Cidade e infância: uma perspectiva de direitos

Rhaisa Pael

No aeroporto o menino perguntou:
-E se o avião tropicar num passarinho?
O pai ficou torto e não respondeu.
O menino perguntou de novo:
-E se o avião tropicar num passarinho triste?
A mãe teve ternuras e pensou:
Será que os absurdos não são as maiores
 virtudes da poesia?
Será que os despropósitos não são mais
carregados de poesia do que o bom senso?
Ao sair do sufoco o pai refletiu:
Com certeza, a liberdade e a poesia
a gente aprende com as crianças.
E ficou sendo.
Manoel de Barros

No poema Exercício de ser criança, Manoel de Barros valoriza a curiosidade e a capacidade de imaginar outras possibilidades que a criança apresenta, e se opõe ao paradigma de valorização do vir a ser que paira sobre a infância desde Platão (Kohan, 2003). Nele, as crianças serão cidadãos no futuro, e no presente são apenas ausências, não falam articuladamente, não possuem uma estatura grande, não têm conhecimento formal etc, portanto, menos importantes que os adultos.

Decorrente da concepção de que as crianças são seres menores e vulneráveis, os adultos destinaram espaços tidos como ideais para a infância, o espaço privado da casa, onde elas devem ser guardadas dos perigos da rua; espaços públicos como a escola, para aprender e conviver com seus pares; o parquinho para brincarem, dentre outros. Para além do cerceamento espacial, os espaços destinados às crianças na cidade são, em sua grande maioria, projetados pelos adultos a partir de uma perspectiva desenvolvimentista em torno das “competências das crianças” e sua “segurança”: os parquinhos de norte a sul do país, por exemplo, possuem os mesmos brinquedos e são circundados por uma cerca. Lembramos que o espaço não apenas acomoda as pessoas, mas também reflete e produz efeitos sociais, econômicos e relações políticas.

Diante das delimitações e determinações dos espaços, a cidade fica cingida, e o grupo mais afetado por essas restrições é o das crianças que, na contemporaneidade, experimentam a cidade de maneira cada vez mais limitada. Elas estão o tempo todo sendo transportadas de um espaço a outro para desenvolver atividades específicas, sem pausas, sem fruição e, assim, perdem a oportunidade de vivenciar a cidade e conviver coletivamente com a diversidade de seus habitantes.

A pandemia de covid-19 agravou ainda mais a situação, limitando a circulação e apropriação da cidade pelas crianças. Milhões de meninas e meninos foram afastados das instituições educativas que frequentavam, apartadas de sua professora e amigos. Sem ir à escola e com seus responsáveis desempregados ou ocupados no home office, a disponibilidade dos adultos em sair para passeios durante os períodos mais graves da pandemia foi mínima, as possibilidades de desenvolver atividades em espaços públicos diminuíram e a mobilidade infantil foi reduzida drasticamente.

Vale ressaltar que há uma distinção analítica entre deslocamento e mobilidade. O primeiro pode ser entendido como a viagem, a rota que contém um ponto de partida e de chegada, enquanto o segundo não é só o movimento, mas a expressão e a experiência pelo espaço e tempo que o corpo vivencia em seus deslocamentos, há um sentido no movimento, o equivalente dinâmico de localização, “a espacialização do tempo e temporalização do espaço” (Cresswell, 2006, p. 19, versão própria).

Ao se deslocar pela cidade de maneira ativa, a pé ou de bicicleta, as crianças interagem socialmente com aqueles que as acompanham ou com quem encontram no caminho, desenvolvem habilidades espaciais aprendendo sobre os trajetos percorridos, além de aumentar seus níveis de atividade física. Consequentemente, o movimento em seus deslocamentos ajuda a promover a memória, percepção, linguagem, atenção, emoção e tomada de decisão.

Outra questão preocupante nesse período pandêmico é a utilização intensa das relações virtuais como recurso para manter o contato com as crianças, ou mesmo seu processo de ensino. Televisores, computadores, tablets e celulares passaram a ser ferramentas essenciais, o que gerou o aumento considerável de horas gastas em frente às telas, que passaram a servir tanto para atividades educativas quanto recreativas. Segundo a Sociedade de Pediatria o uso excessivo de telas acarreta diversos malefícios à saúde, dentre eles a diminuição do sono, miopia e dificuldades no desenvolvimento da fala.

Ademais, a pandemia de covid-19 tem causado impactos globais em diferentes aspectos e seus desdobramentos na sociedade ainda não podem ser mensurados. A crise econômica aumentou o desemprego no país e muitas famílias passam pela situação de insegurança alimentar. A tensão mental também cresceu, bem como os níveis de estresse, ansiedade, e o índice de violência doméstica. Ainda não podemos medir a forma como tudo isso tem afetado o desenvolvimento das crianças, porém, a situação é um alerta para pensarmos na necessidade de criar novas rotinas e cidades que acolham seus habitantes e convidem as crianças a brincar em seus espaços públicos. 

O espaço tem grande influência na saúde, desenvolvimento, aprendizagem e habilidades das crianças, uma vez que:

… o espaço construído não é um tipo de cenário neutro para a expansão das relações sociais. A qualidade do espaço construído inevitavelmente influencia a qualidade das interações sociais que lá acontecem. Ela não determina completamente, já que há sempre lugar para diversas e algumas vezes subversivas apropriações de espaços, e para organização de ações sociais que contestam aquelas moldadas por práticas espaciais. No entanto, os espaços materiais que constituem a vida pública influenciam os tipos de relações sociais possíveis neles. (Caldeira, 2000, p. 302).

As cidades estão cada vez mais populosas e se expandindo, fazendo com que os espaços residuais desapareçam e os locais de contato com a natureza estejam cada vez mais raros e distantes. Além disso, o aumento das frotas de veículos traz mais velocidade e insegurança às ruas e, gradualmente, os espaços são utilizados para alargar pistas e criar vagas de estacionamento. Como resultado, as ruas estão se tornando cada vez mais passagens, em vez de destinos.

Apesar do planejamento urbano de muitas cidades não ter considerado o uso do espaço público pelas crianças é possível fazer readequações e adaptações, promovendo maior interação entre as pessoas e seu uso. Podemos adaptar as cidades de tal forma que as crianças possam fazer uso mais independente do espaço público para brincar e se locomover em pequenos trajetos. Dentre as ações que podem tornar as cidades mais seguras, saudáveis, confortáveis, convenientes e educativas e, portanto, de valor para todos, estão a construção de calçadas amplas e acessíveis, a criação e conservação de espaços com elementos da natureza, ciclovias seguras, melhoria dos pontos de travessia para pedestres e redução da velocidade dos veículos motorizados.

A visão de impotência das crianças não se sustenta nos dias atuais, elas ocupam hoje o status social de sujeitos de direitos, com valor em si mesmas, seres potentes e competentes que interpretam o mundo ao seu redor e são capazes de participar em decisões que lhes dizem respeito. A Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU estabelece direitos universais às crianças, garantindo desenvolvimento, bem-estar e melhoria de suas condições de vida. O brincar é um desses direitos, bem como o lazer, as atividades lúdicas e recreativas adequadas a sua idade, assim como participar livremente da vida cultural e artística. O Brasil ratificou a referida Convenção em 1990, a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei nº 13.257 representam parte do arcabouço legal e normativo que garante o direito ao brincar, expressa o cuidado, atenção, prioridade absoluta da infância.

O brincar é vital para as crianças e tem seu valor reconhecido em diferentes áreas do conhecimento. Ele influência na aprendizagem (Kishimoto, 1995; Vigotski, 1996), é vital no desenvolvimento social e reinterpretação da cultura (Corsaro, 1997; Sarmento, 2003), além de promover a saúde e o desenvolvimento físico infantil (Fisberg et al, 2004; Barros; Lopes; Barros, 2012).

Segundo James e James (2012, p. 91, versão própria), brincar “oferece conjunturas favoráveis para a resolução de problemas cognitivos, tem um papel importante no desenvolvimento de habilidades motoras, e por meio de exercícios melhora a saúde”. Em espaços públicos não especializados as crianças podem movimentar-se livremente, seguir seus interesses, arriscar e testar seus limites sem que um adulto dite as regras e delimite fronteiras (Ward, 1978; Jacobs, 2000). A brincadeira espontânea tem caráter aberto, imprevisível, desestruturado e, o mais importante, é iniciada e desenvolvida pelas próprias crianças. Isso se traduz em crianças mais felizes, mais ativas, curiosas, confiantes e colaborativas. Ambientes externos de alta qualidade criam condições ideais para o aprendizado.

Rhaisa Pael é pesquisadora colaboradora assistente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Brasília.  Doutora em Educação com período sanduíche na Queensland University of Technology (Austrália)

Referências:

Barros, S. S. H; Lopes, A.S.; Barros, M. V. G. “Prevalência de baixo nível de atividade física em crianças pré-escolares. Revista Brasileira de Cineantropometria & Desempenho Humano, v. 14, p. 390-400, 2012.
Caldeira, T. P.R. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34/Edusp, 2000.
Corsaro, W. The sociology of childhood. California: Pine Forge Press, 1997.
Cresswell, T. On the move: mobility in the modern western world. Routledge: London, 2006.
Fisberg, R. M. et al. “Estado nutricional e fatores associados ao déficit de crescimento de crianças frequentadoras de creches públicas do município de São Paulo”. Caderno de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.20, n. 3, p. 812-17, 2004.
Jacobs, J. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
James, A; James, A. Key concepts in childhood studies. London: Sage, 2012.
Kishimoto, T. M. Jogo, brinquedo e brincadeira na educação. São Paulo: Cortez, 1995.
Sarmento, M. J. “Imaginário e culturas infantis”. Cadernos de Educação, v. 21, p. 51-59, jul./dez. 2003.
Vigotski, L. S. Obras escogidas, tomo IV. Madri: Visor, 1996.
Ward, C. The child in the city. London: Bedford Square Press, 1978.