O hábito de tomar café na Inglaterra nos séculos 17 e 18 influenciou a história das ideias e até instituiu a forma com que notícias são organizadas em jornais
Sabine Pompeia
O café foi a base da economia nacional a partir da Independência e é atualmente a nação que mais produz e a segunda que mais consome esses grãos no mundo. Mas antes mesmo da chegada das primeiras mudas, nos anos 1730, a bebida já interligava jornalismo e ciência pelo mundo.
Surgiram no século 17, na Inglaterra, estabelecimentos especializados em servir a nova bebida. Cada um desses locais passou rapidamente a concentrar pessoas interessadas em discutir e ler sobre assuntos específicos, que variavam entre cafés. Nasceu então a ideia de publicar um jornal em que seriam cobertos separadamente os debates feitos em diferentes cafés. Isso deu origem às seções de jornais, incluindo aquelas dedicadas aos conhecimentos sobre as ciências.
Café na Europa do século 17
O hábito de tomar café popularizou-se de forma pioneira no Império Otomano (cuja capital era Constantinopla, atual Turquia) no século 16, que importava grãos de café de outras localidades. Todavia, os efeitos da bebida eram vistos com bastante receio pelas autoridades, pois muitos imãs acreditavam que ativava a mente assim como bebidas alcoólicas, proibidas pela religião muçulmana. Além disso, circulavam nos cafés ideias novas e muita discussão sobre política, fatores que levaram governantes turcos a proibir o consumo de café várias vezes ao longo dos séculos 16 e 17. Diversos comerciantes desta bebida emigraram então para a Europa, onde abriram novos negócios. Segundo Ana Luiza Martins, historiógrafa e membro da Academia Paulista de História, em seu livro História do café, “O modelo da casa de café – a cafeteria -, como ponto de encontro e lugar de convívio social, vingou pelo mundo afora, atestando não só a ampla disseminação da bebida mas, sobretudo, a função celebrativa, advinda de seu próprio teor, estimulante e liberador de emoções”.
Produção de conhecimentos
Os venezianos foram os primeiros a comercializar café na Europa, a partir de 1615, de acordo com Martins. Porém, havia na época “uma construção da Turquia como lugar de prazeres, de sexualidade exuberante, graças à qual o café era visto com desconfiança pela igreja”, afirma o historiador Leandro Karnal. Devido a essa resistência inicial ao consumo da bebida, somente décadas depois os locais que serviam café tornaram-se mais socialmente aceitáveis e passaram a agregar pessoas que lá faziam discussões abrangendo história natural, filosofia, literatura, arte, comércio e política.
Nesse cenário, é importante considerar que na Europa eram consumidas vastas quantidades de cerveja em casa, no trabalho, bares e afins. Além de servir como nutriente, era mais seguro beber cerveja que água. Isto acontecia porque seu processo de produção evita a proliferação de micro-organismos que causam doenças e que estavam presentes na água, em decorrência das más condições sanitárias. Já que quantidades moderadas a altas de álcool levam à letargia e dificuldades de concentração, substituir cerveja por um estimulante como o café em ocasiões sociais mudou completamente a forma como as pessoas interagiam.
Luiz Marques, professor colaborador do Departamento de História da Unicamp, enfatiza que o contrataste dos efeitos do café e do álcool, assim como a importância do café para o iluminismo francês, já tinham sido identificados no século 19 na célebre obra História da França, de Jules Michelet: “Destrona-se o cabaré, o cabaré ignóbil onde, no governo de Luís XIV, os jovens rolavam entre barris e multas (…). O reinado do café é o da temperança. Café, o licor sóbrio e poderosamente cerebral, que, ao contrário das bebidas espirituosas, aumenta a clareza e a lucidez (…) impondo o álibi do sexo através da excitação da mente”.
Com efeito, as discussões políticas nos cafés da França foram motivadoras da Revolução Francesa. Um pouco antes, do outro lado do Atlântico, interesses econômicos associados ao comércio do chá (que também contém cafeína) impulsionaram a Independência dos Estados Unidos, como detalhado no livro História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI, de Leandro Karnal, especialista em história da América. Segundo ele, a Festa do Chá de Boston, um dos estopins do movimento que levou à esta revolução pelos colonos, “foi a rejeição às leis mercantilistas, contra a exploração [britânica] que impunha sobretaxas ao chá”. Em seu livro, Karnal adiciona que isto resultou numa substituição do consumo do chá por café e chocolate pelos estadunidenses, hoje os maiores consumidores do mundo.
Na Alemanha, o café ganhou notoriedade apenas no século 18. “Ah, como é doce o café! Mais adorável que mil beijos, mais suave que vinho moscatel. Café, preciso tomar café” é parte da letra da Cantata ao café, musicada pelo compositor Johann Sebastian Bach no anos 1730, lembra Karnal.
Inglaterra: os cafés e as notícias
Foi na Inglaterra que se estabeleceu a relação entre café e notícias, como detalhado no livro de Steward Lee Allen, The Devil’s cup (O copo do Diabo). O primeiro café britânico foi aberto no início da década de 50 do século 17 e, já em 1675, havia mais de três mil destes estabelecimentos espalhados pelo país. Um desses, aberto na cidade de Oxford, cobrava um centavo (penny) pela entrada e permitia a leitura de novidades impressas num papel (news papers) produzido pelos proprietários, algo que rapidamente se espalhou. Nestes locais, passou a haver também muita discussão sobre toda sorte de assuntos. Diferentemente dos cafés franceses, que tendiam a agregar a elite intelectual, os ingleses incluíam pessoas de diferentes origens e classes sociais. Para aquecer as discussões, funcionários continuamente corriam entre os cafés levando e trazendo notícias (os chamados runners, corredores).
Os fóruns de discussão em cafés na Inglaterra levaram à fundação de instituições que influenciaram profundamente a economia mundial, bem como a formação de teorias científicas. Por exemplo, capitães de navios e aqueles que os financiavam eram habitués do Lloyd’s coffee house e ali tiveram a ideia de fundar uma seguradora para seus negócios, a Lloyds, que existe até hoje. Frequentadores do Jonathan’s coffee house, por outro lado, lá criaram a bolsa de valores de Londres. Na Grecian coffee house, membros proeminentes da sociedade científica Royal Society, como Isaac Newton e Hans Sloan, debatiam suas ideias e descobertas, que começavam a ser publicadas em periódicos especializados. Tais periódicos, todavia, não eram acessíveis ao grande público – mas que, ao frequentar os cafés, tinha a oportunidade de conhecer os assuntos.
Havia grande controle e censura sobre notícias locais por parte das autoridades para evitar a disseminação de fatos que contrariassem interesses governamentais. Um dos primeiros jornais ingleses de longa circulação foi a London Gazette (inicialmente chamado de Oxford Gazzette). Foi o único jornal inglês oficial que circulou entre 1665 e 1695. Sua importância inclui o fato de que algumas de suas características foram copiadas por muitos outros veículos de imprensa e persistem nos jornais atuais, como apresenta em um artigo Natasha Glaisyer. O jornal trazia o título da publicação e a data; era impresso frente e verso em colunas verticais com letras pequenas, o que permitia incluir mais informações por página; continha também classificados. Diferentemente dos jornais de hoje, porém, tinha apenas duas seções de notícias. A primeira contava com artigos curtos focados em notas internacionais, organizados em ordem cronológica, cujas manchetes eram informações sobre o local e a data do ocorrido. A segunda seção listava avisos locais, incluindo datas de reuniões comerciais.
A partir da última década do século 17, muitos novos jornais surgiram graças ao desenvolvimento da eficiência do sistema postal, que aumentou seu alcance. Houve também a flexibilização na regulação da imprensa em 1695. A concentração de pessoas em cafés passou também a atrair comerciantes de jornais, que lá podiam distribuir suas publicações com facilidade. Neste contexto, um escritor e político chamado Richard Steel teve uma ideia: publicar um jornal (The Tatler, 1709) que reunisse as fofocas e discussões que ocorriam em vários cafés de Londres. Para assegurar a cobertura de uma variedade de assuntos, os textos foram organizados em seções “por casas de café”, pois cada uma agregava pessoas com interesses comuns e que diferiam entre cafés. Segundo o editorial de Steel no primeiro número deste periódico “Todos os relatos sobre […] poesia [estarão em artigos] sob a seção do Will’s coffee-house; conhecimentos, sob o título Grecian[…]“. Foi isso que deu origem às seções de jornais, publicações que até hoje contêm matérias agregadas por temática.
Tratar de política e economia em jornais não era novidade – a não ser pelo fato que esses assuntos passaram a ser agrupados. Mas foi uma inovação ter uma seção de um jornal com foco em notícias que abrangiam conhecimentos em história natural (baseadas em discussões na Grecian coffee house), sobre as quais o público estava sedento. A despeito disso, a inclusão de uma seção inteiramente dedicada à ciência em um jornal de notícias foi iniciada somente em 1978, no New York Times.
Cafeína e igualdade entre sexos
Era mal visto que mulheres frequentassem cafés nos séculos 17 a 19. A elas cabia outro papel social, ilustrado pelos assuntos superficiais tratados na versão para mulheres do jornal The Tatler (The Female Tatler, lançado também em 1709): normas de decoro e a arte da conversa (veja aqui o conteúdo de uma edição deste jornal). Destaca-se, contudo, que a versão do The Tatler para mulheres figurava uma outra inovação: jornalistas do sexo feminino.
Apenas no início do século 20 outro tipo de estabelecimento na Inglaterra passou a agregar uma clientela feminina e que servia cafeína: as casas de chá. Foi nestes locais que surgiu e foram disseminados os movimentos feminista e de sufrágio universal, que contaram com muitas mulheres cientistas e jornalistas. Considerando a popularidade do chá entre ingleses, é surpreendentemente que o hábito de consumir a bebida tenha sido introduzido ao país apenas em 1662, após a abertura dos primeiros cafés; mais inesperado ainda é que a responsável por isso tenha sido Catarina de Bragança, esposa portuguesa do monarca inglês Carlos II, comenta Karnal. O consumo de chá, inicialmente, era restrito às classes sociais mais elevadas.
Sabine Pompeia é psicofarmacologista, docente do Departamento de Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo e aluna de especialização do Laboratório de Jornalismo Científico (Labjor/Unicamp).