Por Patricia Santos
Ciência e tecnologia aplicadas à agricultura impactam diretamente a produção, e chegam à população na forma de produtos, como é o caso de alimentos transgênicos. Nesse processo, é necessária a aprovação de órgãos reguladores. Mas como funciona um órgão dedicado a esse tipo de questão?
Esse é o enfoque de um estudo de autoria do pesquisador Paulo Fonseca, do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Fonseca analisou o caso da CTNBio, a Comissão Técnica Nacional de Biotecnologia, e verificou como as dimensões políticas e sociais estão presentes na atuação da comissão.
O autor aponta que, quando a CTNBio foi criada, nos anos 1990, houve controvérsias sobre a sua competência. Não estava claro se o órgão daria a palavra final ou serviria para aconselhar decisões em assuntos de biossegurança e biotecnologia. Isso mudou com uma lei de 2005, estabelecendo que a CTNBio, composta por 27 membros-peritos, passaria a ter poderes consultivos e deliberativos, mas emitiria pareceres técnicos. Já as decisões que envolvessem assuntos socioeconômicos ficariam a cargo do Conselho Nacional de Biossegurança, formado por ministros de governo.
Por um lado, a comissão se coloca como transparente e isenta de interesses. Em seu site, há diversos documentos que registram como a CTNBio atua. O órgão tem audiências abertas ao público, e as normas de seleção de membros exigem comprovada capacidade técnica e científica.
Por outro lado, essa legitimidade é contestada até mesmo por membros que fazem parte da comissão. De 2005 a 2007, a CTNBio não aprovou nenhum produto para comercialização. As decisões precisavam ser aprovadas pela maioria qualificada dos membros, pelo menos dois terços. Uma mudança na lei alterou essa exigência, permitindo que, com maioria simples, já seria possível bater o martelo.
“Apenas dois meses depois, em maio de 2007, o milho transgênico T25, comercialmente conhecido como Liberty Link, teve uso comercial liberado pela CTNBio, com o mesmo placar [anterior à mudança na lei], de 17 votos favoráveis e 4 contrários”, diz Fonseca. E, na sequência, veio uma série de outras aprovações. Nenhum pedido deixou de ser atendido.
Antes da mudança, havia um grupo que se opunha a derivados de engenharia genética – membros-peritos da área da saúde pública, meio ambiente e agricultura familiar. Os defensores da medida argumentaram que a lei foi alterada para sair do impasse e evitar que o plantio acontecesse de forma ilegal.
Na visão do autor, as decisões da comissão não são tão objetivas. Em vez de um colegiado com diferentes conhecimentos contribuindo para a análise dos riscos relacionados a produtos da ciência e tecnologia, o que se vê é uma polarização. Um lado acusa o outro de ter razões políticas e ideológicas, não sendo suficientemente “científico”. Outra perspectiva seria reconhecer que não há consenso, uma vez que a questão da biossegurança e dos organismos geneticamente modificados é realmente profunda, difícil de lidar.
Deixando de considerar o mérito de cada grupo, a análise de Fonseca é que essas disputas internas podem sugerir que “a CTNBio não é uma comissão isenta de influências de posicionamentos ideológicos, mas que suas dinâmicas internas reproduzem as disputas políticas que ocorrem em um nível social mais amplo”. E não é isso que se espera da comissão.
A dinâmica da CTNBio tem fragilidades em sua atuação, e a possível a raiz está em pressupor que ciência e política são campos separados. A própria comissão concentra autoridades científicas e políticas, portanto, há uma mistura dessas dimensões, segundo o autor. Isso coloca em questão sua legitimidade epistêmica, ou seja, a maneira como constrói o conhecimento ao desempenhar suas funções.
CTNBio concentra decisões
Outro fato observado pelo autor do estudo é a ausência do CNBS, o órgão para as decisões que têm implicações sociais e econômicas. Isso seria feito a partir dos pareceres técnicos da CTNBio, e o conselho, inclusive, poderia contestar as posições da comissão. No entanto, o CNBS se reuniu apenas três vezes de 2008 a 2016, e, até então, confirmando decisões da CTNBio.
Na prática, o Brasil tem uma única comissão concentrando as decisões – e não por consenso entre os membros. No modelo regulatório brasileiro, as agências, como a Anvisa, não interferem. Nos Estados Unidos e outros países desenvolvidos, é mais comum surgirem questionamentos sobre órgãos de aconselhamento científico.
O autor conclui que a CTNBio não é norteada pelas demandas da sociedade brasileira ou do sistema regulatório, mas atua a partir das dinâmicas dos grupos em cena. Nessa atuação, os opositores aos transgênicos têm tido menor visibilidade. Enquanto isso, a divisão interna na CTNBio continua. Nos níveis técnico e político também permanece aberta a controvérsia sobre riscos e benefícios dos transgênicos e, em geral, sobre o modelo brasileiro de regulação e ciência.
O artigo intitulado “A representação da CTNBio na vida cotidiana: um estudo de caso sobre a dramaturgia dos peritos na ciência regulatória brasileira” foi apresentado na 11ª edição das Jornadas Latino-Americanas de Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia – Esocite, em julho de 2016.
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