Por Matheus Pichonelli
O resultado final da eleição pode sugerir que a campanha de 2018 sepultou alguns dos pilares que historicamente balizam as decisões políticas no país. A começar pelo poder da televisão e da chamada mídia tradicional. Mas não é bem assim.
“Agora vai começar a campanha eleitoral”, disse Geraldo Alckmin, candidato do PSDB à presidência, em 26 de agosto de 2018. Observada hoje, a declaração soa como uma espécie de wishful thinking. Na época, o presidenciável tucano oscilava entre 5% e 6% nas intenções de voto nas pesquisas eleitorais realizadas pelo Ibope e pelo Datafolha. Jair Bolsonaro, que concorria pelo nanico PSL, aparecia em segundo lugar, com 19%. Estava atrás somente de Luiz Inácio Lula da Silva, preso em Curitiba desde abril – e que, até então, era ainda o candidato do PT.
Alckmin tinha um latifúndio de tempo de exposição de TV a seu favor. Dos 12 minutos e 30 segundos de cada um dos dois blocos de propaganda dos presidenciáveis que seriam exibidos a cada dois dias, ele detinha 5 minutos e 32 segundos. Quase metade do total. O candidato petista, que logo seria substituído pelo ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad, teria 2 minutos e 23 segundos.
Bolsonaro contava com 8 segundos de exposição.
O resultado final da eleição, poucos meses depois, poderia sugerir que a campanha de 2018 sepultou alguns dos pilares que historicamente balizaram as decisões políticas no país. A começar pelo poder da televisão e da chamada mídia tradicional.
Afinal, mesmo com tanto tempo de exposição, o candidato tucano não conseguiu superar os 5% das intenções de voto (terminou a corrida com 4,76%).
Bolsonaro, em compensação, obteve 46,03% dos votos e por pouco não levou a disputa logo no primeiro turno, mesmo com o tempo limitado na TV. Ele seria eleito, pouco depois, com 55,13% dos votos sem participar de nenhum debate televisivo.
Então as eleições, daqui em diante, já não serão decididas pelos meios tradicionais de comunicação? Vejamos.
A plataforma CQC
Deputado do chamado “baixo clero” por décadas, Bolsonaro teve o nome alavancado graças à exposição de suas ideias em programas de TV populares, como os apresentados por Luciana Gimenez e o humorístico CQC, da Band. Passou a ganhar seguidores nas redes sociais à medida que se tornava conhecido por meio da televisão, com tempo generoso de exposição – concedido por quem buscava audiência.
No caso da eleição de 2018, é preciso ainda levar em conta outras variáveis. Afinal a disputa daquele ano teve de tudo, menos normalidade. Na véspera do feriado de 7 de setembro, Dia da Independência – um data propícia a catarses relacionadas ao patriotismo que voltou à moda desde os protestos de 2013 – Bolsonaro sofreu um atentado a faca de um eleitor que já havia sido filiado ao PSOL.
O simbolismo da cena, com o candidato de camisa amarela e assumidamente anticomunista ensanguentado, levou a disputa a outros termos. Quem apostava que o candidato se desidrataria à medida que apresentasse ao grande público suas ideias rarefeitas teve de refazer a aposta.
A facada deu a Bolsonaro, já fora de perigo e em recuperação no hospital, dois ativos de que precisava: uma superexposição no noticiário e uma justificativa perfeita para se abster dos desgastes dos debates na TV. O candidato a presidente que se gabava de não precisar de qualquer estrutura midiática para avançar soube, então, escolher emissoras amigas para conceder entrevistas desde o hospital.
Uma delas, na TV Record, foi ao ar em 4 de outubro, ainda no primeiro turno, quase no mesmo horário do debate com os demais candidatos na Rede Globo.
Em sua exposição em rede nacional, antes da facada, Bolsonaro fugiu das perguntas incômodas e apresentou aos milhões de espectadores uma das muitas fake news divulgadas por sua campanha: com um livro do inexistente kit gay na mão, ele defendeu o combate à sexualização precoce estimulada nas escolas.
Em sua plataforma, Bolsonaro misturava patriotismo e um discurso em defesa da família, prometendo ser duro com a criminalidade. Medo e ódio se tornavam afetos políticos centrais. Acima de qualquer grau até então determinado pela civilidade, Bolsonaro parecia se adequar a essa frequência.
Como definiu o psicanalista Jurandir Freire Costa, em um mundo marcado pelo desemprego e pela precarização do trabalho, passamos a sofrer uma perda gradativa de identidade e desenraizamento – o emprego/missão, afinal, define o que somos, onde vivemos e o que fazemos. Essa perda leva, segundo ele, a odiar tudo o que causa frustração, a idealizar um passado supostamente perfeito e a criar uma espécie de fetiche em relação a líderes que nos prometem resolver todos os problemas no grito.
Não por acaso, o candidato que era chamado de “mito” nas redes sociais passou a prometer o orgulho perdido em algum momento da redemocratização até a Lava Jato. Era uma tortura considerável nos fatos históricos, mas que ecoou como um canhão em quem parecia predisposto a votar em qualquer um que prometesse implodir o sistema por dentro – mesmo que, na prática, o discurso disruptivo de Bolsonaro fosse suave como seda em relação aos grupos sociais e econômicos hegemônicos do país.
As jornadas de junho e a imprensa tradicional
Uma posição de xeque da mídia tradicional ficou mais evidente após os protestos de 2013, quando manifestantes e coletivos de mídia independente criaram canais para registrar agressões até então ignoradas pelos grandes veículos e/ou desmentidas pelas notas oficiais das autoridades. Ao longo de junho daquele ano, os veículos pareceram perceber o risco que corriam e passaram a abrir espaço para essas narrativas e outros atores que surgiam no debate público, na época pautado pela questão do direito à cidade.
Com a apropriação das manifestações por grupos organizados de direita, as ruas serviram de laboratório para os atos que anteciparam o impeachment de Dilma Rousseff. A crise econômica, somada à Lava Jato, ajudou a transformar o sentimento de indignação em rejeição ao governo petista.
Abalados pela ameaça de perda de controle sobre a narrativa, muitos jornais passaram a dar espaço para as lideranças que surgiam ali. Alguns visivelmente não tinham musculatura intelectual para a missão, caso dos jovens do MBL, que tiveram as ações histriônicas legitimadas pelos espaços nobres concedidos a eles nos grandes jornais. Um deles, Kim Kataguiri, chegou a ter um artigo com chamada de capa na Folha de S.Paulo no dia de um dos maiores protestos pelo impeachment. No texto, ele comparava a luta contra o governo à luta que engendrava na imaginação, durante a infância, contra os monstros dos Power Rangers.
As ideias obscurantistas que esses grupos já demonstravam, com ideias persecutórias contra professores e quaisquer vozes contraditórias ao seu ideário, ganharam força na época e elegeram, em 2016 e 2018, diversas lideranças. Não se sabe se (a) em razão da alta exposição dos canais eletrônicos, como o YouTube, que souberam manejar, (b) com a legitimidade garantida pelos espaços cativos na mídia tradicional, ou (c) em razão dos dois fenômenos sincronizados.
‘Entrevistas amigas’ e demora na reação
De que maneira os veículos tradicionais referendaram essa construção? No caso das emissoras amigas, com perguntas amigáveis recompensadas por entrevistas exclusivas e recursos generosos de verba publicitária.
No caso dos veículos impressos, pela omissão e pela demora em perceber que, sem um contraponto adequado ao denuncismo da Lava Jato, o “novo” se apresentaria numa releitura do que houve de pior no passado, a começar pelo anti-intelectualismo e a intolerância ao contraditório represado desde a ditadura.
A verdade é que, até outubro, os eleitores já possuíam informações suficientes para desconfiar da validade do discurso bolsonarista de combate à corrupção. Naquele momento, porém, essas notícias não foram determinantes para alterar os rumos da eleição.
As várias revelações incômodas não foram feitas por tuítes, mas por trabalhos de apuração jornalística de veículos que tentavam recuperar a credibilidade após o boom das redes sociais que marcou a segunda década do novo século. Não à toa, quando começaram a fazer contrapontos e a revelar histórias desfavoráveis ao clã Bolsonaro, os veículos que ainda mantêm em seus quadros uma postura investigativa se tornaram alvos preferenciais do bolsonarismo.
O futuro de uns e de outros depende agora dessa queda de braço.
Matheus Pichonelli é formado em jornalismo (Faculdade Cásper Líbero) e em ciências sociais (USP). Mantém um blog de política no Yahoo Brasil e de comportamento no UOL