Jorge Felix
Em mais de uma década, a implementação da política pública denominada pela Organização Mundial da Saúde de “Cidade Amiga do Idoso”[1] é um exemplo de dissonância cognitiva a ser estudado. As evidências de sua relevância apresentadas pela gerontologia, pela sociologia urbana ou pelo urbanismo são compreendidas pelo Estado. No entanto, jamais absorvidas para a efetividade de ações práticas. A pandemia da covid-19, que atingiu mais fortemente a população idosa em todo o planeta, demonstrou essa incoerência teoricamente elaborada pelo psicólogo nova-iorquino Leon Festinger (1919-1989). O único lenitivo, para nós, é que essa não é uma enfermidade apenas das cidades brasileiras, pois diz respeito às limitações impostas pela lógica capitalista e a globalização – o que será abordado mais adiante.
Para emprestar maior proximidade com o tema, peguemos São Paulo como exemplo. Há mais de uma década, o governo do estado anunciou a adoção das recomendações do guia “Cidade Amiga do Idoso” com ampla propagação do feito político na mídia. As cognições inconsistentes de que nos falou Festinger podem ser capazes de explicar o porquê de nenhum dos 645 municípios do estado, até hoje, fazer jus ao selo pleno de cidade amiga do idoso. Uma das explicações é que, embora anunciada como uma política pública, essa iniciativa foi estabelecida como um “programa” cuja adesão é voluntária por parte das municipalidades, logo, frágil e perigosamente permissiva de instrumentalização política.
Fechemos agora o foco para a capital especificamente para enxergarmos melhor a gravidade da patologia cognitiva. Desde 2012, a Rede Nossa São Paulo, algumas vezes em parceria com a prefeitura, elabora uma pesquisa sobre desigualdade social na capital. Um mês antes do início da pandemia, a própria Coordenadoria de Políticas para a Pessoa Idosa da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania divulgou dados do Seade sobre a desigualdade na expectativa de vida ao nascer entre os 96 distritos. A diferença, segundo a pesquisa, alcança 14 anos. Enquanto em Alto de Pinheiros a taxa é de 85,33 anos, em São Miguel Paulista o limite médio é de 71,28 anos.
Um ano depois, tão logo iniciada a campanha de vacinação contra a covid-19, a despeito de a população idosa mais pobre ser muito mais atingida, o critério de prioridade adotado pelo governo federal e seguido, sem contestação, pela prefeitura paulistana, foi o de idade, sem levar em consideração as disparidades entre os distritos. Em maio de 2021, pesquisa do LabCidade da FAU-USP apontou essa dissonância cognitiva ao mostrar que apesar de autoridades municipais demonstrarem uma preocupação com a saúde da população de bairros mais vulneráveis, “essas narrativas não repercutiram em uma estratégia territorializada para conter a disseminação da doença”.
As vacinas foram aplicadas nos idosos mais privilegiados e, do ponto de vista da gerontologia, deve-se destacar o programa de vacinação comprometeu, além dos velhos mais pobres, o ciclo de vida da população mais pobre, e ampliou o risco de seu processo de envelhecimento. Além disso, embora o município tenha divulgado Indicadores Sociodemográficos da População Idosa, em 2020, mostrando também a desigualdade por distrito na proporção de idosos com incapacidade funcional e evidenciado os maiores índices nas franjas periféricas da metrópole, a prefeitura e o governo do estado, por meio de artimanha legislativa antidemocrática, cancelou a gratuidade de transporte público para o segmento de 60 a 64 anos, em janeiro de 2021, sem amparo ou consistência científica e, sim, com justificativas totalmente ideológicas.
O caráter antidemocrático da medida, destaca-se, foi apoiado por vereadores de diversos partidos políticos. Muitos, e mais uma vez atesta-se a dissonância cognitiva, que se dizem publicamente defensores do “programa” cidade amiga do idoso. A gerontologia, mais uma vez, levou ao conhecimento público, por meio da imprensa, o caráter de medida de saúde pública preventiva da gratuidade do transporte público – não apenas para os idosos, mas para esses principalmente – e do outro lado da interlocução proposta ouviu-se o silêncio.
O programa da OMS de “Cidade Amiga do Idoso” prescinde o diálogo democrático para a construção de quaisquer possibilidades promotoras de bem-estar para esse segmento etário ou todos os segmentos[2]. Mesmo com acesso a informações acadêmicas gerontológicas, os governantes do estado e da prefeitura foram insensíveis aos argumentos científicos a favor de uma cidade amigável ao envelhecimento.
Da mesma forma da questão da vacinação, o entendimento errôneo por parte de gestores públicos é de que as políticas públicas para o envelhecimento devem ser adotadas apenas e unicamente para aqueles com mais de 60 anos – algo negado pela gerontologia, em sua teorização do ciclo de vida, e amparado, cada vez mais, pela biogenética, quando prova o início do processo de envelhecimento do ser humano (perda de informação genética) a partir de sua concepção uterina[3].
Seria no entanto ingênuo e simplista atribuir as limitações de implementação de políticas urbanas como as recomendadas pela OMS apenas a uma patologia cerebral de nossos governantes. Talvez, se fosse assim, seria até curável. Infelizmente, a questão é mais complexa e peço permissão a uma indispensável visita à teoria econômica. O problema é que a concepção da Cidade Amiga do Idoso se coloca no ambiente da economia finanzeirizada e globalizada do século XXI como uma marolinha, enquanto do outro lado surge o tsunami, teorizado pela socióloga Saskia Sassen[4], da “cidade global”. Essa tensão entre esses dois modelos de cidade é regida pela fração imobiliária do capital financeiro mundializado e provoca, na feliz concepção de Raquel Rolnik, uma “guerra dos lugares”[5].
É preciso analisar o projeto de “Cidade Amiga do Idoso” na perspectiva teórica do capital, sob pena de estarmos, como diz o economista Erick S. Reinert, atuando apenas na “economia paliativa”[6]. Ou seja, aceitando uma ou outra iniciativa dos gestores públicos – quase todas bastante midiáticas – supostamente a favor de “bairros amigos dos idosos” ou “cidades amigáveis”, mas de eficácia absolutamente nula em alterar a questão estrutural. Esse é o ponto de partida da análise das propostas da OMS no campo da gerontologia crítica, para a qual questões, por exemplo, de combate ao isolamento ou à solidão na cidade são hoje fundamentais para a população idosa.
No entanto, a economia capitalista transmutou em mercadorias, como ensinou Karl Polanyi, fatores que jamais poderiam ser “coisificados”: a moeda, o trabalho e, o que mais no interessa aqui, a terra[7]. O que estamos vivenciando hoje, nas grandes cidades em todo o mundo, é a hipertrofia da mercantilização da terra urbana a favor de uma lógica do fluxo de capitais globais, como disse Sassen, que desterritorializa a cidade e faz com que a mente de nossos governantes se afastem de qualquer realidade concreta local – portanto ignorem dados e ciência – e governem conectados apenas com o fluxo livre e digital do capital sempre dispostos a atender aos seus anseios de lucratividade insaciável.
Nessa perspectiva economicista a cidade jamais será para as pessoas[8], o que seria condição imprescindível para que as ideias da OMS se constituírem promissoras na contemporaneidade. A gerontologia crítica defende o oposto e levanta esses pontos porque é importante delimitar, entre as áreas de conhecimento, quais áreas levantam quais questões, como nos ensinou Max Weber[9], porque a ciência não é neutra. Quando fazemos a intersecção entre envelhecimento e globalização, diminuem imensamente as possibilidades de uma cidade para os idosos porque é na cidade que a globalização financeira acontece de fato. Como aponta Sassen, a globalização precisa de um lugar para existir e efetivar o lucro. Esse lugar é a cidade, onde o capital domina a política.
Nos episódios da vacinação, da moradia ou da disputa pela terra urbana, de gratuidade dos transportes, a mentalidade do governante está direcionada para as demandas do capital globalizado, que impõe a falsa dicotomia saúde versus economia. Em outras palavras, impõe à municipalidade a lógica da produtividade maximizada. Isso explica, como denuncia C. H. Doevendans , porque em mais de uma década prevalece essa dissonância ou a economia paliativa e, hoje, embora a rede de cidades amigas do idoso tenha a adesão voluntária de 200 municipalidades registradas na OMS, seja impossível afirmar quais estágios essas cidades estão na implementação efetiva das ações. Não existe, afirma Doevendans depois de ampla pesquisa, nenhuma aferição técnica internacional “confiável”, na palavra usada pelo autor, a despeito de a literatura sempre destacar boas práticas em alguns centros urbanos, quase sempre fora da lista de “cidades globais”.
Em relação a Londres, Anthea Thinker chama o programa de “experimental” tal a timidez das ações na capital britânica, uma cidade global. A autora lembra que dos 47 países originais signatários do programa da OMS “poucos mantêm atualmente contato com a rede”.
Paris é outra cidade global. No dia 25 de maio, Luc Broussy, presidente da France Silver Eco, a principal rede de atores da economia da longevidade no mundo, apresentou ao governo francês seu relatório interministerial “Nous vieillirons ensemble, 80 propositions pour um nouveau pacte entre générations”, considerado pela imprensa como um documento significativo para influenciar as políticas públicas de envelhecimento no país. Uma das seções do relatório diz respeito justamente ao atraso da adaptação de Paris e outras cidades grandes para garantir a autonomia e independência da crescente população idosa. No dia seguinte, o relatório foi a manchete principal da capa do jornal Le Monde: “Envelhecer em casa: pistas para o governo”.
São Paulo também é uma cidade global, pois faz parte do fluxo do capital internacional na economia mundializada[10]. Os seguidores de Festinger talvez possam nos oferecer outras soluções para curar nossos governantes. Na gerontologia crítica podemos oferecer problematizações e diretrizes. Quanto à primeira, existe uma questão estrutural. A longevidade hoje é um fator perturbador do capitalismo e esse atua mais na desconstrução do que na construção de bem-estar, como chegou a atuar no século XX, por isso denomino esse período de “capitalismo de desconstrução”[11]. Nessa economia, programas como a Cidade Amiga do Idoso são mais incômodos do que soluções.
Quanto a diretrizes, é preciso estabelecer fronteiras a partir de uma visão sistêmica cruzando as grandes tendências do século XXI. Essas diretrizes formam uma “SET Estratégia” para as políticas criativas para o envelhecimento regidas pelo conceito do bem comum[12]: S de solidariedade, E de ecologia (environment) e T de tecnologia. Essas diretrizes já foram desenvolvidas teoricamente em outras oportunidades[13]. Uma condição imprescindível para sua aplicação prática, porém, é a necessidade de o Estado rever sua relação com a terra urbana, mesmo dentro de uma lógica econômica capitalista, mas em outras bases de regulação. Uma base que atenda às demandas da transição ecológica e da transição demográfica – que impactam o espaço urbano e a vida das pessoas. Neste momento do ano de 2021, o questionamento oferecido pela gerontologia crítica para reflexão é: Uma cidade amiga do idoso responderia com mais eficácia à emergência da pandemia? Salvaria vidas?
Jorge Felix é professor da graduação e da pós-graduação em gerontologia na EACH-USP, doutor em ciências sociais (PUC-SP).
Notas e referências
[1] Usarei aqui essa denominação, embora a OMS defina o programa atualmente de Global Network of Age-friendly Cities and Communities (GNAFCC). Ver https://www.who.int/mediacentre/news/releases/2010/age_friendly_cities_20100628/en/
[2] Como comentarista dos temas de longevidade na Rede Globo, desde o anúncio da medida, no calar de 2020, fiz quatro comentários sobre o tema, nos programas É de Casa, Encontro, SPTV1 e BDSP. Escrevi também um artigo na seção Tendências & Debates do jornal Folha de S. Paulo, 10/01/2021. Em todas as ocasiões, o então prefeito Bruno Covas (PSDB), recusou-se a comentar publicamente a decisão, imposta por decreto, o que já é discutível democraticamente, e a prefeitura absteve-se em divulgar a mesma nota oficial, na qual os argumentos apresentados são os mesmos que sustentam políticas públicas que retiraram direitos da população idosa sob alegações economicistas e ideológicas, como o caso da reforma da Previdência Social. Medidas essas, diga-se, que ampliam a desigualdade social e o risco velhice.
[3] Ver Sinclair, D. A. Tempo de vida, por que envelhecemos e por que não precisamos, Rio de Janeiro, Alta Books, 2021. p. 117.
[4] Sassen, S. The Global City, New York, London, Tokyo, Second Edition, Princeton University Press, 2001.
[5] Rolnik, R. Guerra dos lugares – a colonização da terra e da moradia na era das finanças, São Paulo, Boitempo, 2015.
[6] Reinert, E. S. Como os países ricos ficaram ricos e por que os países pobres continuam pobres, Rio de Janeiro, Editora Contraponto, p. 36.
[7] Polanyi, K. A grande transformação – as origens da nossa época, Rio de Janeiro, Campus/Elsevier, 2000.
[8] Gehl, J. Cidades para pessoas, São Paulo, Editora Perspectiva, 2013.
[9] Weber, M. Ciência e política, duas vocações, São Paulo, Cultrix, 1985.
[10] Ianni, O. A cidade global. Vozes Cultura, volume 88, LXXXVIII, nº 2, março/abril, pp. 25-39, São Paulo, Editora Vozes, 1994.
[11] Ver Felix, J. Economia da longevidade, o envelhecimento populacional muito além da previdência, São Paulo, Editora 106, 2019. pp 105-116.
[12] Dardot, P.; Laval, C. Comum, ensaio sobre a revolução no século XXI, São Paulo, Boitempo, 2017.
[13] Ver Felix, J., Klimczuk, A. “Social entrepreneurship and social innovation in aging”. In: Gu D.; Dupre M.E. (eds) Encyclopedia of Gerontology and Population Aging. Springer, 2020, Cham. https://doi.org/10.1007/978-3-319-69892-2_242-1