Sandro Carnicelli
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As mudanças na demografia da população brasileira têm sido constantes no último século. O Brasil sempre foi visto como um país “jovem”. Se compararmos com a Itália, por exemplo, é o centro da pirâmide que está inflado em comparação com outras faixas etárias, enquanto no Reino Unido observamos uma distribuição muito consistente de faixas etárias. Nesse sentido, os governos brasileiros sempre concentraram suas políticas urbanas e de mobilidade nessa grande base demográfica. De fato, estudos realizados no Brasil demonstram a questão da mobilidade urbana para a população idosa e sua relação com quedas e lesões, representando um grave problema de saúde pública[1].
Observando as políticas públicas do ponto de vista político, isso pode ser entendido considerando-se que as pessoas abaixo de 40 anos de idade representam uma maioria significativa daquelas com direito a voto, mas também porque, de certa forma, ainda há um preconceito no dualismo criado entre aqueles que são ativos e ainda trabalham e os aposentados, que são vistos como um “custo” para o país.
Não são incomuns políticas públicas que beneficiam grupos sociais específicos quando se observa a literatura sobre governança, política e diplomacia[2]. Na realidade, muitos países progressistas consideram especificamente as políticas e ações públicas que apoiam minorias e os marginalizados como forma de aumentar a coesão social e melhorar a “saúde e riqueza” gerais da comunidade[3]. Mesmo quando observamos populações mais idosas, vemos um esforço dos países para oferecer formas de envelhecimento saudável como uma abordagem para evitar problemas no sistema de saúde e potencialmente estender suas contribuições econômicas[4]. O lazer pode desempenhar um papel importante no processo de envelhecer bem, mas, em grande parte, seu papel é muitas vezes negligenciado pelos formuladores de políticas[5]. Nesta discussão, o objetivo é demonstrar como é importante que as cidades do Brasil se adaptem e se ajustem a uma população cada vez mais idosa que tem consciência de seus direitos, de seu papel na sociedade, dos benefícios do lazer para eles mesmos e das contribuições que ainda podem dar.
Lazer e envelhecimento
Na década de 1990, a Organização Mundial da Saúde adotou o termo “envelhecimento ativo”. O significado da ideia de envelhecimento ativo baseia-se no conceito de indivíduos influenciarem de forma ativa e sistemática as condições de seu envelhecimento por meio da autorresponsabilidade e do autocuidado. O lazer desempenha um papel significativo nesse processo, permitindo que as pessoas se envolvam em atividades físicas e cognitivas que contribuam para o seu bem-estar geral[6]. Não só os múltiplos benefícios fisiológicos que o lazer pode ter, mas também os importantes benefícios sociais e culturais que essas atividades podem representar para grupos específicos. Em grupos marginalizados, por exemplo, o lazer pode promover o vínculo social, aumentar o conhecimento cultural e desenvolver o senso de pertencimento. Em grupos de pessoas idosas, tais atividades podem ter impactos significativos no seu sentimento de vínculo social e evitar problemas associados ao isolamento e à saúde mental.
Segundo Dupuis e Alzheimer os tomadores de decisão ainda não reconhecem plenamente a importância do lazer para o processo de envelhecer bem. “Os governos que começaram a reconhecer a importância do lazer tendem a se concentrar na atividade física e nos estilos de vida ativos em suas campanhas de promoção da saúde e colocaram a responsabilidade exclusiva por envelhecer bem nas costas dos próprios idosos. O foco na autorresponsabilidade ignora as restrições sociais e ambientais que muitos idosos enfrentam na vida tardia e supõe que todos os idosos têm os recursos necessários para levar estilos de vida ativos e engajados”. Porém, se considerarmos as significativas restrições físicas e emocionais, é importante que os formuladores de políticas ofereçam melhorias no ambiente urbano para apoiar o engajamento no lazer e melhorar o bem-estar da população idosa.
Envelhecimento no ambiente urbano
Presta-se muita atenção no apoio ao envelhecimento no próprio lar através da modificação no ambiente doméstico para compensar os níveis crescentes de debilitação. No entanto, também é importante compreender as necessidades de uma população em processo de envelhecimento para além do ambiente doméstico. Assim, precisamos considerar o impacto incapacitante do ambiente urbano sobre as pessoas idosas como parte essencial para desenvolver uma sociedade mais inclusiva e um envelhecimento mais saudável. Além disso, também precisamos considerar como o ambiente urbano pode funcionar como facilitador para um envelhecimento mais saudável, as oportunidades de lazer, as oportunidades de socialização, as oportunidades de se envolver com o meio ambiente e o entorno. As cidades modernas estão focando em estratégias de participação dos interessados, mas ainda estão limitadas na incorporação de perspectivas sustentáveis. Como destacou Landorf et al (2008, pg. 512)[7]:
“Os idosos agora são uma influência política significativa, mas diversificada em todo o mundo desenvolvido. Conceitos como envelhecimento bem-sucedido, envelhecimento em casa e qualidade de vida têm alimentado muitas das estratégias nacionais desenvolvidas até hoje para tratar de questões associadas às populações em processo de envelhecimento. A promoção da saúde física, da independência econômica e da conectividade social são características fundamentais dessas estratégias. Isso implica uma população mais velha que se engaja em atividade física, social e comunitária além do ambiente doméstico imediato. Também implica um ambiente urbano capaz de incluir a mais ampla gama de limitações funcionais de forma sustentável. Esse ambiente urbano exige que os governos coordenem e apoiem financeiramente uma abordagem inclusiva ao projeto urbano”.
Viver em ambientes urbanos pode ser benéfico para idosos com mobilidade reduzida, pois podem ficar mais perto das necessidades de suas vidas cotidianas, bem como perto do lazer e de serviços culturais (Buffel e Phillipson, 2016[8]). No entanto, isso pode ficar prejudicado se o ambiente urbano não for projetado para amparar as necessidades diárias dos idosos. Assim, os padrões de urbanização podem levar a um crescimento desigual, refletido na saúde e nas desigualdades sociais (Szwarcwald et al, 2011[9]). Essas desigualdades afetam desproporcionalmente os idosos a um nível individual, social e comunitário (Buffel e Phillipson, 2016). Sem um ambiente urbano de apoio, os idosos podem ficar (e se sentir) ainda mais vulneráveis e em risco de solidão, isolamento e exclusão social. A elaboração de práticas e políticas eficazes para atender às variadas necessidades físicas, de saúde e sociais dos idosos será um desafio político fundamental para o desenvolvimento urbano (Woolrych e Sixsmith, 2020[10]). Entre os debates importantes, precisamos solicitar aos formuladores de políticas que não se esqueçam de focar na disponibilização de práticas e ambientes de lazer para esse grupo.
Adaptação dos ambientes urbanos às práticas de lazer
Os espaços urbanos têm sido submetidos a mudanças constantes nos últimos anos a partir da descoberta de mobilidades ativas e da necessidade de acomodar o uso crescente de bicicletas à crescente valorização do espaço aberto e dos parques públicos como catalisadores de eventos[11]. De fato, muitas cidades estão transformando suas estruturas para acomodar as demandas de uma nova geração de habitantes. Na Europa, por exemplo, a pandemia de covid-19 acelerou o processo de famílias que deixam os centros urbanos em busca de casas maiores com jardins e mais distanciamento natural de cidades populosas. Isso permite que a população mais jovem ocupe o centro das cidades, mas essa população mais jovem tem suas próprias características e exigências. Para a geração Z, o consumo é encarado como acesso em vez de posse; é também uma forma de expressar identidade individual e está relacionado a preocupações éticas dessa geração. A geração Z nasce na era da hipertecnologia, é radicalmente inclusiva e vive a vida pragmaticamente. O entendimento deles sobre o centro das cidades é radicalmente diferente das gerações anteriores e, nesse sentido, as lojas das ruas de comércio precisam lutar para sobreviver quando o consumo tende a se tornar mais online e menos em lojas físicas. Os centros urbanos se tornam um espaço para experiências em vez de espaços para consumo de materialidade; os centros urbanos se tornam um espaço para lazer e estilos de vida onde as linhas entre trabalho e não-trabalho ficam indefinidas. Assim, os nômades digitais vão procurar cafés para trabalhar e morar, os parques públicos são vistos como bens essenciais e o trânsito se torna menos aceitável. A questão é quais serão os significados de uma transformação tão rápida na vida da população mais velha. Pessoalmente, eu gosto da opinião de Carl Honore[12] e seu movimento lento para nos ajudar a entender o ritmo que o ambiente urbano deveria ter para acomodar a população mais velha (mas toda a população). Estudos indicam que o engajamento significativo no lazer substitui o trabalho, ajudando os idosos a encontrarem significado na vida. Nesse sentido, os urbanistas e arquitetos têm uma enorme responsabilidade pelo bem-estar físico e emocional dos cidadãos, mas também pela coesão das comunidades e pelo desenvolvimento do senso de pertencimento. Mas, como mencionado anteriormente, a distribuição desses espaços públicos de lazer e o acesso a eles por parte da população idosa são essenciais no processo de pensar ambientes urbanos inclusivos.
Conclusão
Países como o Brasil estão observando uma mudança constante em sua demografia com o aumento da população idosa. Nesse sentido, tenho tentado defender aqui a importância de repensar políticas públicas que beneficiariam essa população que, em muitos sentidos, tem sido marginalizada e ignorada. Obviamente, em um país com tantos problemas sociais e desigualdades econômicas, é a população mais velha dos estratos mais pobres da sociedade que sofrerá mais. Nesse sentido, o enfrentamento das desigualdades de lazer caminha lado a lado com o enfrentamento das desigualdades sociais. Os governos deveriam fazer mais para fornecer espaços para a geração mais velha, em que se possam praticar atividades de lazer, melhorando o bem-estar físico, emocional e psicológico.
No Brasil, com um número significativo de grandes cidades, e os problemas associados aos processos caóticos de urbanização, os formuladores de políticas e os urbanistas precisam focar não apenas na criação e disponibilização de espaços de lazer, mas também em aspectos relacionados à possibilidade de acesso e acessibilidade econômica. Isso significa descentralizar os espaços de lazer para áreas de periferia onde o acesso seria mais fácil e os custos (econômicos, sociais e psicológicos) ficariam menores. Além disso, é importante que esses espaços de lazer possam incentivar a socialização e a interação entre os usuários, bem como o comportamento ativo para aumentar o bem-estar físico.
Por fim, é importante refletir que, para criar uma cidade amigável para a população idosa e que incentive o envelhecer bem, os formuladores de políticas e os governos também devem pensar em elementos como habitação, transporte, engajamento cívico e cidadania proativa. Infelizmente, o Brasil ainda tem um longo caminho a percorrer para enfrentar todas as desigualdades e tornar as cidades amigáveis a qualquer pessoa, especialmente aos idosos.
Sandro Carnicelli é professor da Universidade do Oeste da Escócia
Notas:
[1] Bruno de Souza Moreira, Amanda Cristina de Souza Andrade, César Coelho Xavier, Fernando Augusto Proietti, Luciana de Souza Braga, Amélia Augusta de Lima Friche, Waleska Teixeira Caiaffa (2020): “Perceived neighborhood and fall history among community dwelling older adults living in a large Brazilian urban area: a multilevel approach”, International Journal of Environmental Health Research, DOI: 10.1080/09603123.2020.1782354
[2] Meriläinen, E. S.; Fougère, M.; Piotrowicz, W. (2020), “Refocusing urban disaster governance on marginalised urban people through right to the city”, Environmental Hazards, 19:2, 187-208.
[3] Cheong, P.; Edwards, R.; Goulbourne, H.; Solomos, J. (2007), “Immigration, social cohesion and social capital: a critical review”, Critical Social Policy, 27, 24–49.
[4] Walker, A. (2002).” A strategy for active ageing”. International Social Security Review, 55(1), 121–139.
[5] Sherry L. Dupuis Ph.D.; Murray Alzheimer (2008) “Leisure and ageing well”, World Leisure Journal, 50:2, 91-107, DOI: 10.1080/04419057.2008.9674538
[6] Toepoel, V. (2013). “Ageing, leisure, and social connectedness: how could leisure help reduce social isolation of older people?”, Social Indicators Research, 113(1), 355-372.
[7] Landorf, C.; Brewer, G.; Sheppard, L., 2008. “The urban environment and sustainable ageing: critical issues and assessment indicators”. Local Environment, 13 (6), 497–514.
[8] Buffel, T.; Phillipson, C. (2016). “Can global cities be ‘age-friendly cities’? Urban development and ageing populations”. Cities, 55, 94-100.
[9] Szwarcwald, C.; Pereira, T. G. S. (2011). “Health inequalities in Rio, Brazil”. American Journal of Public Health, 101(3).
[10] Woolrych, R. and Sixsmith, J. (2020) “Ageing in an unequal world. Implications for age-friendly cities and communities”, Pixo: Revista de Arquitetura, Cidade, e Contemporaneidade, 4(13):17-32
[11] Smith, A. et al (2021) “Staging city events in public spaces: an urban design perspective”. International Journal of Event and Festival Management, 12(2): 224-239.
[12] Honoré, C. (2004) In Praise of slowness. How a worldwide movement is challenging the cult of speed (New York: HarperCollins).