Os primeiros foram criados na década de 1960 e abriram caminhos para a consolidação de estudos africanos em diversas partes do Brasil
Por Daniel Rangel e Lethícia Bueno
Imagem: Daniel Rangel
“A África faz parte da humanidade e da construção do Brasil”, afirma o antropólogo e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Livio Sansone, que dedicou sua carreira aos estudos étnicos e africanos. Pesquisador no Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO/UFBA), diz perceber o aumento do interesse, do esforço e do investimento da pesquisa brasileira sobre África nas últimas décadas.
Fundado em 1959, o CEAO é um dos primeiros centros de pesquisa sobre África no Brasil, criado em um contexto de institucionalização dos estudos e de aproximação do governo brasileiro com o continente africano, que se libertava do colonialismo. Além dele, foram pioneiros o Instituto Brasileiro de Estudos Afro-Asiáticos, em 1961, hoje chamado Centro de Estudos Afro-Asiáticos, e o Centro de Estudos Africanos (CEA/USP), em 1965.
Sansone explica que a tradição da pesquisa científica e acadêmica em estudos africanos começa, justamente, com a abertura desses centros a partir de 1960 – ainda que os recursos fossem bastante escassos à época.
De acordo com a historiadora Mariana Schlickmann, em “A trajetória dos estudos africanos no Brasil: 1930 a 1980”, a criação dos centros de pesquisas na década de 1960, incorporados às universidades, permitiu uma compreensão e valorização mais particular e aprofundada da cultura, religião, língua e identidade negras e das relações raciais. O CEAO, por exemplo, foi precursor no intercâmbio acadêmico Brasil-África, “enviando pesquisadores e recebendo alunos africanos no primeiro programa deste estilo criado pelo governo federal na gestão de Jânio Quadros”, escreve.
Antes desse período, o que se entendia como estudos africanos se concentrava no que a historiadora nomeia “problema do negro”. Em seu artigo, Schlickmann recupera os escritos do também historiador Gilson Brandão de Oliveira Júnior, no qual argumenta que “somente a partir do final do século XIX os homens de sciencia passam a interessar-se na investigação do negro no Brasil: não por seu valor cultural e papel ativo na construção da identidade nacional, mas como um ‘problema’ a ser transposto”.
Apesar de abrirem caminhos para a consolidação do atual cenário de estudos africanos, os centros de pesquisa sofreram duros impactos ao longo do tempo, em especial nos anos da ditadura militar, com suspensão de recursos, fechamento de institutos e repressão acadêmica.
Para o antropólogo Livio Sansone, marcos como a redemocratização, o estabelecimento da Constituição Federal de 1988 e a criação da lei de cotas e da lei que torna obrigatório o ensino da história e cultura indígena e afro-brasileira, foram fundamentais na retomada e no fortalecimento dos estudos africanos no país.
O atual cenário dos estudos africanos
Apesar da emergência dos estudos africanos a partir da década de 1960 no Brasil, o campo de pesquisa em África se consolidou mais fortemente a partir dos anos 1990. É o que afirma o historiador José Rivair Macedo, professor no Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenador da Rede Multidisciplinar de Estudos Africanos do Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados.
Segundo Macedo, algumas das principais razões para o avanço dos estudos africanos nesse período são o desenvolvimento da pesquisa acadêmica em mestrados e doutorados, com novos programas de pós-graduação, e a formação dos Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB) junto às universidades. O professor também destaca a criação do Grupo de Trabalho de História da África, da Associação Nacional de História (ANPUH), em 2011, e da Associação Brasileira de Estudos Africanos (ABEÁfrica), em 2014.
A publicação de estudos africanos em revistas também foi ampliada de 1990 para cá, favorecendo o intercâmbio de ideias e conhecimento. Surgem periódicos como Revista Afro-Ásia, Revista ABEÁfrica, Revista Kwanissa, Revista Sankofa e Revista Brasileira de Estudos Africanos.
Hoje, diversos centros e núcleos pelo país se dedicam à pesquisa sobre África. As iniciativas se estendem do Norte, com o NEAB da Universidade Federal do Amapá (Unifap), até o Sul, com o Centro Brasileiro de Estudos Africanos (CEBRAfrica), da UFRGS.
Embora apareçam em menor número no Norte e no Centro-Oeste, é possível encontrar propostas de grupos de estudos africanos em todas as regiões do país. O Consórcio Nacional dos Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros, vinculado à Associação de Pesquisadores(as) Negros(as), disponibiliza um espaço para unir e divulgar essas iniciativas brasileiras.
Além disso, cursos especializados também foram criados para atuar na formação de docentes e pesquisadores na área, como a pioneira Licenciatura Interdisciplinar em Estudos Africanos e Afro-Brasileiros, implantada em 2015 na Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Segundo Cidinalva Câmara, historiadora, doutora em sociologia e professora do curso, há uma cooperação técnica e de pesquisa com outras universidades brasileiras e do continente africano, buscando a compreensão de África por perspectivas complexas e múltiplas. “Isso nos leva à construção de outros olhares sobre o continente africano, sobre o Brasil e sobre a América Latina, bem como nos possibilita construir outros olhares sobre nosso próprio lugar no mundo, especialmente no mundo da produção de conhecimento”, reflete.
A região Sudeste, sobretudo o estado de São Paulo, ainda concentra a maioria dos estudos africanos e dos profissionais formados no campo. Destacam-se USP, Unicamp, PUC-Campinas, Unifesp e UFSCar. Apesar disso, a Fapesp não possui uma filtragem específica das pesquisas em estudos africanos financiadas atualmente pela entidade, segundo João Carlos da Silva, coordenador da assessoria de imprensa da Fundação. “Nossa abordagem é por áreas macros, como Saúde, Biologia, Química etc.”, esclarece.
Lançado em 2004 pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, o Programa de Cooperação em Ciência, Tecnologia e Inovação com Países da África (PROÁFRICA) continua sendo um dos maiores programas de financiamento já criados em prol dos estudos africanos no Brasil. Entre 2005 e 2010, investiu mais de nove milhões de reais para o financiamento de 190 projetos. No entanto, de acordo com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o programa está em fase de reestruturação.
Por dentro das pesquisas
Com o surgimento de cada vez mais centros, núcleos e cursos – e o aumento do interesse pela pesquisa em África –, os estudos africanos passaram a incluir investigações e trabalhos para além da história e da historiografia, que eram mais frequentes.
Áreas como letras, antropologia, ciências sociais e relações internacionais também começaram a se debruçar sobre esses estudos, e grandes nomes se estabeleceram, em especial intelectuais negros. “Boa parte dos estudos africanos hoje são na área de literatura. Depois, há muita pesquisa historiográfica associada à escravidão (ainda que a escravidão não seja somente o que define o passado e o presente da África) e, também, sobre desigualdade e violência. Outro tema importante que está começando a ser pesquisado é o uso dos recursos naturais e a relação com a natureza e as tradições”, esclarece Sansone.
Temáticas que também interessam os pesquisadores são África Lusófona e África Austral, período colonial e contemporâneo, circulações Brasil-África e história social, política, econômica e cultural, de acordo com o historiador José Rivair Macedo.
Para Macedo, o reconhecimento do papel da África na formação social do Brasil e o caráter antirracista de se pautar e produzir estudos africanos é o diferencial desse tipo de pesquisa. “Estudar África não é um exercício simples porque implica sempre questionar aquilo que durante muito tempo foi estabelecido como parâmetro de se falar e de se ensinar. Pode trazer avanços para o conhecimento científico e ampliar a cooperação intelectual Sul-Sul, de sociedades e países que foram colonizados”, argumenta.
Um dos estudos mais recentes que caminha nesse sentido é o livro Breve dicionário das literaturas africanas, publicado pela Editora da Unicamp e organizado por Fernanda Gallo, historiadora, doutora em antropologia social e membro do Centro de Pesquisa em Estudos Pós-Coloniais e Literatura Mundial (Kaliban/Unicamp). Macedo é um dos colaboradores da publicação, que decodifica 19 verbetes produzidos no continente africano, como “Escrita”, “Tradição” e “Oralidade”.
Outro estudo recente em andamento é o de Livio Sansone, que pesquisa a biografia do primeiro presidente da Frente de Libertação de Moçambique, Eduardo Mondlane, líder defensor dos povos africanos assassinado em 1969, em Dar es Salaam, na Tanzânia.
Independente da temática, a pesquisa em estudos africanos é, em geral, uma combinação de investigação de campo, entrevistas, observação participante, consulta em arquivos e outras fontes secundárias. Um trabalho minucioso e de análise que ainda encontra barreiras de acesso e investimento, de acordo com Sansone.
Dificuldade de financiamento
Mesmo com a crescente expansão e consolidação dos estudos africanos no Brasil, a pesquisa nacional ainda enfrenta obstáculos institucionais e técnicos. Na opinião dos pesquisadores entrevistados, os principais deles são a falta de financiamento e de reconhecimento do campo como área específica de estudo por agências de fomento e organizações de pesquisa.
Para a historiadora Cidinalva Câmara, não é possível dizer que hoje existam políticas de fomento voltadas para os estudos africanos, apenas ações pontuais. “Todos acham que a questão étnico-racial é problema apenas nosso, de pesquisadores negros, e que nós temos que nos virar para realizar pesquisa. Claro que isso faz parte da estrutura racista na qual vivemos. Fazer pesquisa no Brasil sempre foi um desafio, especialmente em ciências humanas, para qual os recursos são menores, e essa situação é mais agravante em nossa área, que é vista como menor”, comenta.
José Rivair Macedo também segue na mesma linha e ressalta que ainda há muito por fazer em relação à constituição de princípios metodológicos, conceituais e teóricos dos estudos africanos. “O maior desafio é o reconhecimento por agências de fomento e organizações, como CNPq, Capes e Finep, no momento de gerir as políticas públicas de ensino superior e de pesquisa científica no Brasil”, pontua. De acordo com o pesquisador, o campo de estudos africanos ainda não é reconhecido pelo CNPq na classificação de área e subárea, por exemplo.
Já para o antropólogo Livio Sansone, a sustentabilidade da pesquisa em África, em especial a realizada em campo, é um dos principais desafios. “Os voos internacionais, em particular para essas rotas, são escassos e caros. O Brasil está muito isolado ainda. Há uma demanda crescente e as oportunidades são inferiores às demandas”, reconhece.
Daniel Rangel é formado em jornalismo e biologia. Doutorado em biotecnologia e monitoramento ambiental (UFSCar). Cursa especialização em jornalismo científico do Labjor/Unicamp
Lethícia Bueno é jornalista e cursa a especialização em jornalismo científico do Labjor/Unicamp