Bruno de Pierro é editor da revista de jornalismo científico do Einstein, que será lançada em breve
Como é que surgiu seu interesse por jornalismo científico?
Quando decidi fazer jornalismo, ainda tinha uma ponta de dúvida em relação a qual área eu deveria de fato seguir. Porque eu gostava muito das áreas relacionadas às biológicas e cheguei na época até a cogitar fazer medicina, mas logo descartei essa possibilidade e me mantive fiel à área das humanidades e jornalismo. Logo no primeiro ano de jornalismo pensei ‘bom, estou na comunicação, mas não queria me afastar completamente dos temas que ainda gosto de ler e ter contato’, que era o caso das biológicas, e outros interesses.
E aí comentando isso logo no primeiro ano com dois professores que eu tive lá na PUC-SP, o José Arbex Jr. e o José Salvador Faro, eles falaram ‘olha, não sei se você sabe, mas tem um negócio que chama jornalismo científico, então quem sabe não seja aí o seu caminho de juntar os dois mundos?’ Eu até então nunca tinha ouvido falar essa expressão ‘jornalismo científico’, mas conhecia exemplos de revistas que eles me deram e eu acompanhava ou conhecia, como a Super Interessante. A partir daí fui começando por conta própria a ler sobre o assunto e a buscar quem são os jornalistas ou quem eram os jornalistas na época que atuavam com isso. Porque também não tinha na graduação na época – e ainda não tem em grande parte das graduações de jornalismo – uma disciplina de jornalismo científico. Na PUC na época tinha uma pós-graduação que até era dada pelo Ulisses Capozzoli, cheguei a trocar e-mail com o Ulisses. Assim fui começando por conta própria a tentar entender o que era essa área.
E culminou que no segundo ano de Jornalismo foi feito um convite para que os alunos fizessem algum projeto de iniciação científica. Pensei que, já que não tinha uma disciplina de jornalismo científico, poderia formalmente investigar essa área dentro de um projeto de iniciação. E aí foi que o o Faro topou ser meu orientador. Eu não tinha ideia do que pesquisar, sabia que queria que fosse sobre jornalismo científico. E aí o Faro me levou até a Rua Monte Alegre ali na entrada da antiga Faculdade de Comunicação a gente foi lá na banca que ainda existe e ele me comprou uma edição da revista Pesquisa FAPESP, isso no fim de 2006 pra começo de 2007, bem no momento de fazer o projeto da iniciação científica, para tentar bolsa. E ele falou ‘leva para casa, vê o que você acha, porque eu acho que essa é a melhor revista de jornalismo de ciência hoje no país e não é tão reconhecida como deveria, não tem trabalho científico sobre ela, então acho que seria um belo projeto se você se debruçasse sobre ela para entender qual a importância dela nesse contexto’.
Li, gostei já logo de cara, me senti contemplado, pensei ‘nossa, realmente dá para eu ser jornalista e também lidar com ciência ao mesmo tempo’. Então ao longo de 2007, junto com a graduação propriamente dita, fiz essa iniciação científica e foi um período muito bom porque conheci várias pessoas envolvidas não só lá na revista, mas também gente que pesquisava à época o jornalismo de ciências. Foi aí que descobri a existência do Labjor, quem eram os principais editores de ciência do país nos principais jornais e fiz um contato muito forte com pesquisadores do antigo Núcleo José Reis de Jornalismo Científico da USP, que hoje não existe mais. Eles me doaram vários livros e estudos de comunicação científica e divulgação científica.
De 2007 pra cá eu não saí dessa área. Já tentei duas vezes sair, mas não consigo. Entendi que o meu lugar é no jornalismo de ciência.
Tentou sair para qual área?
Sempre tive interesse também em jornalismo cultural, música e arte em geral. Teve dois momentos que na verdade eu, digamos, flertei com algumas possibilidades de atuar nessas áreas. Cheguei a escrever para um site especializado em cinema. Depois tentei um pouco antes da pandemia, 2019 por aí, alguns processos seletivos para atuar com comunicação institucional em museus de arte, mas aí é aquela coisa, né? Eu ia pra entrevista, falavam ‘você tem currículo muito bom, mas por que você está aqui?’ [risos] Então fui me reconciliando.
Só para fechar esse capítulo, conheci naquela ocasião, para entrevistar para minha pesquisa, a Mariluce Moura, que era então diretora da revista e também foi quem concebeu e criou a Pesquisa FAPESP. Anos depois, 2013, ela me convidaria para trabalhar lá. Isso eu já formado. Foi onde fiquei quase oito anos como editor assistente de política científica. E só para registrar, uma pessoa importante que na época da minha iniciação científica também me inspirou muito foi o José Hamilton Ribeiro, um dos precursores do jornalismo de ciência no Brasil, que até há pouco tempo ainda atuava profissionalmente no programa Globo Rural. Tive a chance de conhecê-lo, fui lá na Globo, a gente almoçou junto. Ele me contou um pouco da trajetória dele. E aí percebi que era possível aliar não só jornalismo e ciência, como também a grande reportagem dentro do jornalismo científico, que foi uma outra questão que também passou a me interessar, como fazer jornalismo de ciência dentro de um contexto da grande reportagem.
Fiz entre 2012 e 2014 o mestrado em Divulgação Científica e Cultural no Labjor e em 2021 entrei no doutorado em Ciência Ambiental na USP.
Com essa sua experiência toda, na sua visão quais são os principais defeitos dos ‘jornalismos científicos’?
Não sei se defeitos, eu diria, talvez, os principais desafios ou questões que ainda precisam ser melhor trabalhadas ou melhor refletidas. É uma percepção minha, sei que alguns colegas compartilham, já outros nem tanto. Sinto que o jornalismo de ciência ainda está muito atrelado, muito dependente do artigo científico. O artigo científico, o paper, é expressão talvez máxima, mais consagrada, da produção científica, não é? É reconhecido pelos pares, é onde o pesquisador ou os pesquisadores chegam no final de uma pesquisa e comunicam com seus pares seus resultados e conclusões.
Mas acho que isso tem de ser um ponto de partida para o jornalista que cobre ciência, e não o fim. Quer dizer, aquele jornalista pega o paper, se debruça sobre ele, tira dali o que é mais importante, a notícia, o fato que vem a ser de maior interesse do ponto de vista da imprensa, mas acaba às vezes esquecendo de ir um pouco além desse resultado. O paper nada mais é do que um… quase que um relatório de cientista para cientista, de cientista para gestor de ciência, para suas instituições. E o jornalista esquece de ver ali quais são as histórias por trás daquela pesquisa, quais são as dificuldades. Nem tudo o que se passa numa pesquisa está relatado ali.
Agora, eu sei também que nem tudo que se passa numa pesquisa vai estar numa reportagem. Eu sei também que falo isso, mas no dia-a-dia, na prática, a gente acaba praticando mesmo esse jornalismo assim mais atrelado ao paper, não é? Mas o que eu tento na medida do possível, quando é viável, é trazer a produção científica expressa ali nos artigos científicos como um ponto de partida a partir do qual eu consigo, por exemplo, pensar inclusive criticamente a pesquisa, colocar ela num contexto social, no contexto em que ela foi produzida. Quer dizer, como que ela dialoga com outras áreas do conhecimento correlatas ou como aqueles pesquisadores dialogam ou não com seus pares. Em que contexto aquilo foi produzido, eu acho que esse é um ponto.
E um outro ponto que eu vejo de desafio, que ficou mais evidente ainda com a pandemia de covid-19 e com uma maior evidência dos efeitos das mudanças climáticas, da emergência climática no nosso cotidiano, é a necessidade de o jornalismo de ciência levar em consideração não mais a produção científica ou o trabalho dos pesquisadores de maneira isolada. O diálogo da ciência com outras formas de conhecimento vai ser cada vez mais exigido e cada vez mais estudado daqui para frente no sentido de a gente realmente entender qual é o impacto da ciência na sociedade, mas não uma sociedade passiva, inerte, que fica aguardando o que os pesquisadores vão ter a dizer sobre tal assunto em termos de solução, para que os pesquisadores sejam os grandes salvadores e nos tirem dessas crises. A gente vê que na verdade há uma relação entre diferentes atores sociais, incluindo aí os pesquisadores, a comunidade científica, mas que não se dá de maneira isolada.
Muito das soluções do que a gente viu na pandemia, por exemplo, em comunidades aqui em São Paulo, no Rio, em vários lugares do planeta, comunidades mais vulnerabilizadas buscaram ali soluções concretas a partir da realidade local tendo o auxílio de pesquisadores. Então uma forma também de coprodução do conhecimento. Isso também em termos da questão ambiental é muito forte hoje, a gente tem uma expansão de pesquisas participativas, pesquisas que se dão no campo da chamada ciência cidadã, em que a coprodução do conhecimento envolvendo cientistas, líderes comunitários, gestores públicos, muitas vezes até empresas acaba dando o tom de qual seria um dos caminhos pra gente encontrar soluções para grandes problemas que afligem a humanidade em diferentes contextos, em diferentes realidades. Então eu acho que o jornalista e o jornalismo de ciência hoje tem de estar preparado para lidar com essa complexidade.
E também com a questão do risco. Esses problemas todos, como a possibilidade de novas pandemias, de agravamento da crise climática, nós como sociedade e a comunidade científica estamos diante cada vez mais do risco das incertezas. Então é aquela coisa: vai ser cada vez mais comum a gente sentar diante de um pesquisador e ele falar ‘bom, não sei, meu conhecimento vai até aqui, a partir daqui a gente vai ter que pensar junto como resolver tal questão’.
E aí é um jornalismo de ciência menos tecnocrático, menos burocrata, menos dependente de papers porque muitas vezes a ciência vai estar sendo produzida em tempo real dentro de uma comunidade, dentro de um laboratório em parceria com outro laboratório e aquilo vai estar acontecendo vai estar sendo publicado em preprint, vai estar sendo divulgado em mídia social e o paper vai ser só mais uma das possibilidades daqueles resultados aparecerem. Por isso que hoje as grandes agências de fomento no Brasil e no mundo estão repensando como realmente avaliar e medir o impacto da pesquisa, da ciência na sociedade porque as ferramentas convencionais de avaliar impacto estão se mostrando insuficientes. Então a gente não sabe mais exatamente como daqui para frente vai conseguir dizer ‘essa pesquisa tem impacto, essa não tem’, sendo que você não pode usar as mesmas métricas para pesquisas de naturezas diferentes.
Porque se não corre o risco de passar para o público uma visão ainda de uma ciência que é feita de forma linear. Há áreas do conhecimento que ainda funcionam muito bem dessa maneira mais tradicional, mas diante dos grandes desafios da humanidade, o que vai precisar é cada vez mais de pesquisadores que saibam trabalhar em colaboração com não cientistas.
Você tem um semestre para dar aula a uma turma que quer aprender ou praticar jornalismo científico. Qual seria seu foco?
Em termos práticos e de ferramental eu até vou soar contraditório agora, mas vou dizer uma coisa que vou explicar. Acho que para quem está começando nessa área eu daria um apoio, um suporte em como ler um artigo científico. Eu acabei de falar ‘não, o jornalismo científico não tem que estar exclusivamente atrelado ao paper’, e agora estou dizendo que tem de saber ler sim, porque ainda que seja só um ponto de partida, é um grande ponto de partida, de onde a gente bem ou mal acaba buscando as pautas.
Me concentraria nisso porque é importante quem está começando, saber ler um artigo científico e saber, como eu acabei de falar, ler criticamente, não no sentido de que eu jornalista, ainda mais em início de carreira, vou ler um artigo e vou falar ‘não, isso aqui não tá bom’, você pode até ter essa habilidade, desenvolver isso com o tempo, mas não é que você vai ler como um parecerista que avalia um paper para ser publicado ou não.
Estou me referindo no sentido de ler um artigo e entender que aquilo é uma pesquisa pontual, é um recorte, outras pessoas podem ou não estar se dedicando àquele assunto, se há gente se dedicando àquele assunto vamos ver o que os outros estão dizendo. Vamos comparar as metodologias. Quais são as limitações desse método? Quais são as limitações daquele método? E isso tem de transparecer em qualquer reportagem de ciência, e aí não importa a área, se é biológicas, humanidades, exatas. Tem de deixar claro para o leitor que só foi possível chegar naqueles dados porque foi aplicado tal método, há viéses, há limitações metodológicas de várias ordens.
Então acho que o ponto de partida é: vamos discutir como é formado estruturalmente um paper. Vamos fazer uma engenharia reversa aí. Pegar um paper pronto e ir destrinchando como é que se chegou naquilo.
Talvez mais um ponto que incluiria nessa formação inicial: quais seriam as principais tendências hoje do que a gente pode chamar de produção científica. Que é mostrar para quem vai cobrir ciência o que está hoje em jogo dentro do meio científico. Há vários embates em torno por exemplo de questões de política científica. Como eu acabei de falar, quais as melhores métricas e métodos para avaliar o impacto da pesquisa? Há muita divergência sobre isso. E afeta a forma como a gente vai divulgar ciência ou fazer jornalismo de ciência.
Eu traria também um pouco essa discussão sobre qual o papel da comunicação no contexto da ciência aberta ou qual o papel da comunicação no contexto de um novo paradigma da ciência que não é mais aquele paradigma na ciência normal como o Thomas Kuhn falava, de uma ciência que passa por períodos de normalidade, de repente vem um período de falta de consenso e estoura numa possível revolução científica. Mas um novo paradigma, que é aquilo que alguns autores chamam de ciência pós normal, uma ciência que vai ser produzida nesse contexto de incerteza, de risco, de necessidade, de colaboração mútua entre cientistas, gestores, sociedade.