Por Luciana Rathsam
Entre 200 e 450 obras literárias consideradas subversivas ou contrárias à moral e aos bons costumes foram censuradas durante o regime militar. A caça a livros socialistas, eróticos ou pornográficos operava a partir de denúncias. Já nas origens do país, a coroa portuguesa proibia que fossem publicados impressos no Brasil, ordem só revertida em 1808. Os livros que desembarcavam na colônia eram submetidos a uma triagem realizada por três instituições diferentes. As recentes tentativas de censura causaram fortes mobilizações e acabaram revertidas no Judiciário, o que na visão de especialistas é motivo para um “moderado otimismo”.
A circulação dos livros foi radicalmente restringida em governos ditatoriais no Brasil. No período do Estado Novo (1937-1945) os livros eram arbitrariamente apreendidos de livrarias e editoras e incinerados. Durante o regime militar (1964-1985) estima-se que tenham sido censuradas entre 200 e 450 obras literárias consideradas subversivas ou contrárias à moral e aos bons costumes.
“Quando um estado autoritário impede ou limita a circulação e a distribuição de um livro, ele está, de alguma forma, atestando a força do livro enquanto instrumento propulsor e configurador de ideias e mentalidades”, diz Sandra Reimão, professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP) e autora do livro Repressão e resistência – censura a livros na ditadura militar, (Edusp / Fapesp, 2019, 2ª edição). A obra de Reimão esclarece que a prática da censura no Brasil antecede a primeira impressão de livros no país. A coroa portuguesa proibia que fossem produzidos impressos no Brasil, ordem que só seria revertida em 1808. Nos primórdios da colonização, os livros só poderiam desembarcar no Brasil após serem aprovados por uma tríplice censura: do Santo Ofício, da autoridade episcopal e do Desembargo do Paço (equivalente a um tribunal de justiça da metrópole).
Em 1821, a censura prévia é extinta por um decreto de D. Pedro I. No entanto, ela voltaria a ser prevista e praticada institucionalmente durante a ditadura Vargas e nos “anos de chumbo” da ditadura militar.
O estudo realizado por Reimão apontou que os livros considerados socialistas ou comunistas e as obras eróticas ou pornográficas foram os alvos preferenciais da atividade censória durante o regime militar, que operava fundamentalmente a partir de denúncias da população. Segundo Reimão, um dos legados deixados pela ditadura é a percepção de que os valores democráticos não são imprescindíveis. “Depois que a prática da censura abre espaço para a mentalidade autoritária, é difícil desmontá-la”, diz a pesquisadora.
A censura na ditadura militar é também tema de estudo de Tânia Pellegrini, professora do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Em seu artigo “Relíquias da casa velha: literatura e ditadura militar, 50 anos depois”, a autora argumenta que o governo militar, buscando legitimar-se e modernizar o país, usou a censura para neutralizar a produção cultural de esquerda, e, à sombra da censura, consolidou uma indústria cultural brasileira, criando e reformulando diversos órgãos de estímulo e controle da cultura. Em relação ao mercado editorial, o governo adotou uma política de subsídios, financiando principalmente a produção de livros técnicos e didáticos, mas estendendo benefícios também a livros de ficção. Os produtos culturais passaram assim a ser controlados material e ideologicamente pelo Estado.
Pellegrini observa que, a partir do final da ditadura, em 1985, emergiram com força na literatura nacional os temas que vinham sendo censurados, e passaram a ter maior visibilidade os setores sociais historicamente excluídos da concepção conservadora de uma almejada identidade nacional.
“Somos uma nação plural, diversa na sua constituição, que abriga as mais diferentes e ricas formas de criação, expressão e práticas culturais e artísticas”, afirma Pellegrini – portanto não existe uma identidade nacional. “A importância de garantir nos livros e em outros produtos culturais a representação da pluralidade das vozes, das ideias e dos comportamentos que compõem a sociedade brasileira é a possibilidade de resistir ao autoritarismo, sempre pronto a censurá-la, pois ela significa a verdadeira negação do pensamento único e da tirania disfarçada em seu oposto.”
Resistir aos “resquícios autoritários”
A Constituição de 1988 vedou a censura e estabeleceu a liberdade de expressão como um dos direitos e garantias fundamentais do estado democrático. Mas o próprio texto constitucional prevê que esse direito pode ser limitado no caso de colisão com outros princípios constitucionais, como o direito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas.
Ivan Paganotti, jornalista e professor da FIAM-FAAM, dedicou-se ao estudo das transformações das instâncias de controle da liberdade de expressão após o veto constitucional à censura. Em sua tese de doutorado “Ecos do silêncio: liberdade de expressão e reflexos da censura no Brasil pós-abertura democrática”, Paganotti defende que o controle estatal sobre a liberdade de expressão foi reposicionado após a Constituição, com o poder judiciário assumindo o espaço de controle comunicativo. Esse deslocamento é problemático porque as decisões judiciais não são tomadas por especialistas em comunicação, nem levam em conta a complexidade do sistema informacional. Além disso, o âmbito judicial afasta a sociedade da arena de decisões que são caras ao exercício democrático.
Com efeito, as brechas legais têm sido usadas para impor a censura a obras literárias. Paganotti destaca um caso grave e recente: contrariando a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de que as biografias dispensariam autorização prévia, foi proibida a publicação da biografia da Suzane von Richthofen, escrita pelo jornalista Ulisses Campbell e com lançamento previsto para janeiro de 2020. “Esse é um caso bem grave porque se encaixa na classificação muito restritiva de censura: quando há uma revisão sistemática e prévia de publicações que podem vir ao espaço público”, explica.
Paganotti também vê como sinal da capilaridade da censura a possibilidade de autoridades do poder executivo determinarem ou a remoção de conteúdo ou o bloqueio na circulação de informação, ainda que momentaneamente, como a tentativa do prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, de recolher da Bienal o romance gráfico Vingadores, a cruzada das crianças, em que constava em uma das páginas o beijo de dois personagens masculinos. Ou o caso do governador de São Paulo, João Doria, pedir o recolhimento de apostilas didáticas que supostamente faziam “apologia de gênero”. Ambas as tentativas foram revertidas no STF, que decidiu pela liberação dos conteúdos. “A gente só mede a força de uma instituição quando ela é tensionada. Até o momento, a reversão de medidas de censura e de ameaças autoritárias tem permitido um moderado otimismo”, diz Paganotti.
Reimão destaca a mobilização de vários segmentos da sociedade contra a arbitrariedade censória no caso da Bienal do Rio como um fato positivo. Para a professora, “compreender, analisar, posicionar-se contra e resistir aos resquícios autoritários do período ditatorial na sociedade brasileira atual é tarefa urgente e indispensável de todos que prezam os valores democráticos”.
Luciana Rathsam é bióloga (Unicamp), especialista em gestão ambiental (USP) e cursa especialização em jornalismo científico no Labjor/Unicamp