Em quase 30 anos, trajetória do Comitê Gestor da Internet é marcada pelo multissetorialismo na ampliação de conquistas e debates sobre a rede
Por Flávio Gomes-Silva, Greta Garcia, Letícia Naísa, Ludimila Honorato e Renan Augusto Trindade
No final de setembro de 2022, o Brasil atingiu cinco milhões de páginas de internet registradas com o domínio “.br”, operado por um dos braços do CGI (Comitê Gestor da Internet), o NIC.br (Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR). Assim, o país conquistou a 5ª posição entre os códigos mais populares do mundo. Para especialistas, esse marco representa a vitalidade do órgão, que se mantém como uma forte e influente instituição de governança.
Fazem parte das atribuições do CGI recomendar procedimentos, normas e padrões técnicos para a internet, assim como promover estudos para aprimorar a segurança, o uso e programas de pesquisa e desenvolvimento.
Com modelo multissetorial, o CGI se destaca pela participação do governo, da comunidade científico-tecnológica, do setor empresarial e da sociedade civil para estabelecer as diretrizes relacionadas ao uso da rede no país. “Para a internet existir, a sociedade civil tem de estar nela”, afirma Ivan Moura Campos, que coordenou o CGI de 1995 a 1997 e é professor emérito de Ciência da Computação na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
O CGI foi criado em 1995, quando a internet ainda era uma novidade no Brasil e uma tecnologia muito restrita ao meio acadêmico, com infraestrutura precária. O uso comercial era pouco conhecido. Com o aumento do acesso à rede, ainda que incipiente, foi criado o Comitê, que assume um papel mediador, como um conselheiro sobre questões de governança. O modelo brasileiro foi concebido de forma equilibrada e estável, servindo de exemplo no exterior. “O Brasil lidera as discussões sobre os limites éticos do uso das redes: as fake news, o equilíbrio entre a liberdade e o abuso, as leis que têm de ser pensadas”, diz Campos.
Em 27 anos de história, o órgão foi protagonista de momentos importantes que contribuíram para sua afirmação e institucionalização. Um deles foi a criação de um decálogo, conjunto de dez princípios para governança e uso da internet no Brasil, aprovado em junho de 2009.
O documento foi demandado para reforçar e proteger os pilares da internet que estavam sendo ameaçados naquela época, como a neutralidade da rede e o direito à privacidade. Além de valorizar o modelo multissetorial de gestão, os preceitos passaram a embasar e orientar ações e decisões do CGI.
“O decálogo também serviu como inspiração para a consulta do Marco Civil da Internet (MCI), guiando as discussões e figurando nos artigos que hoje regem essa lei”, diz Fabrício Solagna, doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pesquisador da área de governança na internet e atual secretário-executivo da Coalizão Direitos na Rede.
Ele se refere à Lei nº 12.965/2014, que estabeleceu o marco regulatório para uma internet livre, aberta e com regras de proteção ao usuário. O MCI representou outro grande momento na trajetória do CGI, que participou de todo o processo de apresentação, tramitação, debate e aprovação da lei.
A efervescência do Marco Civil da Internet
O MCI foi discutido e aprovado em meio a um debate acalorado sobre vários aspectos do setor, como aumento da demanda por acesso à internet e neutralidade da rede. O momento também refletia discussões semelhantes que ocorriam nos Estados Unidos e na Europa.
O Marco foi sancionado pela então presidenta Dilma Rousseff em 2014. O protagonismo assumido pelo Brasil com o MCI obteve reconhecimento internacional, especialmente pela forma como foi construído com ajuda do CGI. “Envolveu consulta pública e foi amplamente discutido, negociado e legitimado por diversos setores e processos”, relata Solagna.
Quem se envolveu nesse trâmite foi a advogada Flávia Lefèvre, mestre em Processo Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), representante do terceiro setor no CGI de 2014 a 2020. Flávia conta que, a partir da sanção do MCI, o Comitê ficou encarregado de contribuir com a neutralidade da rede para segurança de dados.
Para isso, foram abertas discussões entre conselheiros a fim de editar um documento que, encaminhado ao Ministério da Casa Civil, culminou no Decreto nº 8.771, de maio de 2016, que regulamentou o MCI. “Foi um momento atribulado, porque já havia movimentações, dentro da esfera do governo federal, para levar ao impeachment da Dilma”, recorda. O processo de destituição da chefe do Executivo transcorreu de dezembro de 2015 a agosto de 2016.
Solagna afirma que são frequentes as propostas de mudança no MCI. Em vez disso, ele defende a necessidade de pensar em um modelo de regulação das plataformas, que poderia ser feito de forma semelhante à discussão do marco regulatório.
O pesquisador também entende que o MCI foi projetado para ser uma lei de longo prazo, pois abrange princípios e garante e inspira outras leis, como a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que, embora não tenha vindo “a reboque” do MCI, como afirma Lefèvre, também está relacionada ao uso da internet.
A LGPD (Lei nº 13.709/2018) contou, por exemplo, com a realização de consultas públicas e o apoio do próprio CGI. Para Solagna, houve um adensamento da discussão da LGPD em virtude do MCI.
Disputa de poder
O decreto que regulamentou o MCI também especificou as atribuições do CGI e da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) na governança da internet. No início, houve uma separação de qual seria o papel de cada um, mas minúcias abriram espaço para discussão e possíveis mudanças.
No ano em que o CGI foi estabelecido, a Norma 004, expedida pelo Ministério das Comunicações (portaria nº 148), declarou a internet como um serviço de valor agregado à infraestrutura da rede de telecomunicações. Desse modo, ela não seria regulada pela Anatel, que só foi criada em 1997.
“Isso funcionou muito bem até o início dos anos 2000. Telefone e internet eram separados, até no CNPJ e no modelo de negócios. Depois, tudo começou a ficar tecnologicamente menos separado. Telecom (telecomunicações) não é internet, mas os dois dialogam, inclusive tecnologicamente”, diz Solagna.
Desde 2001, devido à evolução da tecnologia e da convergência das redes, as tentativas da Anatel de “puxar” a internet para seu domínio têm gerado uma disputa permanente, afirma Lefèvre. Entre 2003 e 2005, houve questionamento sobre se as atribuições do CGI deveriam voltar para a União na esfera jurídica e, na prática, para a Anatel. Deu-se ganho de causa para o Comitê Gestor. Ainda assim, Solagna pensa que a distinção regulatória entre internet e telecom é positiva para a melhor organização do sistema.
Lefèvre entende que as atribuições dos dois negócios estão expressamente diferenciadas e seria um grande prejuízo à Anatel ter a internet sob seu domínio. “Seria ilegal, tanto pelo aspecto formal como pelo MCI que, quando trata dos poderes públicos, deixa muito expresso que a governança da internet deve se dar por mecanismo multissetorial, o que não acontece na Anatel”, avalia.
Embora o CGI sofra influência significativa dos ventos políticos, Lefèvre considera que ele se mantém forte, com discussões acerca dos principais temas que abalam a internet. Ela reforça a necessidade de manutenção dos mecanismos institucionais que garantem a governança multissetorial da internet e a importância do órgão em discussões futuras, como internet das coisas (IoT) e uso de inteligência artificial.