Caça-fantasmas: Como físicos estudam a partícula que menos interage na natureza?

Imagem: Kamioka Observatory, ICRR (Institute for Cosmic Ray Research), The University of Tokyo

Por Eduardo A. Sato

Partículas elementares são os tijolos do mundo microscópico, elas formam tudo que conhecemos: nossas células, nossas casas, nosso planeta e até mesmo nosso universo. E desse grupo, os neutrinos são os antissociais, aqueles que não gostam de interagir com ninguém, recebendo o carinhoso apelido de “partícula fantasma”. Eis aqui a missão dos físicos de neutrinos: estudar o que não pode ser visto!Entenda uma coisa, na física, mais importante que as partículas são as interações. O que seriam dos tijolos sem o cimento? Bom, ainda poderíamos empilhá-los, e teriam alguma utilidade. Mas se não houvesse nenhum tipo de interação entre os tijolos, eles simplesmente atravessariam um ao outro. Indo mais longe, se as partículas dos tijolos não interagissem, nem formariam um tijolo. Aliás, você não conseguiria ao menos ver essas partículas dado que não interagiriam com a luz. Existir é interagir.

Até o presente momento, conhecemos quatro tipos de interações fundamentais entre partículas, são elas: a eletromagnética, a gravitacional, a nuclear forte e a nuclear fraca. Neutrinos não interagem através da força forte ou da força eletromagnética. Além disso, suas interações gravitacionais são desprezíveis. E a força fraca é, como o nome diz, fraca.

Na Terra, a cada segundo passam cerca de 66 bilhões de neutrinos por centímetro quadrado, o que é mais ou menos o tamanho do seu polegar. No entanto, a chance de um deles interagir com a gente é mínima – logo, não sentimos esse fluxo. Neutrinos interagem tão pouco com a matéria que mesmo ao atravessar um ano-luz de chumbo, apenas metade do seu fluxo é absorvido.

Mas se os neutrinos interagem tão pouco, por que estudá-los? Na verdade, é esta característica que os tornam tão interessantes!  Os neutrinos que mencionei no parágrafo anterior vêm do Sol e são produzidos nas reações de fusão nuclear, as mesmas que geram a energia para manter o Sol queimando. Depois da produção, são emitidos em todas as direções, e os que chegam à Terra o fazem em pouco mais de 8 minutos depois de sua produção. Para se ter uma comparação, os fótons, que são partículas de luz, produzidos nessas mesmas reações, demoram mais de 100 mil anos para chegar a Terra! Isso faz com que estudar os neutrinos seja uma ótima maneira de entender melhor o Sol, nossa principal fonte de energia.

E mesmo que você não se interesse por astronomia, temos razões bem práticas para tentar entender melhor os neutrinos, pois eles são produzidos em fissões nucleares como as que acontecem em reatores nucleares. Como é praticamente impossível barrar o fluxo de neutrinos, podemos usá-los para monitorar reatores remotamente, como acontece no reator nuclear de Angra dos Reis, no Rio de Janeiro. Além disso, alguns físicos acreditam que seja até mesmo possível localizar reatores nucleares clandestinos usando um detector de neutrinos!

E mesmo que não houvesse perspectivas tão interessantes, acredito que ainda assim muitos físicos tentariam detectar esses neutrinos, afinal a ciência é movida pelo desafio e pela curiosidade! E então, como detectar essa partícula fantasma?

Os experimentos

Para a física quântica, tudo funciona baseado em probabilidades. Assim, mesmo que pequena, existe uma chance de o neutrino interagir com a matéria. Logo a estratégia é simples: aumentar o número de alvos com que o neutrino possa interagir!

Um tipo bastante comum de detector consiste em um grande tanque de água pesada, por exemplo, o Super-Kamiokande (Super-Kamioka neutrino detection experiment, ou super experimento de detecção de neutrinos de Kamioka), que é um detector no Japão composto de um reservatório de 50 mil toneladas de água pesada e ultrapura.

Kamioka Observatory, ICRR (Institute for Cosmic Ray Research), The University of Tokyo

Quando um neutrino interage com uma partícula na água, emite um elétron, e como os neutrinos normalmente possuem altas energias, comparáveis com a radiação gama, esse elétron estará com uma velocidade mais rápida que a velocidade da luz na água. Sempre que uma partícula carregada tem velocidade superior à velocidade da luz no meio, ela emite um brilho conhecido como radiação Cherenkov, que pode ser detectado por um aparelho chamado fotomultiplicadora.

Para não perder nenhum desses raros eventos, o Super-Kamiokande é envolto com 13 mil dessas fotomultiplicadoras! Dos neutrinos solares que passam pelo experimento, cerca de 15 mil são detectados por ano. Comparado ao fluxo inicial são poucos eventos, mas já fornecem uma quantidade imensa de dados.

Família fantasmagórica

Os neutrinos que mencionei até agora são do tipo eletrônico, porém neutrino é o nome de uma família de partículas. Além do neutrino eletrônico, temos o neutrino muônico, o neutrino tauônico e suas respectivas antipartículas. Esses nomes são devidos às partículas que aparecem no experimento quando o neutrino interage com ele.

Por exemplo, raios cósmicos são partículas superenergéticas que vêm do espaço. Ao colidir com a atmosfera produzem muitas partículas, entre elas o neutrino muônico, que ao interagir com o experimento produzirá um múon, que é uma partícula muito parecida com o elétron, mas cerca de 200 vezes mais pesada.

Uma tarefa importante para diferenciar os tipos de neutrinos é descobrir através da radiação Cherenkov (o brilho emitido pelas partículas carregadas rápidas) detectado pelas fotomultiplicadoras, qual partícula se formou no tanque, pois assim podemos identificar o tipo de neutrino detectado.

Camaleões do mundo quântico

Outra propriedade que destaca os neutrinos das demais partículas é o fato que eles podem mudar de tipo enquanto viajam. Voltemos ao caso dos neutrinos solares, analisando as interações que acontecem no Sol, sabemos que esses são neutrinos eletrônicos.

Usando a teoria da física de partículas, podemos calcular a probabilidade desses neutrinos interagirem com nosso detector e, vendo quantos eventos foram detectados, é possível calcular quantos neutrinos foram emitidos pelo Sol.

Porém, se nosso aparato só consegue detectar neutrinos eletrônicos e não considerarmos essas possíveis mudanças de tipo, vamos calcular um número menor que o previsto usando teorias que descrevem o Sol. Isto aconteceu na história da física e ficou conhecido como o problema do neutrino solar.

Esta propriedade camaleônica que resolve o problema do neutrino solar ficou conhecida como “fenômeno de oscilação de neutrinos”, uma das grandes descobertas desse século que rendeu a Takaaki Kajita e Arthur McDonald o prêmio Nobel de Física de 2015.

Novos experimentos

Os neutrinos apresentam propriedades bastante curiosas e diferentes quando comparados com as demais partículas conhecidas, isso instiga os físicos a investigá-los. Atualmente vários novos experimentos estão sendo elaborados e o que mais se destaca é o chamado Dune (Deep Underground Neutrino Experiment, ou em português, experimento de neutrinos subterrâneo profundo).

O Dune será construído nos Estados Unidos, no Fermilab (Fermi National Accelerator Laboratory, ou em português, Laboratório Acelerador Nacional Fermi). O famoso laboratório já abrigou o Tevatron, que antes do LHC era o maior acelerador de partículas do mundo, e contará com dois detectores: um no próprio Fermilab bem em frente ao feixe de neutrinos criado, e outro no Surf (Sanford Underground Research Facility, em português, instalação de pesquisa subterrânea de Sanford) 1.300 quilômetros distante.

Aproveitando que neutrinos interagem pouco, após serem produzidos no acelerador eles vão de um detector ao outro através da Terra. De fato, não faz sentido algum investir em uma estrutura de condução para partículas que atravessam a Terra como se ela não existisse!

Uma coisa interessante é que os detectores desse experimento não funcionam com água, mas sim com argônio líquido, pois permite uma melhor resolução das interações, mostrando não só que a reação ocorreu, mas a trajetória e as energias das partículas envolvidas. O detector do Dune será composto de quatro tanques com um total de 68 mil toneladas de argônio, que devem ser mantidos a pelo menos -184°C para permanecer líquido.

Quando partículas interagem com o argônio, este pode ser excitado e emitir o que conhecemos como luz de cintilação. Detectá-la é fundamental para o funcionamento do experimento, pois ela informa o instante em que a reação começa, servindo como uma espécie de “gatilho”, que permite a reconstrução dessa interação usando os demais dados do detector.

Porém, a luz de cintilação do argônio está em uma frequência que os detectores comerciais não funcionam, então foi preciso criar uma nova tecnologia para esse fim – e que está sendo produzida no Brasil.

Contribuição brasileira – Arapuca

A Arapuca (Argon R&D Advanced Program at Unicamp, ou em português, Programa Avançado de Pesquisa e Desenvolvimento em Argônio na Unicamp) é um detector de fótons desenvolvido para detectar essa luz de cintilação, e será um dos principais detectores no Dune. Como o nome sugere, é fruto de pesquisas brasileiras, afinal arapuca é um nome de origem Tupi que significa armadilha de pássaros.

O princípio de funcionamento é baseado em duas componentes: um wavelength shifter, que é um material que absorve luz em uma determinada frequência e a reemite em outra, efetivamente servindo como algo que troca a frequência da luz, e um filtro dicroico, que é um material transparente para a luz em algumas frequências e refletor para outras.

Ao chegar à arapuca, a luz de cintilação passa por um wavelength shifter e é convertida para uma frequência onde é transparente para o filtro dicróico. Esta então atravessa o filtro e passa por um segundo wavelength shifter, indo para uma frequência onde o filtro é reflexivo. As demais paredes do detector são feitas de um material bastante reflexivo, então a luz fica presa nessa caixinha.

Dentro da arapuca existe um sensor de luz que funciona bem para a frequência obtida após o segundo shifter, então a luz fica refletindo dentro da arapuca até ser detectada pelo sensor ou absorvida pelo material, uma verdadeira armadilha de luz!

O que nos espera no futuro?

Um grande esforço mundial está sendo feito na construção de experimentos como o Dune e temos grandes perspectivas. Uma possibilidade é investigar quão similar é o comportamento de neutrinos e antineutrinos. Isto pode dar uma pista importante para a cosmologia, em que pequenas diferenças podem ser importantes.

Nós físicos acreditamos que quando o universo surgiu quantidades iguais de matéria e antimatéria foram criadas, porém quando elas se encontram tendem a se aniquilar. Se esse equilíbrio entre matéria e antimatéria se mantém por muito tempo, toda a matéria do universo seria aniquilada, não sobrando o suficiente para formar as galáxias e outras estruturas que conhecemos.

Talvez neutrinos sejam a chave para entender este enigma que assombra os cosmólogos desde que descobrimos a existência de antimatéria, pois um comportamento diferente entre partículas e antipartículas pode criar um desbalanço no universo primordial, que formará as estruturas que conhecemos.

E talvez descubramos algo completamente novo e inesperado. A física de neutrinos ainda é recente e mesmo assim já deu resultados excepcionais. Quem sabe o que realmente virá pela frente? Os caça-fantasmas continuam sua busca em entender essa partícula tão diferente, e não esperam nada menos que resultados surpreendentes!

Eduardo A. Sato é bacharel e mestre em física pela Unicamp e atualmente faz doutorado estudando o papel das antipartículas na evolução do universo.

Revisão técnica: Mônica S. Nunes

Referências

[1] What’s a neutrino?            All things neutrino, Fermilab, disponível em: https://neutrinos.fnal.gov/whats-a-neutrino/. (acessado em: 24/09/2019).

[2] What are solar neutrinos?            Super-Kamiokande collaboration website, disponível em: http://www-sk.icrr.u-tokyo.ac.jp/sk/sk/solar-e.html (acessado em: 24/09/2019).

[3] Anjos, J. C., et al. “Using neutrinos to monitor nuclear reactors: the angra neutrino experiment, simulation and detector status”. Nuclear and Particle Physics Proceedings 267 (2015): 108-115.

[3] Watchman. University of California. Davis neutrino group. Disponível em: http://svoboda.ucdavis.edu/experiments/watchman/ (acessado em: 24/09/2019)

[4] Abe, K. et al. “Solar neutrino measurements in super-Kamiokande-IV – Super-Kamiokande Collaboration”. Phys.Rev. D94 (2016) no.5.

[5] An international experiment for neutrino science. Dune collaboration website, disponível em: https://www.dunescience.org (acessado em: 24/09/2019).

[6] Machado, A. A.; Segreto, E. “Arapuca a new device for liquid argon scintillation light detection”. Journal of Instrumentation 11.02 (2016).

[7] Segreto, E., et al. “Liquid Argon test of the Arapuca device”. Journal of Instrumentation 13.08 (2018).