Por Leandro Magrini e Luciane Borrmann
Com mais de 20 mil indígenas contaminados e mais de 300 mortos, a saúde dos indígenas na pandemia tem induzido ações de voluntários e campanhas de doação — que levaram à construção de hospitais de campanha no país inteiro. Mas isso não é suficiente para o enfrentamento da doença. Para a antropóloga e demógrafa Marta Maria do Amaral Azevedo, professora e pesquisadora do Núcleo de Estudos de População Elza Berquó (NEPO) da Unicamp, os povos indígenas precisam de atendimento local para Covid-19 antes de a doença chegar a estado grave.
Marta foi presidente da FUNAI (Fundação Nacional do Índio) em 2012-2013 e tem atuado na elaboração e monitoramento das políticas públicas para povos indígenas, além de diversas entidades da sociedade civil. Desde 1978, estuda os povos indígenas voltados à saúde, segurança alimentar, educação indígena, demografia, etnologia indígena e sustentabilidade.
Conforme o último censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2010, há no Brasil aproximadamente 890 mil indígenas autodeclarados, e cerca de 305 etnias diferentes, a maioria vivendo na Região Norte e no ambiente amazônico. Estudo recente realizado pelo IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) e COIAB (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira) mostra que a população indígena da região Amazônica possui uma taxa de mortalidade na pandemia 150% maior do que a já elevada média nacional.
A situação da maioria dos povos indígenas na pandemia é de extrema vulnerabilidade e para dezenas desses grupos o risco de serem dizimados é muito alto. Para etnias como os Akuntsu (afluente do rio Corumbiara, sudoeste de Rondônia) e os Juma (Alto do Tapajós), cujas populações não chegam a dez pessoas, a chegada do vírus provavelmente resultará em seu extermínio.
A antropóloga falou com a ComCiência sobre o enfrentamento da Covid-19 em comunidades indígenas. Acompanhe a seguir.
A princípio, antes da elaboração do Plano Emergencial dos Povos Indígenas no enfrentamento à Covid-19, publicado em junho, o único atendimento previsto era para os indígenas vivendo em terras demarcadas e regularizadas (Terras Indígenas). O atendimento durante a pandemia foi ampliado? Houve alguma mudança?
MARTA: Isso continua assim. A Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), do Ministério da Saúde só está atendendo dentro de áreas demarcadas. Da área de atendimento dos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), os dois Distritos da região Sul estão super bem desenhados. O problema é ter dinheiro, ter funcionários de saúde – o que nunca há – porque eles são contratados pela Missão Caiuá. É um contrato super precário, anual. Então tem um rodízio de profissional de saúde. Não tem material, nem papel, máscara, termômetro, aspirina, nada!
Sônia Guajajara, liderança indígena bastante atuante, costuma dizer que há uma visão hegemônica estereotipada e distorcida de que os povos indígenas são atrasados, primitivos, preguiçosos e por isso atrasam o desenvolvimento econômico e social do país. Como a senhora analisa isso?
MARTA: Há uma visão de que na Amazônia os índios ainda vivem como índios, e fora dela os índios não vivem como índios. Índio é índio, seja da forma como viver; mesmo aqueles que vivem no centro da cidade, ou aqueles que trabalham em empresas – continuam sendo indígenas! Uma coisa é identidade; outra é a maneira de viver, valor. Isso é bem importante de esclarecer.
Se perguntarmos para qualquer cidadão do município de São Paulo se tem povos indígenas na cidade – irão dizer não, imagina, isso só lá na Amazônia! Sendo que na capital há mais de 10 aldeias. Tem terras demarcadas, terras homologadas, e terras não demarcadas, mas ocupadas pelos Guarani-embura no município de São Paulo. Então o desconhecimento é absolutamente imenso.
Apesar de termos conseguido que os indígenas entrassem no Censo demográfico [de 2010], e de muita coisa ter melhorado, ainda assim a visão dos indígenas é muito distorcida. E para o atual Governo, houve a volta daquela visão do século XVI, de que os índios são preguiçosos, letárgicos… Acho que essa pandemia da Covid-19 não adiantou para dar visibilidade.
Quando você tem uma pandemia cuja população mais vulnerável são os idosos e a outra população mais vulnerável são os indígenas, ou aqueles que moram mais longe de um atendimento – e se você não faz nada para essa população, obviamente você está com alguma intenção. Quero dizer, a ausência de intenção também é uma intenção. Tudo é político.
Muitos idosos que transmitem a cultura para o seu povo e líderes que lutam fora de suas aldeias pelos direitos do seu povo, além de sua representatividade dentro das aldeias, estão morrendo. O que significa a perda de idosos e lideranças indígenas?
MARTA: Por isso mesmo que a gente fala em etnocídio, além de genocídio, no caso da Covid-19. Sabemos que a Covid-19 afeta com muito mais gravidade a população idosa…
Quando a gente fez no Núcleo de Estudos de População “Elza Berquó” (NEPO/Unicamp), onde eu trabalho, o índice de vulnerabilidade dos povos indígenas em março (2020), a gente viu isso. A população mais velha, no caso dos indígenas, é de pouco mais de 50 anos. Eles têm uma expectativa de vida mais baixa do que a população pobre das classes D e E, que já têm uma expectativa de vida cerca de 15 anos a menos do que as classes C, B e A no Brasil. Os idosos têm maior conhecimento da cultura, e se todos os velhos morrem, há um impedimento de reprodução cultural. Sem velhos os conhecimentos não estão guardados em lugar nenhum, porque são culturas orais, não são culturas escritas. Nos casos dos índios é uma perda enorme.
Muitas aldeias já estão usando da tecnologia. Elas também estão aproveitando essa tecnologia para guardar essa cultura?
MARTA: Eles filmam muito, gravam muito, mas não tem o mesmo sentido. O problema é esse, a gente acha que é como para nós, grava e substitui. O problema é que para eles, fica gravado; daí eles vão ouvir sentados. Mas nos processos tradicionais de transmissão de conhecimento, esse ensino que os velhos fazem para os jovens não é sentado! É no meio da mata, é nos rituais! Então o sentido da gravação e do guardar ajuda, mas tem outro sentido, diferente do que tem para a gente.
Com esse ritmo de avanço tão grande da disseminação da doença entre os povos indígenas, com sua vulnerabilidade já tão alta, é possível falar em etnias que estão mais vulneráveis?
MARTA: tem o indicador de vulnerabilidade que a gente fez, e os municípios estratégicos para instalar algumas unidades de atendimento aos índios. São dois trabalhos realizados com colegas do IBGE e estão disponíveis no site do NEPO. Estes trabalhos têm acesso aberto para ajudar as políticas públicas, e para que isso contribua para o próprio movimento indígena a se organizar, para evitar e combater a Covid-19. E isso ajudou muito mesmo, porque muitos povos se organizaram, fizeram barreiras sanitárias e pediram doações de EPIs (equipamentos de proteção individual).
Como a epidemia está fora de controle para nós, isso significa que para eles é um ônus ainda maior. Eles estão fazendo barreiras sanitárias 24 horas; estão se alternando, e alguns estão internados não por Covid-19, mas por cansaço, por estafa! Porque eles não dormem, e têm que continuar, uma vez que a epidemia está fora de controle no Brasil.
Temos 305 etnias reconhecidas no país e há dados populacionais efetivos para uma parte destas etnias. Ainda há uma carência muito grande de dados populacionais para várias etnias, e muitas delas chegam apenas a algumas dezenas de pessoas. Há ações específicas sendo realizadas, ou que deveriam ser feitas para proteger os povos indígenas com populações reduzidas?
MARTA: Essa questão da sociedade e povos com população menor – isso foi causado, óbvio, por epidemias e guerras durante o processo de colonização. Então quando você constata uma população de 60 pessoas – isso é uma parte, é o que restou do povo. A gente diz que o povo íntegro ainda é o povo Yanomami, que ainda tem uma população, digamos, ainda grande, num território grande. Um povo que também já sofreu muito, como todos, mas que não se acabou.
O Brasil é o segundo país em diversidade sócio nativa, e isso é super importante. Ter esses 305 povos indígenas no Brasil é um privilégio. É uma riqueza cultural absurda. A gente não está sabendo conversar com eles, aprender com eles. Em geral, a gente vai fazer alguma coisa com o indígena e a primeira coisa que a gente faz é “ensinar”.
E esses povos de menor população estão muito mais ameaçados. Por exemplo, o povo Myky no noroeste do estado do Mato Grosso tem uma aldeia só. Eles são uma aldeia só! E se chegar a Covid-19 lá?! Eles estão fazendo barreira sanitária lá, mas ninguém aguenta fazer barreira sanitária durante um ano.
Por isso digo que é um genocídio e etnocídio! Como uma população de menos de 200 pessoas vai ficar fazendo barreira sanitária? Nas terras dos Myky há dois locais de entrada, além do meio da mata que também dá para entrar. Entra caçador, garimpeiro…
Os povos de menor tamanho populacional realmente são mais vulneráveis. Mas a política é a mesma. Não há nenhuma política diferente a não ser para em isolamento voluntário. Aí sim há uma política específica para esses povos com recente contato e isolamento voluntário, pela falta de conhecimento do que está acontecendo ao redor deles.
O presidente Bolsonaro ao sancionar a Lei 14.021/20 no início de julho vetou diversas medidas essenciais para a prevenção de contágios dos povos indígenas por Covid-19, dentre as quais a obrigatoriedade de fornecimento de água potável. Em seguida, o vice-presidente Mourão disse que “o indígena se abastece da água dos rios que estão na sua região”. Por que a água potável é importante para os indígenas?
MARTA: O que está lá não é só água mas todo um sistema de saneamento e energia que já devia ter sido criado há muito tempo e nunca ninguém fez.
Essa questão da água potável, mesmo morando em lugares longínquos como, por exemplo, no Alto do Rio Negro, e com o crescimento populacional e o manejo do lugar de cada comunidade, muitas vezes esses povos se contaminam com vermes. A incidência e prevalência de vermes e de verminoses entre as crianças acabam deixando as crianças subnutridas.
Então a falta de saneamento e de água potável nas aldeias deixa a população mais vulnerável a qualquer tipo de infecção?
MARTA: A cólera, no começo dos anos 2000, por exemplo, chegou perto. A nossa sorte foi que a cólera não foi para frente porque não sobreviveu às águas ácidas do Rio Negro. Muitas vezes tem incidência de hepatite, até do tipo G, e hepatite tem muito a ver com falta de saneamento. E há várias outras coisas que existem por falta de saneamento e vacinação. A vacinação neste Governo atual também caiu muito. A cobertura vacinal dos índios chegou a cair 15% de uma cobertura que já estava em 90% em alguns distritos sanitários.
São questões muito sérias e todo mundo [que trabalha com essas questões] sabe em quais regiões é mais urgente fazer o saneamento. Existem muitos especialistas no Brasil que sabem, então precisamos de uma mudança na concepção do “não vou fazer nada porque não posso fazer tudo”. Não posso fazer tudo agora, então faz onde é mais urgente, que é aqui por exemplo… em aldeias de regiões mais próximas em que a água potável e o saneamento são mais urgentes, e em regiões mais longe. A água potável é super importante!
Além de toda a gravidade do quadro que a senhora expôs em relação às medidas sanitárias, da contaminação das águas, das doenças infecciosas e contagiosas, ainda tem as contaminações de diversas áreas no entorno de terras indígenas devido ao uso de agrotóxicos em plantações e às atividades de garimpo.
MARTA: Sim, você tem toda razão. Os povos indígenas na região Norte sofrem com o mercúrio e com os peixes que vão comer. O Rio Madeira está inteirinho contaminado por mercúrio e é uma contaminação que afeta os peixes – e isso não some! Os Yanomami [em algumas aldeias] têm uma proporção de cerca de 85% da população contaminada por mercúrio. E isso provoca problemas de saúde muito sérios, problema digestivo, intestinal, muitas vezes neurológico. A contaminação por mercúrio é por conta do jeito absurdo que o garimpo ilegal é feito. Então se vai fazer uma mineração por ouro podia melhorar a tecnologia e não deixar contaminados povos inteiros. Além dos agrotóxicos que são jogados por aviões e acabam contaminando toda a água. Nossos Aquíferos já estão todos contaminados.
Recentemente a jurista brasileira Deisy Ventura, especialista em direito internacional, afirmou que há elementos suficientes para investigar o presidente Jair Bolsonaro por crimes contra a humanidade como o extermínio e o genocídio, com intencionalidade e ações sistemáticas. Há ainda a importância do debate sobre essas investigações como forma de conscientizar a população. Como a senhora vê esse cenário? Acredita que deva haver uma união de entidades indígenas e ONGs defensoras dos direitos indígenas ingressando no campo da disputa jurídica para a responsabilização dos agentes públicos?
MARTA: Eu acredito que sim, que o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), e a Apib, com certeza já estão entrando com ação, inclusive juntas. A OAB tem um núcleo de direitos indígenas com advogados totalmente comprometidos, tem o ISA, uma série de organizações captadas pelo próprio Eloy Terena, advogado que foi ao Supremo (STF) defender a suspensão dos vetos presidenciais ao plano de atendimento emergencial aos povos indígenas frente à Covid-19.
Eu não sou técnica em direito, não trabalho com isso, mas acho super importante esses processos. Quando você assume um cargo público você tem uma obrigação com aquele cargo, há uma missão para qual você é escolhido como servidor público, e se não fizer a função pode ser processado e condenado. Eu acho que o atual presidente da FUNAI tem que ser processado com certeza porque ele não está fazendo o papel pelo qual ele foi escolhido; ele não desempenha a sua missão. Da mesma forma que o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, tem que ser processado porque ele não cumpre o que foi determinado para fazer. Você não assume um cargo público sem responsabilidade. Isso é um absurdo, um escândalo.
Para mim este é o maior escândalo do Governo Federal hoje em dia. As pessoas que estão lá não tem responsabilidade, não tem compromisso, não tem ética, não tem moral, não tem valores humanos. São todos sociopatas. Essa é a definição de sociopatia. As pessoas não têm empatia nenhuma com o coletivo ao qual estão servindo. Na verdade, eles estão lá para enriquecer mais…
Acho que apesar da Covid-19, os povos indígenas continuam muito invisíveis, mesmo nessa pandemia. E acredito que esses processos têm que acontecer porque a justiça tem que ser feita; a justiça social tem que ser feita. É muito importante que se dê visibilidade a estes processos. Os jornalistas têm que estar mais atentos a estes processos. Acho que poucas pessoas sabem, por exemplo, que no Tribunal Internacional de justiça de Haia os Salesianos foram condenados em 1988 pelos maus tratos aos povos indígenas. Assim como os povos Xavantes que eram mantidos em internatos, presos, a partir dos sete anos de idade. Os Salesianos tiravam as crianças das mães e colocavam no internato até completarem 18 anos. Isso impedia que os povos indígenas fizessem todas as festas de iniciação das meninas e dos meninos. Então você arrebenta com a produção cultural do povo. Isso é super grave. Isso no caso é um etnocídio!