Por Ricardo Muniz
Um dos maiores biógrafos do Brasil, Lira Neto vem à Unicamp dia 31 de maio. Jornalista e escritor que recontou a história de Getúlio Vargas e do samba, de Castello Branco e de Maysa, dará palestra sobre A arte da biografia, seu mais recente livro, no IEL.
Pouco antes dos 40 anos de idade, em 2001, Lira Neto pediu demissão d’O Povo, jornal cearense que completou 95 anos no início de 2023. Na ocasião, foi alvo de chacota dos colegas porque justificou seu rompimento inesperado pela decisão, rebatida como loucura, de trabalhar e sustentar-se como biógrafo. Ele mesmo conta que não foi nada fácil – nem pedir as contas, nem se viabilizar com o novo ofício. Jornalista tardio, havia começado a vida em Redação aos 30 anos. Uma década depois, ali estava bem, obrigado. Antes da passagem pelo diário, seu currículo era este: diploma de nível médio em topografia (engavetado), duas faculdades (abandonadas) e uma série de bicos (de técnico de raio-X a vendedor de hambúrguer).
Nos mais de 20 anos como biógrafo, Lira Neto acumula quatro prêmios Jabuti, tradicional reconhecimento de excelência do meio editorial brasileiro. Escreveu sobre a vida de Getúlio Vargas – lançada há 11 anos, a obra em 3 volumes já vendeu mais de 225 mil cópias –, da cantora Maysa, do padre Cícero Romão Batista – 8ª reimpressão em janeiro deste ano –, do escritor José de Alencar, do militar usurpador Castello Branco. Escavou e retraçou as “biografias coletivas” tanto das abençoadas pessoas que forjaram o samba quanto daquelas que por sua religião foram amaldiçoadas pela Inquisição Católica e, expelidas de Portugal, forçadas a migrar para a Holanda e o Recife, acabaram cofundadoras de Manhattan.
A primeira incursão de Lira Neto nesta seara havia sido empreendida ainda em seus tempos n’O Povo, dois anos antes de seu escandaloso desligamento: trata-se de O poder e a peste: A vida de Rodolfo Teófilo, farmacêutico, sanitarista e escritor que combateu a varíola no Ceará. “Contrapondo-se ao negacionismo da então oligarquia estadual, [Teófilo] promovera uma campanha de vacinação em massa. Após uma série de perseguições políticas, conquistara a adesão popular e conseguira a consequente erradicação da moléstia” na virada do século 19 para o 20, conta Neto.
Seu mais recente livro, A arte da biografia – Como escrever histórias de vida (Cia. das Letras, 2022, 192 páginas, das quais 13 de notas valiosas e 7 de rica bibliografia), fruto de seus tempos em Portugal como doutorando na Universidade de Coimbra, será ponto de partida de palestra no dia 31 de maio, às 14 horas, no Anfiteatro do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp. Depois da conversa haverá sessão de autógrafos na Livraria do Centro Cultural do IEL, até 17h. A obra não tem nada a ver com aqueles manuais manjados de 10, 5 ou 15 passos para fazer muito facilmente e com sucesso garantido isso ou aquilo. É reflexão crítica enraizada na prática, com uma útil compilação de ensinamentos de mestres como Virginia Woolf, Sabina Loriga, Georges Duby, Jacques Le Goff, Carlo Ginzburg e nosso Alberto Dines. Também há “bastidores” da produção das obras escritas por Neto, que voltou – aliviado com a derrota eleitoral do neofascismo – a morar no Brasil em fevereiro deste ano.
O gênero biográfico, bastante avacalhado e menosprezado, mas não faz muito tempo redimido, vem contribuindo para a divulgação científica de História – pois divulgação científica também deve envolver História, Economia Política, Direito e tudo aquilo que interessa à universidade e à sociedade. Parte da receita de reabilitação é fácil de anotar mas dificílima de entregar: rigor obsessivo na pesquisa, honestidade na confissão das inevitáveis lacunas e sabor e cor na escrita, ingredientes em que Neto pode ser considerado excelente. “Costuma-se citar célebre texto do historiador britânico Lawrence Stone, publicado em 1979, como um dos marcos fundadores dessa reabilitação. Em ‘O ressurgimento da narrativa’, Stone dizia ter captado uma disposição de retorno à narrativa por parte dos profissionais da história, sintoma que se fazia acompanhar de uma idêntica revalorização da elegância e da fluidez do texto”, pontua Neto em seu livro. Convenhamos que infelizmente muito do que se produz na chamada Academia é intragável de ler (mas não precisa ser assim). Lira cita o historiador , linguista e crítico literário suíço Paul Zumthor: “O estilo acadêmico muitas vezes é da mesma ordem de indecência que a negligência ou a sujeira das roupas […] Não faço muita questão de decoro, mas tenho horror à sujeira: para mim, é uma necessidade lavar meu discurso. Não temos o direito de fazer qualquer coisa com as palavras, mas devemos nos servir delas com amor e respeito”.
Duby, citado por Neto, escreveu: “Propunha-me […] também a compartilhar com os leitores uma emoção, aquela mesma que eu experimentara no momento em que, vasculhando entre vestígios mortos, julgara ouvir novamente vozes extintas […] Sou um daqueles […] que pensam que nosso dever é colocar os resultados de nosso trabalho ao alcance do auditório o mais vasto possível”.
Como escreveu João, discípulo de Cristo e autor de um dos quatro evangelhos, “Há, porém, ainda muitas outras coisas que Jesus fez; e se cada uma das quais fosse escrita, cuido que nem ainda o mundo todo poderia conter os livros que se escrevessem”. Lira chama atenção para a necessidade de saber parar a pesquisa, escrita e reescrita de uma biografia, lição que todo jornalista aprende na largada e na marra, perante seus prazos e limites. “Biografar seria uma aporia – impossibilidade, impasse, circunstância sem solução. Algo inatingível, mas que não canso e não desisto de perseguir”, diz Neto.
Também paramos por aqui, porque afinal de contas, melhor do que ler uma resenha de livro é ler o livro (antes ou depois da palestra do dia 31). Embora não seja uma biografia escrita por Lira Neto, e sim um livro sobre biografias, de Lira Neto, é igualmente um texto gostoso e proveitoso, entregando com excelente ritmo e elegante estilo sete capítulos com muito conteúdo sobre boa preparação e condução de entrevistas, ritmos acelerados ou “freados” de narrativa, trabalho metódico com arquivos, seriedade na abordagem da vida alheia e muito mais.
PS: Abaixo, a íntegra da palestra:
Ricardo Whiteman Muniz é editor da revista ComCiência e professor da Especialização em Jornalismo Científico do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp (Labjor)