Por Ricardo Muniz
Celso Amorim foi ministro das Relações Exteriores (1993-1995, governo Itamar Franco, e 2003-2010, no governo Lula) e ministro da Defesa (2011-2015, governo Dilma Rousseff). Em 2009, foi apontado por David Rothkopf, comentarista da revista norte-americana Foreign Policy, como “o melhor chanceler do mundo”. Entrevista concedida por telefone em 18 de fevereiro de 2021. “O Brasil era parte ativa dos BRICS, e dos quatro parceiros originais, três são os maiores produtores de vacina anti-Covid, ou dos fármacos/insumos para a vacina. Índia, China e Rússia. Era para estarmos inundados de vacina! Então você vê o desastre que tem sido a política externa brasileira.”
Foto: Guilherme Santos
Como a China deve sair da pandemia posicionada geopoliticamente?
Primeiro, já estava previsto. Mesmo antes da pandemia já era previsto que a China despontaria e se tornaria a maior economia do mundo. Já é, em termos de poder de compra. E deve passar ao longo da década, se não houver nada excepcional, em termos de preços de mercado. Então será, sob qualquer critério, a maior economia mundial até o fim desta década. Isso tem um impacto muito grande. Quais as consequências disso é uma outra questão. A pandemia acelera esse processo. Claro que é difícil prever tudo, porque o Biden pode fazer algo em relação à crise climática, por exemplo, e atrair investimentos. Tudo indica, pelo que aconteceu até agora, que esse processo [de predominância chinesa] vai se acelerar. Além dos dados econômicos brutos, temos de pensar em questões mais sutis, políticas. Por exemplo, os EUA nos últimos anos – e não estou falando só do Trump, o Trump foi um paroxismo – não tomou grandes iniciativas, enquanto a China já estava articulando a Nova Rota da Seda. Não estou fazendo nenhum juízo de valor, mas o Estado chinês tem mais poder para direcionar. Nos EUA, por exemplo, é muito difícil direcionar recursos para a cooperação internacional. Na China há mais margem para isso. O outro ponto é a influência da sociedade: a maneira como a China controlou a epidemia internamente levanta a questão de qual é a melhor forma de organização social e política. Simplificando: a gente quer ter liberdade para fazer o que quiser ou uma organização mais solidária? Eu não estou fazendo juízo de valor, mas acho que cresce a atratividade chinesa, tanto pelo lado econômico, a resiliência durante crises (a China cresceu em 2020, ano que em todas as economias afundaram!), quanto a capacidade de lidar com uma grande ameaça à vida. Por tudo isso, sai muito fortalecida no plano internacional. Países importantes como a Rússia já perceberam isso e estão tentando se alinhar.
Agora sob Biden, qual vai ser a reação do poder estadunidense a essa ascensão quase irresistível da China? É possível imaginar a China tomando o posto dos EUA, como a potência global?
A época da hegemonia americana acabou. Aliás, o próprio Obama já tinha percebido isso. Que eu saiba, foi a primeira autoridade norte-americana a falar em multipolaridade. Bem, se vai ser multi ou bipolar, é uma coisa que podemos discutir, mas é inevitável que essa projeção geopolítica da China (sem falar que está aumentando seu poderio militar, ainda que ainda não seja comparável ao de EUA e Rússia) fará com que o país tenha mais influência nas decisões internacionais. O Obama disse que o principal fórum internacional era o G20, onde a China, dentro dos BRICS, já tinha influência. Quando o Trump diz que a China tem muito peso na OMC, tudo bem que ele é um paranoico, mas esse processo é natural: obviamente a China vai ter mais presença. Acho até que, pensando na extensão do que já poderiam fazer, são bem cuidadosos. Ela sempre se coloca como uma potência que não é hegemonista, critica o hegemonismo, mas vamos ver o que a realidade indica, não quero fazer previsões nem negativas nem positivas. A China tem um histórico, mas cada momento histórico tem suas características: o capitalismo comandado pelos europeus teve suas características, o imperialismo ou a hegemonia norte-americana teve suas características, a eventual hegemonia ou domínio chinês terá suas características. Vou reproduzir um comentário do Biden: “competição acirrada [com a China] sim, conflito não”. Essas coisas podem até escapar ao controle, mas a tendência é essa.
Qual é o caráter do Estado e da sociedade chinesa? A China é comunista mesmo ou é outra coisa?
São palavras, não é? O próprio Marx, salvo engano, tem só dois textos em que menciona como seria a sociedade no comunismo: Crítica ao programa de Gotha e A Comuna de Paris. Acho que ele tinha a ideia de uma coisa maior, uma influência direta dos trabalhadores, das massas, nas decisões. Não estava tão preocupado, como nós estamos, com o papel do Estado na economia. Acho que há sim, muito mais do que na Rússia, uma presença do Estado muito marcada, mas também alguns dos maiores milionários do mundo. Não sei se Marx diria que a China é comunista com parte dos maiores milionários do mundo. Há uma direção central muito forte, tenho a impressão de que os capitalistas são muito poderosos na área econômica mas não ditam os rumos da sociedade. O partido comunista mantém o controle e há a busca de uma distribuição de renda. Também há muitos problemas, a China continua com muita desigualdade. A presença do Estado na economia e sua capacidade geral de direcionamento são suficientes para definir o país como comunista? Eu não sei. A realidade desafia um pouco os conceitos.
A grande mídia brasileira sempre qualifica o trato chinês da pandemia como autoritário. O senhor concorda?
Não tenho elementos de observação empírica para falar, mas vou fazer um comentário baseado em um dos artigos que li, da Foreign Policy, que não tem nada de socialista, no início da pandemia, que abordava justamente a maneira como a China lidou com a pandemia e as ações coletivas, em que o autor, um empresário norte-americano, dizia: olha, é engano atribuir tudo a um Estado autoritário, há uma adesão forte das pessoas a uma coisa, ou causa, coletiva. A sociedade tem mais um sentido coletivo. Talvez seja algo mais cultural, porque Coreia do Sul e Taiwan, com regimes totalmente distintos, também controlaram bem.
Qual é o balanço que o senhor faz do estrago já causado pela política externa brasileira, se é que pode ser assim chamada, de Bolsonaro nas relações com a China?
O Brasil construiu uma relação com a China. Inclusive já no governo militar, com Geisel, deu um salto. Não era uma coisa simples para um governo de direita no Brasil. Veja bem, o que Ernesto Araújo diz não encaixa nem com isso, não encaixa com nada. A China estava saindo do maoísmo e o Brasil percebeu que era muito importante ter essa relação e, em meados dos anos 70, começou a ter. Em meados dos anos 80, com a redemocratização, Brasil e China fecharam o maior acordo, naquela época, de cooperação científica e tecnológica entre países em desenvolvimento. No governo Itamar, quando eu era ministro, a primeira visita internacional do presidente Jiang Zemin começa em Seattle, EUA, numa reunião da APEC, faz uma escala no aeroporto de Havana e a primeira visita de Estado foi ao Brasil, quando firma uma parceria estratégica. No governo Lula, Xi Jinping nos visita pouco antes de se tornar presidente. O Brasil estava incluído no grand tour chinês. Hu Jintao já havia visitado. O Brasil era na prática o parceiro estratégico preferencial da China!
Agora não é que há uma ausência de política externa. Com essa atual antipolítica e antidiplomacia (e agressão!) nós jogamos isso fora. Não totalmente, porque claro que a China não vai abandonar o Brasil, mesmo que o Bolsonaro fique, porque continua tendo interesses no Brasil. Os chineses estão buscando presença na África, comprando mais da Argentina, melhorando as relações com os EUA, vão comprar mais dos EUA, estão fazendo um hedge… Não são idiotas! Não são como nós estamos fazendo. Não é ideológico, como a vacina não deveria ser. O Brasil gozava de uma credibilidade que atravessou governos. O estrago é muito grande. Esse capital formidável… O Brasil era parte ativa dos BRICS e, dos quatro parceiros originais, três são os maiores produtores de vacina, ou dos fármacos, insumos, para a vacina, hoje em dia. Índia, China e Rússia. Estou exagerando um pouquinho, mas era para estarmos inundados de vacina! Então você vê o desastre que tem sido a política externa brasileira. Já tinha brigado com a China, tem uma relação fria com a Rússia, problemas até com a Índia, porque na Organização Mundial do Comércio o Brasil se colocou contra as propostas da Índia, que tem um governo de direita mas que se preocupa com o desenvolvimento de seu país. E o Brasil não. Problemas com o governo Biden. O Brasil virou um pária. Alcançaram seu objetivo…
Ricardo Muniz é jornalista (Cásper Líbero, 2004), bacharel em direito (USP, 1993) e mestre em sociologia da religião (Metodista de São Paulo, 2000). Trabalhou em ONG internacional (comunicação e viagens de campo), na Exame.com (repórter de economia), no jornal O Estado de S. Paulo (subeditor de ciência, saúde, educação e ambiente) e no portal G1 (editor coordenador de ciência e saúde). É coeditor executivo da revista digital ComCiência (parceria do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp com a SBPC). Foi professor da especialização em jornalismo científico do Labjor (cursos Comunicação de Universidades e Institutos de Pesquisa e Oficina de Jornalismo – Edição).