Por Bianca Bosso
“Gestão ambiental adotada por nossos governantes, principalmente nestes últimos dois anos, é uma das principais ameaças em termos de expormos a população brasileira a novos vírus. No Brasil a principal ameaça do ponto de vista de novas pandemias vem do contato com novos vírus em áreas de desmatamento. Ainda não tivemos nenhum caso de pandemia iniciada no Brasil, mas é uma bomba-relógio”
Carlos Joly é pesquisador do Instituto de Biologia e do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (Nepam) da Unicamp. Coordena o programa Biota-Fapesp, projeto de mapeamento e análise da biodiversidade do estado de São Paulo, avaliando possibilidades de exploração sustentável de plantas e animais com potencial econômico, além de subsidiar a formulação de políticas de conservação dos remanescentes florestais.
Em um momento cercado de incertezas e crises sanitárias e ambientais globais, Joly destaca a importância de repensar a produção de alimentos e alerta sobre a irreversibilidade de recuperação de patrimônios naturais.
Como a gestão ambiental governamental pode ser relevante no enfrentamento da atual pandemia e no contexto do surgimento novas pandemias?
A gestão ambiental adotada por nossos governantes, principalmente nestes últimos dois anos, é uma das principais ameaças em termos de expormos a população brasileira a novos vírus e a possibilidade de novas pandemias. Isso porque no Brasil a principal ameaça do ponto de vista de novas pandemias vem do contato com novos vírus em áreas de desmatamento. Assim, a aceleração do desmatamento, principalmente na região amazônica, tem colocado o homem em contato com essas ameaças. Ainda não tivemos nenhum caso de pandemia iniciada no Brasil, mas é uma bomba-relógio: em algum momento pode acontecer. A atual política de gestão governamental aumenta essa ameaça ao voltar a um processo de desmatamento, de queima da vegetação nativa e, portanto, exposição do homem cada vez mais a novos vírus e ameaças.
Como esse processo interfere na incidência de queimadas, que estão atingindo números impactantes esse ano?
O material proveniente do desmatamento fica no solo e alimenta as queimadas no ano seguinte. Esse ano tivemos queimadas ainda mais intensas do que no ano passado na Amazônia, no Pantanal e no Cerrado. As queimadas no Pantanal e no Cerrado estão associadas não só ao desmatamento, mas também a uma consequência já perceptível deste processo que é a diminuição das chuvas na região Centro-Oeste. As chuvas que eram geradas na região amazônica este ano vieram em menor quantidade. Além disso, temos um ano excepcionalmente quente. A junção desses dois fatores (a seca e as temperaturas elevadas) tornam essas áreas altamente suscetíveis às queimadas.
Como é possível equilibrar o aumento da demanda de alimentos e matérias-primas, inerente ao aumento da densidade populacional, com a sustentabilidade e preservação do meio ambiente?
O Brasil não precisaria aumentar a área de exploração agropecuária para aumentar sua produção de alimentos. É óbvio que em um mundo com população crescente, a necessidade de alimentos é cada vez maior, mas a questão é que temos milhões de hectares subutilizados, de pastagens abandonadas que não têm mais produtividade, ou com quantidade ínfima de cabeças de gado. Essas áreas poderiam ser recuperadas facilmente com a tecnologia disponível pela Embrapa, para que tivéssemos uma produção maior, passando de menos de um boi por hectare (que é o que temos na Amazônia nas áreas já desmatadas e transformadas em pasto) para três a quatro bois por hectare. Portanto, nossa produção animal poderia crescer significativamente sem que fosse necessário derrubar uma árvore a mais. Da mesma maneira, se as áreas subutilizadas de pastagem fossem recuperadas e utilizadas para a agricultura, também teríamos um aumento da produção de alimentos. É preciso destacar que o trabalho feito pela Embrapa e pelo Instituto Agronômico de Campinas no melhoramento e desenvolvimento de novas variedades de plantas aumentou significativamente a produção sem que houvesse a necessidade de aumentar a área ocupada por essas culturas. Se tivéssemos investimento tecnológico na pecuária semelhante ao que temos na agricultura, teríamos uma produção elevada sem que fosse preciso aumentar a área.
Quais as consequências disso?
O Brasil está queimando seus recursos naturais quando sabemos que a floresta em pé tem um valor muito maior do que a área derrubada e transformada em pastagem. Se explorada de maneira seletiva e planejada, é possível aproveitar as madeiras nobres e produtos não madeireiros, como o açaí – que já é a principal fonte de renda de estados como Pará e Amapá. Esse extrativismo controlado, mantido de forma planejada, permite que a floresta gere grande quantidade de produtos. Além disso, a floresta presta serviços ecossistêmicos de grande valor. A floresta amazônica é responsável por equilibrar o clima em praticamente toda a América Latina, uma vez que regula a formação de nuvens que são transportadas e irrigam de forma significativa a região Centro-Oeste e Sudeste. A quebra deste ciclo, como ocorreu este ano, é o que leva a situações como as que estamos vivendo na região central do Brasil e no Pantanal. Certamente isso também está influenciando a região Sudeste, onde vários municípios estão decretando um racionamento porque os reservatórios de água estão com níveis muito abaixo do necessário.
E quanto às obras de remanejamento para transportar água para locais mais secos?
Várias obras foram feitas. As obras físicas resolvem o problema de transportar a água de um lugar para o outro, mas a produção de água e a manutenção dos lençóis freáticos depende da cobertura vegetal. A restauração de florestas ciliares a médio e longo prazo permitiria que o abastecimento dos reservatórios não dependesse exclusivamente das chuvas sazonais.
Como as mudanças climáticas influenciam e podem ser influenciadas por esses processos?
Temos uma situação circular de retroalimentação. As queimadas e a flutuação do clima interrompem o ciclo natural de chuvas, resultando na elevação das temperaturas e em uma seca jamais vista nos últimos 50 anos. A junção desses fatores acaba favorecendo a expansão das queimadas. Essa situação, unida também aos atrasos na contratação de brigadistas por parte do governo (que agravou ainda mais as queimadas) e pela busca desenfreada pelo lucro dos grandes fazendeiros, está destruindo a imagem do Brasil no exterior, o que prejudica inclusive a exportação.
O ano de 2020 era considerado um ano decisivo para questões relacionadas à biodiversidade e à crise climática global. Como isso se desenrolou?
Agora em outubro estaria acontecendo a 15ª Conferência das Partes da Convenção da Biodiversidade, em que estabeleceríamos novas metas, estratégias e datas para reverter o processo de perda de biodiversidade, redução da perda de hábitat e aumento das condições de conservação nas próximas décadas. Seria o ano da biodiversidade no mundo, mas acabou se tornando o ano da queima da biodiversidade, da destruição. Seja no Brasil, em nossos países limítrofes, ou na Austrália, as queimadas são realmente como se o planeta tivesse decidido incinerar sua biodiversidade e, com isso, estamos acelerando a extinção de espécies. Sempre precisamos lembrar que a extinção é um processo irreversível, já que aquela combinação genética existe exclusivamente naquela espécie e, uma vez perdida, é para sempre. Em vez de temos um ano da consagração da biodiversidade como um elemento fundamental que dá sustentação aos serviços ecossistêmicos dos quais nós dependemos, estamos tendo um ano em que a biodiversidade está sendo incinerada.
Bianca Bosso é formada em ciências biológicas pela Unicamp e bolsista Mídia Ciência (Fapesp).