre os projetos de pesquisa e seus impactos sociais, quanto aquelas em que o público pode ser coprodutor de conhecimento[v].
Em sintonia com essas ideias, Boaventura de Souza Santos observa a necessidade de uma desdogmatização[vi] do campo científico nessas relações com seus outros e a necessidade de aproximação no diálogo entre o discurso científico e os discursos de outros saberes (sem que as condições objetivas de rigor e métodos científicos sejam relaxados). Uma tese importante do sociólogo português é a necessidade de ruptura com o senso comum para se fazer ciência. Essa ruptura também é necessária por parte do campo científico em relação a ele mesmo. Um detalhe não menos relevante é que continua tênue a influência do conhecimento científico, assim construído, sobre o senso comum com o qual rompeu. Uma segunda ruptura seria necessária para que, agora, o conhecimento científico também modifique o senso comum.
Essas ideias de alguma forma aparecem misturadas no contexto da pandemia que parece termos, pelo menos por enquanto, superado. A ciência, ao mesmo tempo em que falava em seu nome para enfrentar os ataques sobre suas instituições, falava também em nome da democracia, mobilizando-se para o bem do público. A mobilização deu-se tanto na pesquisa em si quanto nas divulgações para o melhor entendimento da ciência como instrumento de orientação em favor da saúde da população. Essa divulgação caracterizou-se por um provavelmente inédito engajamento da comunidade científica em diferentes formas de atuação. Não podemos perder a chance de profunda reflexão sobre nossa época, pois ciência e democracia estão em jogo e nem sempre escolhemos as melhores cartas.
Peter Alexander Bleinroth Schulz foi professor do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em física e cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010). Foi secretário de comunicação da Unicamp.
[i] https://blogdaboitempo.com.br/2022/09/19/sobre-rankings-universitarios-e-sua-divulgacao-acritica/
[ii] https://nepegeo.paginas.ufsc.br/files/2018/06/BOURDIEU-Pierre.-Os-usos-sociais-da-ci%C3%AAncia.pdf
[iii] https://www.jstor.org/stable/19111
[iv] A historical perspective on Science and its “others”: https://www.jstor.org/stable/pdf/10.1086/599547.pdf
[v] https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/participacao-cientifica-de-onde-viemos-o-que-somos-para-onde-vamos
[vi] http://www.boaventuradesousasantos.pt/pages/pt/livros/introducao-a-uma-ciencia-pos-moderna.php
Leia também:
Universidade pública, ciência, democracia e sua reconstrução, de Soraya Smaili